Mostrar mensagens com a etiqueta ulisses baptista. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta ulisses baptista. Mostrar todas as mensagens

24 abril 2023

Forte e Flexível como o Salgueiro

"Forte e Flexível como o Salgueiro" é um conto de Ulisses Baptista que nos transporta para o mundo rural dos anos 50 / 60 do século passado.


Jaime era um moço maciço, enrijecido pelas manhãs de geada e as tarefas de campo que o faziam saltar cedo da cama, quando ia ajudar o avô. Era um rapaz alegre e reinadio, apesar dos tenros anos, apesar da imaturidade misturada com a rebeldia da infância. Ligado à vida ao ar livre, a alegria dos verdes anos era ainda mais evidente com a profusão do verde do campo, com o chilrear da passarada e o cheiro perfumado das plantas silvestres. Gostava especialmente da altura da poda da vinha em que colocava em prática a sua habilidade a torcer o vime de salgueiro que os camponeses usavam para a amarrar, depois da poda de Inverno.

A Primavera estava já a entrar e o avô descuidara um pouco algumas tarefas de campo. O ano entrara chuvoso e ele raramente tinha outra hipótese senão usar os sábados para tratar das fazendas. O emprego semanal como funcionário público não lhe deixava outra alternativa.

Hoje, Jaime ia com o avô Daniel e o Ti Quim, primo em segundo grau e jornaleiro de profissão. Jaime adorava estar na presença dos dois, porque o avô também se tornava, nesses dias, mais divertido e tolerante. Eram dias prazenteiros que passavam rápido. Jaime ajudava com gosto a amarrar os espeques dos corrimões, tanto ao tronco das videiras, como aos arames, e ainda se lembrava bem das palavras do primo Quim a explicar como devia fazer para amarrar com o vime:

- Estás a ver como eu faço? - Perguntava. E depois prosseguia a exemplificar e explicar como só ele sabia: - Pegas na verga com a mão direita, passas por trás do que queres amarrar e torces assim, o dedo gordo da outra mão sempre a ajudar a torcer. Torces 4 ou 5 vezes e depois viras para cima com uma torcedela mais forte. No fim cortas a verga que sobra, com uma navalha ou uma tesoura de poda, e deixas, mais ou menos, o mesmo que ficou em cima. E já está. Ora experimenta!

E Jaime fez e conseguiu à primeira. Ainda não tinha 7 anos quando aprendeu. Agora que já passara algum tempo, era já um mestre do ponto. Mas o avô não lhe deixava ainda atar as vides. Essas, por enquanto, eram apenas para os homens mais velhos.

O Ti Quim, mesmo assim, divertia-se a ensinar o moço, porque ele sempre fora bem mandado e Jaime ainda achava graça às piadas que dizia. Na sua inocência, ia ouvindo as graçolas com duplo sentido do velho e nem sempre captava a marosca. Contudo, estava sempre pronto para ouvir mais. O que ele queria também era fazer piscinas a correr para cá e para lá nos terrenos cheios de erva. Por vezes levavam as cabras e os filhotes e ele andava por ali a saltitar de lado para lado, embora o avô lhe ralhasse para ele estar sossegado. Na presença do primo Quim, porém, o avô tornava-se mais jovial e aceitava melhor as suas folestrias.

O Ti Quim, que estava a arrancar um madeiro duma árvore que havia morrido, fez-lhe uma pergunta, enquanto se aproximava dele, curioso:

-Sabes como é que se arranca um toco?

-Não!

-És cavalo dum lado e és cavalo do outro.

Uh, compreendo!

E aquela frase começava a matracar na cabeça do miúdo, até que acabava por perceber a dança das palavras marotas que o jornaleiro soltava, e depois ia meter-se com ele outra vez:

-Ti Quim, você arranca muitos tocos, não é?

E o velho ria-se com ar divertido.

Quando iam amarrar a vinha que o avô havia podado há uma semana atrás, voltou a chamar Jaime para ao pé de si. E voltou a constatar que ele não esquecera o que lhe ensinara um par de anos antes.

O rapaz ajeita-se com o vime. Já reparaste?

É! Tem jeito, tem. Está farto de pedir que lhe deixe amarrar as vides das videiras, mas vou-lhe dizendo que não. Para agora fica pelos espeques e os arames.

- É humilde e trabalhador!

Ao almoço, Jaime gostava de ficar ali a ouvir as piadas do avô e do jornaleiro. Hoje era um dia especial em que todos iam saboreando a apurada chanfana de cabra que havia sobrado do aniversário do avô Daniel, por ter completado 60 anos. Tinha mandado matar uma das cabras mais velhas que criavam no Curral. Para a sobremesa havia uma "novedade" - como dizia o Ti Quim - que a avó tinha também preparado no forno a lenha. Era o folar da Páscoa. A Páscoa que estava já aí, e o miúdo entrara já de férias da escola.

O Ti Quim olhou para Jaime com ar matreiro.

- Queres cabra, ó cabrito?

E o catraio, inocente, respondeu-lhe que não queria mais, não, senhor.

- Não, primo Quim. Não há cabrito. Os cabritos são meus amigos de brincadeiras. Eu não quero comê-los.

- Pois são. Tens razão, não podes fazer isso. É verdade. Não se faz mal aos amigos.

O avô olhou com ar cúmplice para o primo Quim, como a concordar com eles.

- Tu levaste um valente susto de manhã, quando foste à venda?

Jaime segurou-se com firmeza ao mocho de madeira em que estava sentado.

- O meu avô contou-lhe, não foi?

- Pois foi. Sabes que a gente fala nessas coisas.

- Mas eu pensava que ele ia guardar segredo. Ele disse-lhe que me ia borrando de medo?

- Mais ou menos. Não foi bem assim. Disse o jornaleiro a moderar a conversa.

- Mas não queria que o primo Quim achasse que sou um bebé.

- Não és nada, ora lá! Tu fizeste muito bem em fugir dali. Ainda podia sobrar p'ra ti. Então, conta lá como foi!

- Não teve muita graça, primo Quim. Quando cheguei a casa, ainda tremia todo das pernas. Só via aquele homem alto a partir a garrafa na cabeça do outro a escorrer em sangue.

O avô de Jaime pedira-lhe para ele ir à mercearia junto à capela comprar figos secos e cachaça para o primo Quim matar o bicho. Como era costume, Jaime ia sem sequer protestar. Gostava de percorrer o trajeto até à mercearia em alta velocidade. No entanto, para cima, por segurança, para não quebrar nada, vinha sempre a andar. Mas naquele dia fora uma das exceções.

O rapaz quase sempre se surpreendia com algumas figuras peculiares que ia encontrando pelo caminho. Primeiro, ainda perto de casa, passou pela tola da Lucinda. Um daqueles dias, quando andava à lenha com o avô, ouvira-a falar para um corvo, que, a crocitar lá do alto de um pinheiro, dizia que lhe estava a adivinhar a morte:

- Vai-te embora, ó diabo! Vai-te embora, ó Belzebu!

- Queres-me levar, mas não levas

- Sou mais fina do que tu.

E de costas para o alto do pinheiro, de cu a apontar para o céu, mandava palmadas nas nalgas, repetindo a cantilena.

Quando Jaime passou no Terreiro, em frente ao chafariz, apercebeu-se de Laura a encher o caneco com todo o cuidado. Mas hoje não ia ter tempo de inquietar a pobre alma. Seguiu em frente soltando uma breve saudação:

- Bom dia, Ti Laura! Hoje estou com pressa, pode encher à vontade.

- Bom dia, rapazinho. Ainda bem! Vai com Deus!

Logo a seguir cruzou-se com Manel Silva, o matador de gado, que segurava um tracanaz de triga-milha com os dentes, enquanto debaixo do braço esquerdo prendia a broa e debaixo do outro braço um grande naco de carne gorda de porco, quase só sebo, e um saco de linhagem mal dobrado e todo besuntado.

- Bom dia, Ti Manel!

O matador desempastou uma frase qualquer da boca atravancada de comida, já o moço havia seguido a grande velocidade.

Ao deixar Manel Silva para trás, Jaime já ouvia outro homem a pregar da direção da mercearia. Ao aproximar-se, um sujeito que tinha um nome esquisito e que já tinha visto algumas vezes por ali, estava mais extasiado do que nunca, elevando os braços ao ar, para logo de seguida se baixar como se fosse fazer um vénia barulhenta em que balbuciava impropérios a respeito de alguém.

Jaime entrou a correr para dentro do chão térreo da mercearia e disse bom dia. Ninguém o ouviu. Aguardou um bocado até que o sujeito que barafustava se aproximou agressivo do merceeiro e lhe perguntou: - Onde é que ele foi?

- Acho que foi ali arrear o calhau à Ribeira Velha.

- Ai foi. Deixa-o cá chegar que até se borra.

Enquanto isto, entra o Ti 27. O merceeiro parece que sabia de antemão o que havia de dizer:

- Já hoje são 21. Queres um também?

- Bota lá um pra mim!

O Ti 27 era um homem alto e magro. A cabeça pequena entalada entre duas orelhas proeminentes. Cliente e merceeiro, sorveram num trago o conteúdo dos pequenos copos, quase em simultâneo. Jaime, que olhara de soslaio para o homem recém entrado, não conseguiu evitar um sorriso meio abafado.

Nesse instante, entra Crespim na tasca, acabado de servir o corpo, e, sem sequer poder pestanejar, leva com uma garrafa de vidro na testa. Automaticamente, o sangue escorre-lhe pela cabeça e pelo rosto.

O merceeiro pega num peso de 2 kg que tinha ali à mão e tenta em desespero impedir desfecho ainda mais sério: - Ó caralho, para já ou parto-te os cornos.

O cachopo, vendo tal aparato, sai porta fora, só parando em casa, sem figos, nem cachaça, nem nada.

Jaime começara por contar a história com a ajuda do avô, que ia elucidando o primo Quim. Estava já algo desentusiasmado de falar sobre o assunto, quando se lembrou de outro pormenor:

- Depois também lá entrou aquele homem que tem nome de número. Ó avô, porque é que não tenho nome de número?

- Aquilo é uma alcunha, não é o nome verdadeiro. O nome dele é António.

E o primo Quim colocou um pouco de veneno na conversa:

- Isso é por causa da artilharia.

O avô quis disfarçar e atirou.

- De quem a tola da Lucinda gosta, é desse, do 27.

- Isso tem a ver com o futebol? - Perguntou Jaime, confundido.

O Ti Quim não conseguindo esconder um sorriso matreiro: - Por quê, meu menino?

- Porque noutro dia o homem do rádio dizia que o Eusébio já tinha sido o melhor artilheiro da Europa.

- Ah, esse é um verdadeiro pé canhão. Isso é artilharia da pesada, é outra coisa! - Disse o Ti Quim com uma gargalhada.

- Mas assim o Eusébio arrebenta com as balizas todas.

- Já não era a primeira que caía ao chão. Aquilo é força de pantera, de Pantera Negra.

- Eu gosto do Eusébio, ó primo Quim.

- Isso é que é falar, amigo! Rematou o primo Quim. - Então, e também gostas do Benfica?

- Gosto mais do Benfica que do Sporting.

- O teu avô não vai ficar zangado contigo?

- Ele também não me deixa jogar à bola, diz que dou cabo das biqueiras.

- Ó Daniel, tens de deixar o miúdo jogar à bola com os colegas. Ao que ele corre, ainda vai dar um extremo melhor que o Nené, o rapaz que veio de Moçambique.

- Ele tem é de ir para a fazenda connosco. Isso é que era bom.

- Ó primo Quim, acho que já sei de que clube sou. Sou do Benfica.

-É assim mesmo. És cá dos meus. Um dia ainda vais à bola comigo.

O avô interpôs-se novamente na conversa: - Mete-lhe ideias na cabeça, mete. Voltando ao anterior assunto. - Quis fugir o avô ao tema. - Então e que disse o Ti 27?

- Que eu ouvisse, nada.

O primo Quim galgou mais um degrau na malícia. - Também estou convencido que a Lucinda gosta é do 27. Andam os outros dois à bulha pela galdéria e ela nem quer nenhum dos dois.

- Mas eles andam à luta por uma mulher tão tola?

-É para tu veres. Quando cresceres vê se arrumas uma rapariga com juízo. Aconselhou, divertido, o primo Quim.

- E porque é que ela quer namorar com o Ti 27?

-Já te disse. Deve ser por causa da arma.

- Ai, ele também tem uma arma? Pensava que era só o Crisóstomo Navalhas.

- Ah, não. Pelo visto, o António 27 tem uma arma maior.

- O quê? O Ti Crisóstomo tem uma navalha e o Ti 27 tem uma espada?

- É mais ou menos isso. - Esclareceu o jornaleiro.

O avô Daniel estava atento ao barulho que vinha da cozinha e quis atalhar novamente no assunto.

- Desliga esse rádio, mulher! À hora de comer não se houve música.

Apago já. Ouço só esta canção.

Ouvia-se o vozeirão de Simone de Oliveira a cantar a Desfolhada portuguesa. Jacinta gostava muito de a ouvir, mas trazia-lhe recordações que a emocionavam sobremaneira. Começava logo por mexer com ela no início com aqueles versos "quem faz um filho/ fá-lo por gosto", mas os restantes acabavam com o resto, e a mulher ia buscar recordações ao fundo da alma que haveriam de emanar na forma de dolorosas lágrimas. Lembrava-se daquela desfolhada na eira da quinta da família Serra em que o seu Daniel lhe dera o primeiro beijo. Um beijo que a fizera estremecer, porque já por ele andava encantada. Lembrava-se das tardes e manhãs de Verão em que Daniel ficava ao pé dela a namorar, enquanto ela lavava a roupa no rio Mondego. Lembrava-se da boneca de trapos que fizera para Felicidade, a sua única filha, que havia nascido apenas dois anos depois de dar o primeiro beijo a Daniel. Felicidade que se afastava dela cada vez mais. Restava-lhe o seu amado e único neto.

Com a Desfolhada, Portugal fizera a última participação, até à data, no Festival da Eurovisão. E talvez fosse aquela em que as pessoas tinham depositado mais esperança numa boa classificação. A despeito disso, a desilusão fora grande. A Desfolhada portuguesa arrecadara nem uma mão cheia de pontos e um modesto 15º lugar. Era evidente que a ditadura que esmagava a nação, havia praticamente quatro décadas, estava a ter sérias consequências também a esse nível. Pelo menos, era isso que muita gente pensava e afirmava. Apesar do fracasso na classificação, Simone de Oliveira e toda a comitiva nacional tiveram uma receção quase apoteótica à chegada a Portugal. Mas neste ano não iríamos participar, como protesto contra a politização do festival, nomeadamente, no sistema de votação final. No ano anterior à interpretação da Simone em Madrid, havia sido a Espanha a vencer. Eram fortes as suspeitas sobre o envolvimento do ditador Franco a influenciar a organização e o eventual suborno, pelos vistos, tivera resultados bem positivos.

Jacinta cruzou a passagem que ligava a cozinha à sala de refeições. Trazia um folar da Páscoa que aprendera a fazer com as suas primas dos Casais. A avó de Jaime ainda tinha os olhos chorosos, quando o neto reparou no seu rosto.

Avó voltaste a usar daquela cebola forte?

Era assim que Jacinta disfarçava os seus sentimentos, as suas lágrimas e as suas lembranças, perante o seu querido neto.

O marido, apesar do esforço de Jacinta em esconder, acabou por denunciar a sua tristeza:

- Agora, sempre que ouve essa canção, põe-se a chorar.

- Não é nada. A avozinha é que mexe com a cebola, ela é que sabe.

O primo Quim quis levar para a brincadeira e arriscou uma comparação menos assertiva :

- É como as videiras, Jaime. Também já ficam a chorar depois da poda. É do tempo já estar adiantado. Sabes?

Jacinta não se manifestou mais, mas foi soltando um lamento em forma de ai.

- Ó mulher, podias ir à loja do vinho buscar mais uma picheirita!

- Já lá vou, já lá vou. Ainda tenho de ir tratar dos animais, de ir ao quintal às batatas novas para o jantar e ainda quero ir apanhar a oliveira, o alecrim e um pouco de louro para fazer o meu ramo e o do Jaime, para ir benzer amanhã. Depois fica tarde. Tenho muito para fazer.

- Então vai lá tu, Jaime. Vai lá!

O primo Quim aproveitou a ausência de Jacinta e de Jaime para elogiar o rapaz: - Tens feito um bom trabalho com a educação do miúdo!

- É um rapaz trabalhador e muito esperto. Mas não tem sido nada fácil. Mais para a Jacinta, mas também para mim.

- É uma pena o que vos aconteceu, meu amigo. Mas o pior foi deles. E do miúdo também, coitado, que ficou mais desamparado. Mas vocês têm levado o barco a bom porto. Ele é muito obediente. Há poucos como o Jaime, é um rapaz de boa catadura.

- Também acho que sim, mas são tempos difíceis os que aí vêm. Vai entrar numa idade do caraças. Tenho algum receio, mas cá estarei para o ajudar no que for preciso. E quem dá o pão, também dá a criação.

- Tens razão, pois. É preciso castigar com alguma coisa. É preciso rédea um bocado curta. Mas ele é um bom moço.

Jaime subia, entretanto, as escadas de acesso ao primeiro piso e trazia a picheira cheia de vinho. Era vinho já da nova colheita, e, embora não fosse muito forte, era um bom pingato. Aliás, apesar de Penacova ficar encostada entre duas boas regiões vinícolas (o Dão e a Bairrada), não era frequente haver produção de vinhos excelentes, à exceçao de isso acontecer numa ou noutra terra mais propícia. Quando Daniel decidia fazer a chanfana, costumava comprar um vinho carrascão e graduado, de baga, na Bairrada. De resto, tinham tudo que era preciso: a carne de chiba, o azeite, o sal e o colorau, o louro, a cebola, o alho e o pimentão doce.

Depois era só aquecer o forno a lenha e deixar que a chanfana se cozesse lentamente. E nunca acrescentar vinho cru às caçoilas de barro preto, sem lhe dar tempo para cozinhar várias horas, pois a chanfana não deveria saber a ele. Seria desagradável. A carne assada teria que estar bem apurada. É assim que ela sabe melhor.

Os dois homens ouviram os passos do rapaz a chegar com o vinho.

- Então, Jaime, essa pomada chega cá, ou não?

- Já vai, avô, já vai aqui.

- Ora cá está o meu palheto. Não está muito forte este ano, mas está saboroso. A tua avó vai demorar? É que nós temos de ir para o Chão do Caneiro acabar o trabalho. Amanhã vais benzer o ramo à vila com a tua avó.

Jaime gostava do tempo da Páscoa, ainda mais que do Natal. O tempo também estava alegre, por agora.

Entretanto, havia chegado a avó com uma trouxa de roupa à cabeça.

-Vocês tem de ir embora, meninos. Hoje está um dia bonito, soalheiro. Eu tenho de ir lavar esta roupa ao rio. "Na semana de Ramos lava os teus panos, que na da Paixão lavarás ou não".

- É isso mesmo prima Jacinta, temos de aproveitar enquanto está bom. O Natal foi seco, a Páscoa poderá ser molhada. "Natal ao sol, Páscoa ao carvão".

-Pois, isso é bem verdade, primo Joaquim.

- Vamos lá, vamos lá! Disse o marido já com alguma pressa.

- Até logo, vão lá com Deus.

- Até mais! " Deus não se pôs na cruz por um só". Vamos ao trabalho, Ele há-de ajudar-nos.


SEIS ANOS MAIS TARDE


Jaime crescera bastante, tinha agora 14 anos cheios de força. Já era um rapaz alto, mais alto até que o avô. E mudara um pouco, claro, os seus hábitos. Participava na equipa de futebol da terra e, aos sábados ou domingos, quando havia jogo, fazia tudo para estar presente junto dos seus companheiros de equipa. No entanto, continuava a prestar muito apoio e companhia aos avós. Tinha grande disponibilidade para o trabalho e apurara a habilidade que já todos lhe conheciam desde muito novo. E tinha consciência disso.

Mas, hoje, Jaime, tinha acordado mal disposto, tivera uma breve discussão com o avô e as coisas não lhe estavam a sair como esperava. O avô dera-lhe a notícia que tinham de ir para a fazenda concluir os últimos trabalhos das podas, para não ser como nos outros anos: deixar tudo para as últimas. Estávamos no fim-de-semana anterior ao fim-de-semana do Carnaval. Não era tarde, e o avô de Jaime queria resguardar-se, porque o primo Quim piorara das suas maleitas. Era agora uma amostra do homem dinâmico que já fora. A juntar a isso, afundava-se no vinho e na cachaça. Abusava bastante do consumo, o que se manifestava também no próprio aspeto físico. Surgia sempre com o rosto inchado e vermelhão como uma pichorra. Costumava dizer para o primo Daniel que era dos remédios que tomava para aliviar as dores.

E ele respondia-lhe que, com esses remédios, valia mais beber uns bons canecos de vinho. Aliás, Daniel também já descuidara, ele próprio, esse aspeto e entrara num consumo mais excessivo de álcool. Ambos levavam muito mais tempo para fazer as tarefas que antes era como se fosse quase uma brincadeira, para eles. De tal modo que, Jaime sentia grande orgulho por ser agora o mais rápido de todos. O avô até já o deixava atar a vinha completamente. O rapaz tinha mesmo muita força e sentia prazer em demonstrar isso mesmo junto dos idosos.

Na sexta-feira à tarde, Jaime sugeriu ao avô que o deixasse livre no dia seguinte para ir jogar à bola com os colegas. Mas Daniel não gostou da ideia.

- Ó avô, eu depois vou lá fazer o que ficar por fazer. Preciso de ir jogar à bola com os meus amigos.

- Por quê? São eles que te sustentam?

- Lá está você com as suas coisas. Sabe muito bem que já sou despachado e que fica tudo pronto.

- Não quero saber nada disso. Vais e vais mesmo. Sabes bem que preciso da tua ajuda para não sermos só nós dois. Dois velhos incapazes...

- Vá lá, avô. Deixe lá ir jogar à bola!

- Isso não é importante, o primo Quim também precisa de ser ajudado. Coitado do homem.

- Oh, estou farto de aturar o velho. É sempre a mesma coisa. Já não acho piada nenhuma ao que ele diz. E para mais, parece uma lesma.

- Vamos lá ver a educação. Agora é que vais mesmo... Acho que o homem te merece mais respeito.

Jaime sentiu que perdera o duelo com o avô e não valia a pena protestar. Ficou desiludido, mas lembrou-se que, se conseguisse ser rápido o suficiente, talvez o avô depois o deixasse sair mais cedo, e então, preferiu não protestar mais.

Mas nada correu como Jaime tinha planeado. O primo Quim até parecia estar a fazer de propósito para as coisas não andarem mais depressa. Logo ele que sabia que o tinha incentivado tanto a jogar futebol. E Jaime começou a ficar desapacientado. O rapaz andava numa roda viva, primeiro a juntar as podas da vinha e os paus velhos para fazer pequenos feixes, para usar mais tarde como combustível para aquecer o forno. No final, já tarde, faltava apenas atar a vinha, mas o Ti Quim e o avô não tinham despacho nenhum. O jornaleiro passou junto a Jaime e tentou meter conversa:

- Ó Jaime, já estás um mestre do ponto, rapaz!

- Você é que me saiu um bom ponto. - respondeu fria e bruscamente.

O Ti Quim não gostou da expressão de arrogância que percebeu na resposta de Jaime. Mas engoliu em seco e seguiu caminho. Ia tentar arrancar os tocos de umas videiras velhas que haviam secado.

Jaime compreendeu que o magoara. Porém, sentiu algum prazer momentâneo no modo como tinha tratado o homem. Estava revoltado por já não ir a tempo de jogar futebol nesse dia.

Continuou a trabalhar, mas agora com mais calma. Já tinha perdido a esperança. Porém, a revolta dentro dele tinha-se agravado.

Quando se aproximou do primo Quim e do que ele estava a fazer, este tentou uma nova abordagem:

- Ó Jaime, ainda sabes como é que se arranca um toco? - E respondeu à sua própria pergunta: - És cavalo dum lado e és cavalo do outro!

Repentinamente, o rapaz atirou com ar sarcástico:

- Ó Ti Quim, você é Quim venta!

O Ti Quim não achou piada à tirada e respondeu-lhe sem respeito: - Vai bardamerda!

- Só se for para si.

O jornaleiro perdeu as estribeiras e mandou um monumental tabefe na cara do moço.

Ao longe, o avô já se havia apercebido que algo não estava bem com o relacionamento dos dois, mas olhou e já só viu o neto a correr desenfreado pelo campo fora, em direção ao rio. Ainda lhe mandou um berro, mas não valeu de nada.

Daniel caminhou apressado para junto do primo. Quando chegou à sua beira verificou que não estava bem. Tinha a mão direita agarrada ao peito e abanava a cabeça visivelmente transtornado.

- Então, que se passou, Joaquim, que raio houve para aqui?

- O teu neto foi uma besta e tive que lhe espetar uma lamboirada, e agora saiu a correr por aí abaixo. - E acabou por contar tudo o que havia sucedido ao primo.

- Então, "ele é que deu com as ventas no sedeiro"...Deixa-o cá chegar, que a gente conversa... Mas que tens tu homem, dói-te alguma coisa?

- Aqui uma dor no peito.

- Vê lá isso. Queres ir para casa? É melhor ir embora! Eu vou contigo.

- E o teu neto? Estou tão arrependido...

- Eu desconfio o que ele há-de ter ido fazer. Se é para isto que conquistámos a liberdade!

- Não confundas as coisas. Ai! Eu também não devia ter dito o que disse.

- Descansa! Não penses mais nisso. Ele há-de cá chegar. Vai ter de te pedir desculpas, ai, isso vai!

- Por amor de Deus, não batas no moço. É a última coisa que te peço.

Durante o caminho, a dor de Joaquim foi-se agravando cada vez mais. Sentia já uma enorme falta de ar e perdeu os sentidos ao chegar a casa. Não mais acordou. O óbito foi declarado passado 4 horas, mas Jaime ainda não tinha aparecido.

A avó de Jaime andava numa inquietação, por todo o lado à procura do rapaz, enquanto o marido havia ficado por casa, martirizado pelo falecimento do primo e alerta para o caso de o neto chegar.

Ao longe, Jaime ouviu o sino da capela tocar à morte. Passara bastante tempo ali a ruminar na vida. Um mar de conflitos inundava a sua jovem cabeça. Ao mesmo tempo que tinha receio de voltar a casa, sentia agora uma terrível angústia, e o som lúgubre do sino agudizara ainda mais esse sentimento. Decidiu partir em direção à aldeia. Quando chegou junto ao chafariz, viu Manuel Silva, o matador, a beber água. Jaime passou e andou, mas o homem apercebendo-se do ruído de passos, inquiriu-o:

- Afinal, vais aí rapaz? Os teus avós andam numa aflição por tua causa. Vai para casa, perdido.

Jaime apressou o passo e começou a correr em direção a casa. O coração a pular. Da janela, a avó apercebeu-se da sua chegada, e precipitou-se para ele.

- Oh, meu filho, o que foste fazer, meu Deus.

- Então, avó não chore. Que se passa, por quem tocou o sino à morte?

- Foi o primo, meu filho, foi o primo Quim. Sentiu-se mal do coração.

- Oh, não! Eu não queria que isso acontecesse, meu Deus. Ai, o primo Quim!

- Anda cá para dentro. O teu avô está amargurado. Anda p'ra dentro, meu filho.

- Ó avó, o que vai ser de nós... ?

- Anda p'ra dentro. O teu avô não te faz mal. Eu já falei com ele.

Daniel tinha escutado a mulher, mais atencioso que nunca. Ele nunca fora muito de a ouvir, mas estava agora num estado completamente letárgico. A realidade tinha-o de rastos. Quando o neto chegou ao pé dele, estava com a cabeça encafuada e apoiada entre as palmas das mãos.

- Ó avô, quero pedir-lhe desculpa!

- A quem devias pedir desculpa já cá não está.

- Daniel, não digas isso ao rapaz. Sabes bem que ele não tem culpa.

- Ó avô, perdoe-me, por favor!

- Onde estiveste este tempo todo...? Não te lembraste de nós, que podíamos estar aflitos? Não estou em condições de falar contigo. Vai-te embora, vai descansar, que depois falamos.

Jaime saiu em direção ao quarto de dormir e a avó acompanhou-o.

- Anda cá. Não tens fome? Come broa com alguma coisa. Há azeitonas, marmelada, o que te apetecer. Eu não fiz comer nenhum para a ceia. Depois deita-te na cama. Eu tenho de ir ajudar a velar o primo Quim. Logo falo contigo, se estiveres acordado.

Jaime ficou no quarto. Deitado, começou a olhar o teto, pensando em tudo o que acontecera. A noite caiu como uma laje pesada. A mente do rapaz dava voltas e voltas e não saía do mesmo pensamento. O primo Quim tinha morrido e ele sentia-se culpado pela morte dele. Sentia a cabeça doer como se tivesse um peso enorme em cima dela. Mas, entretanto, foi pensando naquilo que aprendera com o primo Quim, na forma simples, leve e divertida que ele tinha de lhe explicar aquele mundo de gente um pouco estranha, que fizera com que o próprio mundo dele fosse também um pouco mais divertido. Ele que lhe dizia para ser sempre justo com as pessoas e que deveria encontrar uma forma de ser equilibrada, entre a maneira de ser daquelas pessoas, meio esquisitas, que costumava ver pela aldeia. Sorriu a olhar o escuro da noite e pediu-lhe desculpa, primeiro em silêncio, depois proferindo mesmo a frase de forma audível: - Desculpe, Ti Quim! Até sempre.

Tinham ajudado também as palavras da avó a apaziguar mais a mente do rapaz: "Sabes que o primo Quim gostava muito de ti. Era um camponês quase analfabeto, mas, à sua maneira, muito sabedor. Olha que ele nunca dizia uma asneira à tua frente. Tinha sempre muito cuidado.

Quando Jacinta chegou, perto da meia-noite, Jaime e Daniel já haviam adormecido, vencidos pelo cansaço. Foi primeiro ao quarto do neto e cobriu-o cuidadosamente, com a roupa da cama e com carinho, dando-lhe um beijo na face. Depois seguiu para junto de Daniel. O marido acordou quando ela se aproximou da cama.

- Então, mulher? Estava muita gente por lá? Acabei por dormitar um bocado. Amanhã vou cedo contigo.

- Não, não estava muita gente. Estava gente da terra, só, mais nada. Foi de repente, ainda pouca gente sabe.

O enterro foi no dia seguinte. Jaime acompanhou a avó nas cerimónias fúnebres e não saiu da sua companhia. Foi o dia mais difícil da sua curta vida.


21 DE MARÇO DE 2023


Jaime nunca conheceu verdadeiramente os pais. Nem os pais, nem os padrinhos. Havia-os perdido num fatídico acidente de carro, numa viagem de regresso do Santuário de Fátima, quando tinha apenas ano e meio. Pensava muitas vezes neles, mas era mera idealização da sua cabeça. Na verdade, só se lembra de ter visto duas fotos do casamento, e os avós tinham sempre evitado falar no assunto, que se tinha tornado quase um tabu.

Com 16 anos, começou a praticar karaté em Coimbra, incentivado por uma colega de trabalho que viria a tornar-se, primeiro, sua namorada, e depois, sua esposa, Flora, mãe dos seus 3 filhos. Nessa altura já o avô tinha também morrido, resistindo pouco mais de 2 anos à morte do primo Quim. A avó Jacinta foi o único verdadeiro apoio familiar que lhe restou, tendo vivido em casa do neto até falecer, em 2003, com 92 anos.

Jaime, jamais se esquecera das palavras do primo Quim : "Vês como os vimes são fortes mas maleáveis para não partir? Hás-de ser forte e flexível como o salgueiro." Aplicava muito frequentemente esta metáfora, durante as suas aulas como instrutor de artes marciais, a sua principal atividade profissional. No seu pomar, encostado à moradia onde vivia com a sua esposa, plantou um exemplar daquela árvore, também conhecida como vimeiro. Tratava dele e regava-o com bastante frequência. Era como se fosse todo o cuidado que queria ter dado ao primo Quim. Ali pelos meados do inverno podava-lhe os ramos todos e guardava sempre um feixe de vimes que metia dentro de água, para se manterem mais tempo flexíveis. E quando precisava de colocar um tutor numa árvore ou atar a ramada de kiwis, usava-os. Estava a preparar-se para plantar uma árvore no jardim japónico que mandara construir recentemente. A esposa, que era professora primária e praticante de ioga, oferecera-lhe um ácer anão, de cor bordô no dia de aniversário. Tanto ele como Flora adoravam a cultura oriental, especialmente, tudo o que tinha a ver com a nação nipónica. A preferência pelo jardim japónico estava relacionada com as tendências para as escolhas mais ecológicas, com muita poupança, recirculação e depuração de água e criação de um pequeno lago para desenvolvimento de um jardim mais vivo, com a presença de peixes e outros seres vivos aquáticos. No dia da árvore, Jaime gostava de plantar sempre alguma coisa, de preferência uma árvore ou arbusto. Era uma data com muito simbolismo para ele, por vários motivos. Para além de ser um motivo de comunhão com o mundo natural em que punha em prática o tanto que o avô Daniel e o amigo e primo Quim lhe haviam ensinado.

Flora aproximou-se lentamente de Jaime. Ele apercebeu-se do leve ruído da sua chegada, mas simulou estar distraído, sentindo as mãos macias da esposa a tapar-lhe os olhos.

- Que está a fazer o meu pão?

- Estava à espera da minha Flora.

Ela, calmamente, libertou-o do seu abraço meigo.

- Estive a olhar para ti a usar esses vimes do salgueiro. Posso falar disto também no meu trabalho sobre usos ecológicos, para mostrar aos meus alunos.

- Sim, tens razão.

- Ia pedir-te para me explicares como se faz. Há quanto tempo é usada esta planta? O que me souberes dizer, enfim...

- Não sei há quanto tempo, mas podemos investigar sobre isso. E doutros usos para além deste.

- Tem mais usos ainda?

- Sim. Cestaria, por exemplo. E com certeza não há memória disso.

Flora pegou no seu smartphone e ligou os dados móveis. Colocou a palavra vimeiro no motor de busca. Começou a ler um dos sites que lhe apareceu:

- Aqui diz que a planta tem vários nomes. Um deles é salgueiro-francês. O nome científico é Salix viminalis L. "A planta apresenta um ar dramático depois de podada"

- É uma planta "dramática", mesmo a condizer com a tua história.

- Tens razão, não podia ser mais a propósito. É uma planta que me traz tanta recordação.

Prefiro muito mais usar estes métodos para este fim, do que os atuais: fios de plástico, cordéis, etc, etc. É tão mais belo. É rústico, é verdade, mas, mesmo assim, consegue ser tão elegante.

Flora aquiesceu:

- Realmente, há coisas que são intemporais!

________

NOTA DE AUTOR

O conto intitulado Forte e Flexível Como o Salgueiro é inspirado numa realidade rural de há cerca de seis ou sete décadas a esta parte. É um trabalho de ficção e as personagens são também fictícias. Qualquer semelhança com factos ocorridos é mera coincidência.

NOTA DO EDITOR 

Visite também (no Facebook) a página CARVOEIRA, TERRA AMIGA


01 dezembro 2022

O rio Mondego na poesia de Ulisses Baptista

Regresso às Origens é o título do novo livro de poesia de Ulisses Baptista, autor penacovense. Já em 2012 havia publicado Meu Rio de Prata, uma “Breve História de Penacova e suas Tradições”, de acordo com o subtítulo desta obra, toda ela traduzida em estrofes de quatro versos, num total de cento e oitenta e três.

Agora, além da temática do Rio Mondego, Ulisses Baptista, Engenheiro do Ambiente, reúne um conjunto de cinquenta e um poemas onde se cruzam recordações de infância, passada na Carvoeira, preocupações ambientais e sentimentos perante a Vida e a Natureza.

Além das duas poesias sobre o Mondego, que transcrevemos, encontramos também o poema “Lembranças do Mondego”. Fica um excerto: “Nunca julguei que um dia ao te domar / O Homem, que tem voz no meu lamento / Servisse pra tão só te ver passar”.

Ulisses Baptista vem publicando textos em prosa e em verso na página do Facebook “Carvoeira, terra amiga”, de que é administrador. Um espaço que tem como conteúdo as “histórias e as lendas”, bem como, “fotos e factos sobre a Carvoeira, seus lugares e suas gentes”.


MONDEGO, MEU RIO DE PRATA

Meu rio de prata,
Outrora fecundo,
Morro de saudade,
Por não me rever
No que te fizeram.
Que é feito de ti
Meu rio de prata?
Águas cristalinas
E areias tantas,
Taludes orlados
Com moitas de junco.
Meu rio de prata,
Outrora fecundo,
Que há em ti que eu veja:
Um simples canal,
E ao largo os montes
E o azul do céu,
Não em ti espelhado.
Mas tu, um príncipe folião,
Perdeste a garra
Neste canhão.
Meu rio de prata,
Bem que eu te queria
Como eras dantes:
Seixos roliços
Postos ao acaso
E tapetes de erva,
Que pisei descalço,
Porque era criança.
E criança fui
E em ti me fiz homem
E assim me deixaste,
Meu rio de prata,
Outrora fecundo.


MONDEGO

Tinhas as orlas espraiadas
Em linhas ténues nas areias,
As curvas pouco fechadas
No correr das tuas veias.
Por ti se encantaram povos,
Distantes na madrugada,
Que vieram trazer aos novos
Mensagens de paz velada.
Revoltoso no Inverno,
Quando inundava as terras,
E as águas, num inferno,
Vinham do cimo das serras.
No auge da estação quente,
A cor da prata no leito,
Límpido e transparente,
Num panorama perfeito.
Em ti refletiam as cores,
O celeste azul do céu,
As praias desses amores
Que tanto poeta escreveu.

E quando a força bruta
Trouxe o mal que te quebrou,
A beleza, em forma astuta,
Ainda assim nos encantou.



20 janeiro 2022

Conto: A Bela Carvoeira

Administrada por Ulisses Baptista a página do facebook "CARVOEIRA TERRA AMIGA" tem vindo a publicar excelentes apontamentos sobre esta localidade da freguesia de Penacova. Com autorização do autor (como não poderia deixar de ser) publicamos o conto "BELA CARVOEIRA"



A BELA CARVOEIRA

(Conto)

Ulisses Baptista

- Acorda, homem! O teu irmão desespera. Há quanto tempo te chamo, António?
- Ó avó, perdoe-me! Há quanto tempo aqui estou assim?
- Não sei, filho. Essas reuniões com os homens da vila andam a fazer-te mal.
- Não é nada avó.
- Preciso de falar contigo, depois. É coisa séria. Ouviste?
- Está bem, pronto, já sei, avó.

António levantou a cabeça de cima da mesa. Estava a cabecear depois de ter permanecido num sono profundo. Perturbado, pela responsabilidade de ter de ir auxiliar o irmão, levantou-se num repente, pensando em como se havia deixado estar ali naquele propósito. Pegou um pedaço de pão de cima da mesa e saiu porta fora a correr em direção ao rio.
- Até mais, avó, falamos melhor quando regressar.
- Vai com Deus, meu filho. Deus vos abençoe!
Pedro Tomás tinha a barca atracada no Porto da Carvoeira. Trazia sal e pescado. Sardinha ainda fresca, em sal, e bacalhau salgado que chegara da Figueira da Foz. Pedro pediu às mulheres que se encontravam em terra para se aproximarem.
- Levem estas duas cestinhas, foi o que pude arranjar.
As mulheres obedeceram, aproximando-se.
- Homessa, o inverno irá ser duro! -disse a mais velha.
- O trigo é escasso e o vinho este ano é fraco. Chuva a mais, não ajuda a guardar nada. Digam ao António para vir, ele já cá deveria estar. A Foz do Alva espera-nos e temos ainda que carregar a barca. Amanhã partiremos cedo.
Pedro estava distraído a enrolar as cordas e dar alguma ordem ao convés quando António chegou. O barulho de passos próximos fez Pedro desviar a atenção.
- Pareces preocupado! Que te apoquenta? -dirigindo-se ao irmão recém chegado.
- Cansaço apenas. Preciso de um pouco de vinho.
Pedro tirou o espicho à pequena vasilha de madeira e serviu uma malga de vinho ao irmão.
- Não está muito fresco, mas bebe-se.
António provou o vinho fazendo uma careta:
- Podes beber o resto. Não quero mais.
- Não estou a reconhecer-te!
- Está quente, não gosto de vinho quente. Já é fraco. Espero que dure até termos vinho novo.
- Preocupa-me mais o pão. Há pouco centeio. O trigo já vem todo de fora, mas é muito caro no mercado. Não se pode comprar.
- Temos que seguir rio acima. Vamos falando enquanto navegamos. Temos muito que falar.
- É tudo cansaço, homem de Deus?
-Não, é fome, mesmo, e a cabeça tonta do que ouvi, mas preciso contar-te um segredo.
- Novidades? Nunca tiveste segredos comigo. Que segredo é esse?
-Temos agora 35 anos, fazemos diferença de 3 meses, mas nunca questionámos isso.
- Não. Realmente, algo não bate certo.
- Ontem tive uma conversa com a tua avó.
Pedro olhou de soslaio para António, nunca ouvira o irmão referir-se assim à avó de ambos.
- A minha avó e a tua, não?
- Que pensas sobre o nome do lugar?
- Está bem. Há aqui carvoeiros.
- Mas não são assim tantos, há outros ofícios. E os carvoeiros também são camponeses. -retorquiu António.
- Parecemos fidalgos a falar. Deixa-te dessas conversas.
- Bem, a verdade é que os fidalgos parecem gostar muito destas paragens. Eu não sou teu irmão. -disse António, bruscamente.
-Estás parvo. Que conversa é essa?
- É o segredo que te queria contar.
- De quem és filho, então?
- Sou filho de um fidalgo e de uma carvoeira, que, na verdade, nunca o foi.
- E quem te contou isso?
- A tua avó Ana, já te disse. Assim mo contou ela:
" A tua mãe era a mulher mais linda do povoado, morria de amores por um fidalgo que aqui costumava vir às terras de Penacova, mas que se perdia muito por aqui, porque, um dia, meteu os olhos em cima dela, e nunca mais descansou enquanto não a desencaminhou. Para falar a verdade ela também não descansou enquanto ele a não desencaminhou. D. Nuno Mendes Godinho era capitão de ordenanças da casa dos Ataídes, e desde 1421 que as terras de Penacova pertenciam a essa família dos Ataídes, uma gente abastada que também conspirou contra o rei D. João II. Como sabes, o senhor de Penacova é agora Afonso de Noronha, quarto Conde de Odemira, por se ter casado com D. Maria Ataíde, há uma meia dúzia de anos. Afonso de Noronha era filho de Sancho de Noronha, terceiro Conde de Odemira, amigo íntimo e parente de um navegador genovês que esteve a viver no reino alguns anos. O mesmo que dizem que descobriu as Índias Ocidentais. Muitos dessas famílias e de outras da nobreza fugiram para Castela e deram guarida ao dito navegador. Não sei como, este senhor que se encantou com a tua mãe, contava-lhe muitas destas coisas, em segredo. Ele dizia-lhe que temia pela morte, depois do rei D. João II ter descoberto que conspiravam contra ele. Poucos meses antes de tu nasceres, ele nunca mais cá apareceu. Ninguém sabe ao certo se ele foi preso, morto ou também fugiu para Castela. O que toda a gente sabe é que o rei D. João II teve sempre a nobreza debaixo de olho e nunca perdoou o que lhe fizeram, muito menos que os maiores nobres portugueses se tenham acolhido junto dos reis de Castela e tenham partilhado, com eles, os melhores conhecimentos e instrumentos de marear."
- António, isso parece uma história do arco-da-velha. Mas acredito na avó. Porque nunca ninguém nos falou nisso?
- Parece que tiveram medo das consequências. Tinham medo que pudéssemos sofrer represálias. Por isso, adotaram-me como se fosse da família, depois da minha mãe ter morrido quando me pariu.
- O rei D. João II foi um rei justo, todos sabemos. O povo e os mercadores costumam lembrar que só queria o bem da nação. Pena ter morrido novo. - disse Pedro a António.
- Sabes que não ligo muito a essas coisas, não sabes? Acho que nós só existimos para trabalhar para eles, é o que eu acho.
- Não achas também que estas terras que estão em baldio já deveriam estar preparadas para cultivo do tal milho grosso que veio das Índias?
- Acho que sim, e tenho feito pressão para isso junto dos representantes do concelho. Parece que na parte baixa do reino há já campos cheios deste novo cereal. - lembrou António.
- Pelo que se vê, pode ser uma boa ajuda para matar a fome ao povo e ao gado, e há mesmo quem use partes da planta para encher almofadas e colchões.
- Que é uma cultura mais rápida no desenlace, mas um pouco mais necessitada de acompanhamento, isso parece ser também verdade.
- O trabalho é o menos. Se houver o que comer, o povo trabalha. Estamos em Agosto, há carência de trigo, resta-nos, por agora, o centeio e a cevada. O carroceiro Manuel contou-me que há muita fome por lá para a terra dele.
- Por vezes, desespero, Pedro, a vontade que dá é abandonar as terras e ir trabalhar para a urbe. Os terrenos que estão à beira rio só têm servido para pastagens no Verão, por serem muito alagadiços no Inverno. As casas senhoriais continuam a chamar a si essas terras, e é preciso continuar as obras para impedir a passagem de tanta água e o assoreamento.
- Penso que nunca vamos poder usá-las para trigo ou centeio, mas podiam bem servir para o milho grosso. Dizem que esta cultura parece pedir, no tempo quente, muita água, especialmente nos anos mais agrestes.
- Espero que o concelho também se possa desenvolver mais a esse nível. Ainda assim, o esforço maior é sempre do povo. Somos nós que temos de trabalhar quase de graça para eles.
- Deixa-te de política, por agora, e conta lá o que disse mais a avó. Seja como for, não vou deixar de ser teu irmão só por causa disso.
- Nem eu, muito menos. A avó Ana é como se fosse nossa mãe. Ela conhece-nos tão bem. Quando me contou o início fiquei espantado. Aguarda para ouvires o resto:
"D. Nuno Mendes Godinho conheceu a tua mãe, ainda moça, e logo se encantou pela sua figura. Quando chegava perto do povoado, prendia o cavalo, junto à Ermida, num dos dois ciprestes; deixava que o cavalo matasse a sede no bebedouro de pedra e aguardava pela descida das lavadeiras. Quase sempre via a filha do carvoeiro, como era conhecida no povoado. Maria era bela como ele nunca vira beleza igual. Apesar de plebeia, sabia cuidar-se muito bem. Ao entardecer, já lusco fusco, gostava de sentir a água morna do Mondego, no tempo quente, a cair suavemente sobre si, o cabelo escuro, solto e molhado a delinear a curva dos seios, enquanto se aninhava, de cócaras, alagada de água até à cintura. Quase não havia dia que não cumprisse o seu ritual, que era também o ritual de muitas outras mulheres, embora não com a frequência que ela o fazia. Era recatada ao ponto de escolher sempre um local diferente para se furtar aos olhares curiosos, apesar dos mancebos se juntarem, à coca, atrás da vegetação.
Maria era bem torneada, duma elegância desconcertante; trigueira, habituada a ter o sol na pele, fruto do seu contacto com o campo e acostumada às lides domésticas, mas livre para decidir por si o que fazer. O mais triste é que, com ela, aconteceu o mesmo que acontecera à sua mãe, que também morrera quando a dera à luz. Parecia uma maldição. O marido permaneceu num luto amargo, durante mais de uma década, embora sempre preocupado de o esconder da filha, a bela Maria, uma encarnação da mulher, que fora a luz dos seus olhos. Era um pai amável, incapaz de lhe falar com modos graves, mas protetor, e até achava graça aos seus costumes. Chegou a dizer, algumas vezes, a quem lhe falava na filha, que era tão bela que temia um dia que fosse levada por um burguês ou um fidalgo.
E um dia aconteceu que se cruzaram com o olhar. Aqueles olhos amendoados enfeitiçaram o fidalgo. Ela pensava, em segredo, como seria se ele a levasse a cavalgar no seu cavalo; sempre sonhara na liberdade de percorrer os caminhos em torno do lugar, com os cabelos escuros e sedosos ao vento. Costumavam falar às escondidas, apesar de os olhares curiosos os surpreenderem muitas vezes. Eles disfarçavam sempre, e pensavam que ninguém sabia verdadeiramente que estavam enamorados. Um dia fez-lhe uma proposta. Ele sabia que era perigoso ser visto com uma plebeia, mas a sua beleza enlouquecia-o. Maria apaixonou-se pelo seu príncipe e ele chamava à sua donzela, «a bela carvoeira»:
- Queres andar comigo a cavalo? - perguntou D. Nuno a Maria.
- Não. Acho que não estou preparada, disse-lhe Maria com ar trocista.
- Porquê?
- Não sei. Tenho medo.
- Medo de quê, de mim?
- Não. Acho que não és capaz de me fazer mal. - desafiou, Maria, com um sorriso.
- Então, monta. És capaz?
Ela, com uma agilidade de o deixar de boca aberta, montou para o cavalo, atrás das costas de D. Nuno, e agarrou-se a ele com força.
- Estás preparado? Eu estou pronta.
- Segura-te bem!"
Pedro estava surpreendido ao ouvir o irmão contar-lhe o que a avó lhe contara a ele mesmo. Nunca imaginara que ele pudesse ter sangue nobre. A viagem rumo a cima, à Foz do Alva, correra sem sobressaltos. Tinham sido ajudados a descarregar o sal por dois homens do comprador. A barca vazia deslocava-se agora rio abaixo, com fluidez.
- Imaginas o que aconteceu a seguir, não imaginas? - perguntou António.
- A tua mãe casou às escondidas com o fidalgo.
- Achas isso possível? A vida esquentou para eles, mas não a esse ponto.
- Quanto tempo conseguiram viver aquela história de puro amor?
- A avó não sabe ao certo, mas ele engravidou-a pouco tempo depois do primeiro encontro a sério; ele gostava muito também era de conversar com ela, como me contou a avó:
" António, acredita que a tua mãe deve ter conversado muito com este fidalgo; para além de tudo o mais que eles fizeram, mal ou bem feito, eram verdadeiros confidentes um do outro. Ela contou-me estas coisas todas nos últimos meses de gravidez. Implorou-me que a ajudasse e que não deixasse que ninguém te tirasse, nem do ventre, nem depois de nasceres. Tinha escolhido o mesmo nome do pai para te dar quando nascesses. Só te não pusemos esse nome para te proteger.
Como já te disse, depois das conspirações contra D. João II , muitos dos nobres envolvidos, bem como os seus cúmplices, foram mortos ou presos, enquanto aqueles que escaparam procuravam refúgio em Sevilha, ao abrigo da corte castelhana.
A indústria naval precisava de muita madeira e muitas terras do reino estavam a ser exploradas para esse fim. As terras de Penacova tiveram a mesma sorte, e como sabes, ainda hoje é pior.
As cortes querem continuar a viver sempre de forma rica e faustosa, enquanto a população empobrece, com um Império para manter. Mas, como bem sabes, D. Manuel I passou a governar tentando percorrer o mesmo caminho trilhado pelo seu primo e cunhado, que tirara inúmeras regalias à nobreza. A morte de D. João II, em 1495, e a do seu filho Afonso, quatro anos antes, que seria o seu sucessor legítimo, foram vistas como suspeitas. D. Afonso teria sido um sério candidato a governar também a coroa de Castela, uma vez que aquela estava, na altura, a atravessar uma crise de sucessão, e o jovem príncipe havia casado com a herdeira do trono de Castela, D. Isabel.
Ao contrário de seu pai, D. Afonso V, D. João II exercera o seu reinado com pulso de ferro. D. Afonso V, concedera enormes regalias à alta nobreza, teve um reinado bastante longo em que a nobreza se sentiu adulada e privilegiada. Este rei governou alimentando sonhos de expansão, idolatrando e beneficiando também o alto clero. Parece ter ignorado que o mundo estava em mudança, sem dar grande valor ao desenvolvimento mercantil e à modernização que se fazia sentir e que estava a mudar o modo de vida e de pensar das pessoas. Para ele, o esforço feito pelos portugueses nas suas viagens marítimas só poderiam fazer sentido se se cumprissem as suas ilusões fabulosas. Por seu lado, o filho, D. João II, viera a governar de forma arguta e inteligente, pretendendo orientar o reino para a modernidade. Aqueles que não lhe quiseram seguir os passos foram avisados. Entre os seus mais diretos adversários estavam os membros das famílias nobres mais importantes do reino. Quando o rei descobriu a primeira conspiração, mandou cortar a cabeça ao duque de Bragança, cuja família era a mais interessada em tirar D. João II do trono. Na segunda conspiração, poucos meses depois, o principal mentor era o seu primo e cunhado, D. Diogo, duque de Viseu. D. João II queria que o reino se desenvolvesse e, para tal, era necessário conceder direitos aos representantes dos concelhos, sempre com a supervisão do poder central. Era necessário modernizar o reino e continuar a campanha de comercialização com outros povos longínquos, através das novas rotas comerciais marítimas. Quando D. Manuel I chegou ao poder, após a morte do cunhado e primo, embora tentasse continuar com algumas das políticas do anterior governante, apoiou o regresso da maioria dos nobres que tinham estado exilados, e restitui-lhes as terras e os títulos que haviam perdido. Foi um rei que continuou a apoiar a expansão marítima e concedeu forais novos a muitas cidades e vilas, entre as quais, Penacova, em 1514. Foi fruto disso que a região, especialmente nas zonas ribeirinhas, também se começou a desenvolver, tendo começado a ser edificadas obras de reabilitação dos terrenos marginais ao rio Mondego.
Tu nasceste em 1483 e o teu pai nunca mais foi visto por aqui. É natural que tenha sido apanhado pela argúcia de D. João II, e tenha levado por tabela. D. João II era um rei sem medo, que não teve qualquer problema em apunhalar com as próprias mãos o Duque de Viseu. Apesar de algumas das mais altas figuras da nobreza o terem traído, ele descobriu em pouco tempo quem o quis prejudicar porque tinha também homens fortes do lado dele. Na altura todo o reino soube do sucedido e a sua coragem e lealdade ao reino, bem como a sua responsabilidade, para com os seus súbditos, foram muito faladas.
O teu pai pôde muito bem ter sido apanhado nas malhas do poder de D. João II. Só Deus sabe o que ele também teria andado a tramar para isso ter acontecido. Ou até talvez ele possa ter sido vítima por estar do lado errado. Mas a tua mãe manteve sempre uma grande esperança nas promessas e nas palavras de D. Nuno. Ela era ainda jovem quando tu nasceste, tinha acabado de fazer 18 anos. Ele parecia uns anos mais velho. Talvez tivesse mais 10 anos do que ela, mas tinha uma figura imponente e elegante. Acho que ela se apaixonou por ele assim que o viu."
- É uma história triste, irmão! A tua mãe não teve grande sorte, mas viveu a vida intensamente.
- Concordo contigo. E o que tiramos da vida é mesmo isso, vivê-la intensamente.
- E nós? Vamos para Coimbra logo cedo?
- Acho que é melhor não deixar aqui a barca carregada muito tempo. Dormimos duas ou três horas e partimos.
António e Pedro haviam acabado de carregar a barca com a ajuda das mulheres que, durante o dia, tinham também estado a transportar lenha, à cabeça, para o Porto do rio, embora a maioria tivesse chegado de carro de bois. Era um trabalho árduo e esgotante.
Partiram pela madrugada, depois de terem dormido algumas horas na própria barca. Estava uma noite amena, mas com uma leve brisa de vento frio e inconstante, que criava arrepios ocasionais. Só ouviram os galos a cantar já ao passar a Rebordosa, ainda fazia muito escuro.
António ia ao leme quase sonolento, havia largos minutos que sentia uma força enorme a baixar-lhe as pálpebras.
O irmão gritou por ele no meio da escuridão da noite: - António, quero-te ao leme, irmão!
O murmúrio da água a correr foi a única resposta.
- ANTÓNIO, OLHA O LEME!
António não reagiu a tempo, o estrondo da barca, a partir-se em duas contra o penedo bicudo, fê-lo reagir automaticamente e ele sentiu os braços fortes de pedra a jogá-lo borda fora, enquanto embatia com estrondo com a cabeça na água fria, a dor aguda a fazê-lo acordar, definitivamente, ensopado em água.
- Então meu filho, estás melhor? - perguntou-lhe a avó, preocupada.
- Acho que as febres baixaram, mas dói-me a cabeça. Parece que levei um coice de uma mula.
- As cataplasmas de salgueiro devem ter-te feito bem. Espero que fiques bom depressa.
- E a Maria, avó, e o menino?
- Não te preocupes, meu filho, estão bem. É melhor não virem à tua beira. Ainda é cedo. Logo hão-de vir aqui perto da porta para te falar. O teu irmão é que passou há pouco, ainda gritou duas vezes por ti, dali da porta, mas estavas ainda a dormir e parecias bastante agitado, e eu disse-lhe que era melhor passar depois.
- Fez bem avó, tive um sonho terrível.
- Bem me pareceu, pelo tua aflição a respirar.
- Avó, é verdade que a nossa terra se chama assim por causa da minha mãe?
- É verdade, sim. A tua mãe era muito bela e o povo costumava dizer que vinha à terra da carvoeira. Daí passou a dizer apenas que vinha à carvoeira, e o hábito pegou.
- Então e os cravos nas lousas às janelas, não contribuíram para nada?
- Contribuíram para alindar a aldeia toda, porque a tua mãe era muito extremosa nesse gosto de ter sempre cravos bonitos. Foi ela que levou toda a gente a querer enfeitar assim as casas.
- Sabe que sonhei que o meu irmão era Tomás e que nós não éramos irmãos. Que éramos quase da mesma idade. E que eu tinha sido adotado pela família dele.
- Mas tu e ele são bem Godinhos.
- Eu sei avó. Mas nos sonhos tudo é possível. Aquele fidalgo que vinha aí à terra antigamente não se chamava D. Nuno?
- Sim. Mas não mais foi visto por aí.
- No meu sonho, ele era meu pai e a minha mãe era uma rapariga muito bonita da aldeia, filha do meu pai.
A avó de António soltou uma risada meio abafada.
- Bem, na verdade, esse fidalgo quis um dia dar conversa à tua mãe, mas o teu pai era um calmeirão que impunha respeito e era bastante ciumento. Só a presença dele já assustava qualquer um que se atrevesse sequer a aproximar dela. Infelizmente, não conheceste a tua mãe. Foste aleitado por outra mulher e criado por nós.
- E o antigo nome da aldeia, Vila Nova dos laranjais, donde provém?
- Ah, isso é outra história. Mas é melhor descansares, agora. Ainda estás muito fraco. Bebe esta água de freixo morna para te baixar mais as febres. Esse assunto fica para outra altura.
Fim
Carvoeira, terra amiga.