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10 março 2020

A propósito da apresentação do livro "A Assassina da Roda"



A APRESENTAÇÃO DO LIVRO "A ASSASSINA DA RODA" DECORREU EM PENACOVA NO DIA 7 DE MARÇO
Na foto: David Almeida,  que apresentou a obra, João Azadinho, Vice-Presidente da Câmara, Rute Serra, autora, e Pedro Assunção, Presidente da Junta de Figueira de Lorvão

“Tal como acontece com toda e qualquer comunidade humana, da história de Penacova fazem parte pessoas e factos que nos orgulham e são exemplo maior de um povo que foi conquistando a sua autonomia e identidade ao longo de séculos.

Mas a história de um povo, de um concelho, é feita de homens e de mulheres que transportam consigo as marcas da condição humana. E a natureza humana carrega um paradoxo original. No mais íntimo do ser humano, coabitam o bem e o mal, o anjo e o demónio, a vida e a morte. Freud, o pai da psicanálise, falou de dois instintos que comandam as nossas vidas. O instinto de Vida que ama, que enriquece a mesma vida, e o instinto de Morte que pode levar à destruição: Eros e Tanatos.”

Vêm estas considerações a propósito da apresentação em Penacova do livro “A Assassina da Roda”, de Rute Serra *,  sobre a vida da última mulher executada em Portugal. O texto tem como base a comunicação que fizemos na referida sessão que decorreu na Biblioteca Municipal de Penacova no dia 7 de Março.

“O caso Luísa de Jesus coloca-nos um problema muito concreto. Trazer aqui,  ao presente, a memória de acontecimentos que ainda hoje nos horrorizam e nos envergonham? É que, por mais que nos custe, Luísa de Jesus foi considerada no texto da sentença “inimiga declarada da inocência, monstro de coração pervertido…uma mulher possuidora de ambição e fereza.”

Dizer não à apresentação deste livro, aqui bem no coração do território onde tantos inocentes foram massacrados? Pronunciar o nome de Luísa de Jesus  ou expulsá-lo para todo o sempre da nossa memória? Será possível abafar tudo isso e fixarmo-nos apenas nos factos e nas pessoas que nos enobrecem? Claro que seria mais fácil, mais confortável, enaltecer os nossos heróis, as nossas glórias concelhias.

A memória de um povo não pode (e não consegue) ser selectiva. O caso Luísa de Jesus perturba-nos? Sim, perturba! Fascina-nos, num certo sentido? Sim, também. Quem sabe, tudo isso sejam  válvulas de escape face a situações de terror,  uma forma de lidar com o lado escuro, com a agressividade, que no fundo de cada um existe?

Por que não tratar, sem preconceitos, sem complexos, e de uma forma séria, estes acontecimentos passados na nossa terra há cerca de duzentos e cinquenta anos?

O livro que estamos hoje a apresentar é um trabalho sério, de pesquisa rigorosa, de interpelação sobre a vida e a morte, sobre o direito e a justiça, sobre a verdade, sobre os meandros, por vezes obscuros da natureza humana e das estruturas jurídico-sociais. Uma obra que se demarca do sensacionalismo pelo sensacionalismo e da literatura light que por aí vai abundando.

Aquando das pesquisas que fiz na imprensa local no sentido de reconstituir o movimento republicano em Penacova (o que deu origem ao livro “Penacova e a República na Imprensa Local, publicado em 2011) passou-me pela mão o jornal “Voz de S. Pedro de Alva” que se  publicou entre 1928-1933.

O título Crimes horrorosos” chamou-me à atenção. Nunca tinha ouvido falar de tais acontecimentos. Interessando-me pelo caso acabei por descobrir que o jornal O Conimbricense (16 de Outubro de 1866 e 31 de Maio de 1898)  referiu o caso e publicou mesmo a sentença proferida na altura.

Em diversos momentos fui fazendo referência a este caso no blogue e, nas suas pesquisas na internet, a Drª Rute Serra terá chegado ao Penacova Online. Foi assim que, certo dia, recebi um mail de alguém, dizendo que estava a estudar este caso e que agradeceria se eu lhe pudesse fornecer mais elementos, o que prontamente fiz.

O tempo passou e há uns meses recebi outro mail anunciando o lançamento de um romance histórico, com a chancela da Editora Guerra e Paz. Desde logo, a autora  mostrou o desejo de o mesmo ser apresentado no concelho de Penacova. Feitos os contactos e verificada a boa receptividade da Câmara Municipal, avançou-se para a concretização.

***

“Eurico o Presbítero”, romance de  Alexandre Herculano, é muitas vezes apontado como o grande modelo de romance histórico em língua portuguesa. A Assassina da Roda, enquanto romance histórico, mistura história e ficção, reconstrói acontecimentos, costumes e personagens, apresentando-nos um retrato de alguns segmentos da vida social e política da segunda metade do século XVIII: o problema dos expostos ou enjeitados, a questão da pena de morte, os debates sobre a aplicação da justiça, a reforma pombalina da Universidade de Coimbra, os meandros da Inquisição, a ambiência coimbrã,  a pobreza, a mortalidade infantil… enfim, um quadro que,  fruto de um grande trabalho de pesquisa e de estruturação narrativa, nos convida para uma interessantíssima viagem no tempo.

Este romance insere-se no modelo tradicional da ficção histórica, resgatando e contextualizando, o mais  fielmente possível, os factos históricos, na linha de Fernando Campos (O Cavaleiro da Águia), Domingos Amaral (Enquanto Salazar Dormia) ou Miguel Sousa Tavares (Equador).  

Por vezes encontramos livros onde o vocabulário e a estrutura lexical nada têm a ver com a época e onde os cenários estão feridos de anacronismo e são muitas vezes absurdos. Neste romance tal não se verifica, fruto de uma grande capacidade de investigação. Verifica-se hoje um crescente interesse por romances históricos, em detrimento da historiografia, que apesar de muito desenvolvida se restringe muitas vezes aos ambientes académicos.  No entanto, também os livros de divulgação histórica, a par do romance histórico vão fazendo sucessos editoriais.

Através de A Assassina da Roda ficamos a conhecer não apenas a história da última mulher executada em Portugal. Os penacovenses e todos quantos o lerem, verão que o livro toca de perto muitos aspectos  da cultura e das tradições de Penacova. 

A ligação a Coimbra, principalmente das terras mais confinantes com a cidade, os trilhos, as viagens  ora pela serra do Dianteiro ora pelo curso do rio Mondego, onde não falta a figura do barqueiro, os moinhos de vento, um dos ex-libris de Penacova, tudo aqui está retratado. Retrato que se estende às paliteiras, com todos os pormenores desta arte que faz hoje parte do Inventário Nacional do Património Imaterial, ao Mosteiro de Lorvão, nas suas múltiplas facetas, ao Manuscrito do Apocalipse, reconhecido pela Unesco como Memória do Mundo. Também as Lendas nos aparecem aqui. A Lenda das Bruxas do Reconquinho, a Lenda da Senhora do Montalto e a existência, referida em documentos do século XVIII, de pedras milagrosas,   uma espécie de pedras parideiras, a tradição dos Mascarados Novos e dos Mascarados Velhos em Lorvão, tudo isso aqui ficou registado.

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E é a longa conversa entre Pina Manique e José Anastácio da Cunha, que se prolonga por vários dias, que traça o fio condutor da narrativa. “Tenho uma história para lhe contar. Julguei muitos casos naquele Tribunal. Porém houve um que me inquietou inexoravelmente para o resto da minha vida e que jamais esquecerei”, confidencia Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805) ao seu amigo José Anastácio da Cunha (1744-1787) no dia em que este é convidado por aquele para ser regente dos Estudos da futura Casa Pia de Lisboa.“Preocupei-me sempre, tão somente, que a minha consciência, ficasse tranquila após cada julgamento, na medida do que nos deixavam.” -Não duvido - responde José Anastácio. -Nem sempre… remata Pina Manique. Na hora da votação dos Juízes Desembargadores, todos se ergueram… mas ele tê-lo-á feito dum modo titubeante. É esta inquietação que vai estando presente quase até ao fim do romance.

Estávamos no ano de 1780. O rei D. José tinha morrido havia quatro anos, tinham passado 25 anos sobre o grande Terramoto de Lisboa e o julgamento de Luísa de Jesus tinham acontecido oito anos atrás. A conversa vai sendo intercalada com relatos pormenorizados da denúncia, prisão, interrogatório e suplício, na Cadeia da Portagem em Coimbra, e sequente ida de Luiza para a cadeia do Limoeiro em Lisboa. Naquela cidade será presente a Tribunal para ouvir a sentença e será executada. A vinda do Marquês de Pombal a Coimbra para entregar solenemente os novos estatutos à Universidade vem também à baila, bem como a descrição de muitos recantos da cidade do Mondego, a perseguição da Inquisição aos judeus na Galiza e a execução de Dominga da Serra,  a descrição do mosteiro de Lorvão e as intrigas palacianas à volta da eleição das abadessas e os rumores da vida dissoluta que se levava naquele Convento.

Fica nas mãos do leitor um manancial de flashes sobre a vida quotidiana da burguesia, a vida mundana, as festas de Salão, as intrigas políticas, o mobiliário, a gastronomia, os neveiros da Serra da Lousã, a Fábrica do Gelo…

“Procurei saber a bem da sanidade da minha consciência, qual foi a motivação das tétricas acções de Luísa de Jesus.” – volta a dizer Pina Manique. Depois de ouvir demoradamente as intrigantes revelações de uma velha mulher, que vivia no Reconquinho, Pina Manique, apesar de achar que a “motivação por ela referida era falaz”, prefere aquietar o espírito por algum tempo. “O facto de não acreditarmos não nos imuniza” porque “nem sempre a luz da razão alumia suficientemente a dúvida humana.” Manique acaba por concluir que só podia ter sido por motivações  de lucro fácil… A possível pobreza da infância e os maus tratos na adolescência não o justificariam. Além disso, o passado ancestral de Luísa de Jesus, revelado pela velha do Reconquinho, era justificação demasiado “efabulada”. Assim, podia descansar a sua consciência! O amigo, Anastácio da Cunha, fica calado. Era melhor não mexer mais. “A resposta serenava a sua consciência. Encontrara a sua resposta. E assim devia ficar”…

Também nós nos interrogamos: por que fez ela aquilo? Por dinheiro? Mas…não será esta a resposta mais fácil e aparentemente óbvia? Mas atenção leitores: o romance leva-nos a uma outra explicação. Caberá a cada um descobrir.

Na parte final do romance ficamos a saber que o irmão de Luísa de Jesus terá assistido à execução e terá trazido as cinzas numa “cista” para a serra de Gavinhos, onde foram espalhadas ao vento, ao mesmo vento que durante séculos fez rodar as velas dos moinhos ainda hoje ali existentes. E, quem sabe, cinzas que o tempo ainda não consumiu e por aqui permanecem veiculando ecos daquelas vozes distantes.”
David G. de Almeida, 7/3/2020
*A autora:
Rute Alexandra de Carvalho Frazão Serra, Licenciada em Direito, Pós-Graduada em Gestão Pública, Mestre em Direito – Ciências Jurídico-Políticas
Acaba de assumir funções de Sub-Inspectora Geral na Inspeção Geral das Actividades de Saúde (IGAS), um departamento da Direcção Geral da Saúde.Exerceu funções de auditoria pública externa, junto do Tribunal de Contas de Portugal. Ao longo de cerca de vinte anos de actividade profissional na Administração Pública, foi técnica superior na extinta Direcção-Geral de Viação e exerceu funções dirigentes, durante oito anos, na Autoridade de Segurança Alimentar e Económica.
Docente convidada em cursos de Pós-Graduação e Mestrado, na área da Investigação Criminal e Criminologia. Formadora nas áreas do direito penal, processual penal e contraordenacional, em diversos cursos de acesso à carreira inspectiva. Prelectora em inúmeras sessões de esclarecimento dirigidas a operadores económicos. Membro do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.
Cronista regular dos jornais Expresso, Público e I e da revista Visão.
Nasceu e vive em Lisboa mas tem família no concelho de Arganil, mais propriamente na vila de Coja.





04 julho 2017

Nos 150 anos da abolição da Pena de Morte: reflexos na história das gentes de Penacova

OS CASOS LUÍSA DE JESUS E EXPLOSÃO DE PÓLVORA NA CORTIÇA

Estão por estes dias a celebrar-se os 150 anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal. Não sabemos quantas pessoas ligadas a Penacova foram condenadas à pena capital ao longo dos tempos, mas há dois casos que fizeram história: o caso de Luiza de Jesus (natural de Figueira de Lorvão), por ter cometido cerca de 30 infanticídios, e o fuzilamento de 6 penacovenses por envolvimento no episódio da “Queima da Pólvora" na Estrada da Beira, junto à Cortiça.



Luiza de Jesus, uma mulher de 22 anos, ia buscar “enjeitados” à Misericórdia de Coimbra a “pretexto de criação, matando-os e enterrando-os depois, para se aproveitar do enxoval e dos 600 réis de criação pagos adiantadamente!” – pode-se ler na bibliografia sobre o assunto.  Acharam-se enterradas trinta e três crianças, confessando a ré haver garrotado vinte e oito por suas próprias mãos!
Foi atenazada pelas ruas de Lisboa, cortadas as mãos em vida, garrotada e queimada. Corria o ano de 1772. Entre nós a pena de morte era executada geralmente por estrangulamento (forca ou garrote), por degolamento, pela queima do corpo da vitima (vivicombúrio) ou por esquartejamento, atando a vitima pelas quatro extremidades ás caudas de quatro cavalos. De referir também o fuzilamento.
Havia ainda modos de agravar: em vida, o atenazamento, bem como o corte ou mutilação das mãos, o arrastamento da vitima, no percurso, até o sitio da forca. Em casos mais cruéis podia ser arrancado o coração. Depois da morte, era frequente o corte da cabeça, o esquartejamento (as partes eram distribuídas pelos lugares centrais da cidade, ou colocados às portas dela) e noutros casos, era queimado o cadáver.
Assento de Baptismo de Luísa de Jesus (publicado no jornal Expresso)

Saiba mais sobre este caso AQUI e AQUI.

Caricatura representando D. Pedro  e D. Miguel
disputando a coroa portuguesa, por Honoré Daumier, 1833

Passados 61 anos, em 1833, temos notícia do fuzilamento de 6 penacovenses, por motivos políticos: António Homem de Figueiredo e Sousa, natural da Cruz do Souto, freguesia de Farinha Podre,  Padre António  da Maya, natural da Cruz do Souto, freguesia de Farinha Podre, pároco encomendado da freguesia do Covelo de Ázere, Francisco Homem da Cunha, filho de Bernardo Homem e irmão de Guilherme Nunes, do lugar da Cortiça, Francisco de Sande Sarmento, solteiro, natural da Carvoeira, freguesia e concelho de Penacova, Felisberto de Sande, solteiro, natural da Carvoeira, freguesia e concelho de Penacova,  Guilherme Nunes da Silva, filho de Bernardo Homem e irmão de Francisco Homem da Cunha e José Maria de Oliveira, natural da Cortiça, freguesia de Paradela.
Conta-nos Henriques Seco (Memórias do Tempo Passado e Presente – 1880) : “É sabida a perseguição que aos liberais foi feita desde 1828 a 1834. Uma das terras do país que mais sofreu então foi a vila de Midões. Fugindo á perseguição, alguns de entre eles vagavam por diferentes terras da província, e por acaso nos primeiros dias do mês de Agosto de 1832 estacionavam junto à Cortiça (quilometro 42 da estrada de Coimbra a Celorico) onde os povos lhe não eram hostis, e havia também muitos cidadãos comprometidos na causa liberal.”  
Ao fim da tarde do dia 4 de Agosto de 1832, os mesmos liberais foram avisados  que havia chegado à Ponte da Mucela “um troço de quarenta voluntários realistas, vindos de Abrantes, escoltando um comboio de vinte carros com pólvora”. Os liberais envolveram-se e depois de vários episódios (ver AQUI e AQUI) foram perseguidos, presos e por fim, muitos deles, condenados à pena capital. A povoação da Cortiça foi quase totalmente incendiada em 1832 pelas milícias miguelistas que quiseram vingar o assalto ao  combóio de carros de bois carregados de pólvora, proveniente dos paióis de Abrantes e destinada ao cerco do Porto. A pólvora foi seguidamente destruída por explosão nas proximidades da Cortiça e, como não foi possível prender todos os guerrilheiros, sofreram as retaliações os moradores daquela localidade.







08 fevereiro 2014

Ainda o caso Luiza de Jesus que manchou o concelho de Penacova


Fizemos ontem referência ao "crime mais espantoso" ocorrido durante o séc XVIII em Portugal e que
envolveu uma mulher natural de Figueira de Lorvão.

Apesar de só passados cerca de cem anos a pena de morte ser abolida em Portugal (1867) , Luiza de Jesus passou à história, não apenas pelo seu horrendo crime, mas também porque foi a última mulher a ser condenada à pena capital no nosso país. 

Hoje, acrescentamos um recorte do jornal O Conimbricense que transcreve a sentença deste caso ocorrido em 1772.