27 setembro 2016

AINDA A 3ª INVASÃO FRANCESA: o sofrimento das populações nas proximidades de Arganil

Em complemento dos textos que publicámos recentemente sobre algumas das repercussões da 3ª invasão francesa no concelho de Penacova, apresentamos hoje o relato de um padre de Arganil que nos dá uma imagem do terror que se viveu na Beira Serra. Arganil, Poiares, Góis, Lousã foram concelhos muito martirizados. Entre nós, e como já vimos, foram também as freguesias do Alto Concelho, mais próximas daquelas zonas, que mais sofreram, bem como as aldeias da freguesia de Penacova vizinhas de Poiares. 
Que seja do nosso conhecimento ainda não existe nenhum estudo sobre o concelho de Penacova. Os nossos apontamentos resultaram da consulta dos relatos feitos pela mão dos  párocos e/ou arciprestes, em 1811, e  que se encontram disponíveis no Arquivo da Universidade. Sobre a região que vai de Pombal até Gouveia, já se debruçou a historiadora da Universidade de Coimbra, Maria Antónia Lopes.  É desta investigadora o texto que passamos a transcrever:
Mapa publicado no estudo citado de Maria Antónia Lopes

“Em Março de 1811 os Franceses iniciaram a retirada. Desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, levaram as atrocidades ao último grau, apanhando as populações em fuga, a quem torturavam e matavam para lhes extorquir víveres. Coimbra foi poupada, pois Massena não conseguiu entrar na cidade. Conduziu então os seus homens para Espanha pela margem sul do rio Mondego, onde a carnificina prosseguiu. (…) Por esta altura, a 23 de Março de 1811, o padre Manuel Gomes Nogueira, em carta ao seu irmão José Acúrsio das Neves, relata-lhe o que tinham sofrido na zona de Arganil às mãos dos invasores. A citação é longa, mas justifica-se:

Os primeiros que nos acometeram, foi em 14 de Fevereiro, aparecendo de repente em Góis uma divisão [...] e somente junto da vila se deu notícia deles, e se não fosse um homem que os viu entravam sem serem vistos.
No pequeno espaço que mediou até eles se apresentarem defronte da terra, se ajuntaram algumas espingardas que de dentro da vila fizeram fogo para além da ponte e eles se retiraram e deixaram 7 ou 8 bois que os de Góis lhes tomaram e logo puseram a salvo para a freguesia de Cadafaz. Mas os malditos se foram unir com outros que tinham ficado mais atrasados, entraram na vila e fizeram as barbaridades do costume [...].
 No dia 17 do mesmo Fevereiro estiveram também a pontos de entrar em Arganil, sem serem pressentidos, pois tendo-se retirado a 15 de Góis para Serpins, com imensos gados e roubos de Góis, Várzea [de Góis, actual Vila Nova do Ceira] e toda a Serra de Santa Quitéria, estava Arganil mais sossegada, mas no dito dia 17, que era domingo, de manhã ao sair da primeira missa, chegou a noticia de que já vinham na Ribeira da Aveia (vê agora o perigo que houve, se entravam enquanto se estava à primeira missa). Ninguém se persuadia de tal por ser voz só de um homem, mas veio segundo, que confirmou o primeiro, e então se pôs tudo em reboliço e fugida, e eles entraram de repente, como galgos atrás da gente, e imediatamente subiram ao Casal [da] Nogueira e se espalharam pelos montes, vales, pinhais, mataram 5 pessoas e feriram muitas [...].
 Estiveram neste dia em Arganil somente 2 para 3 horas; passaram a Celavisa, onde mataram e fizeram o mesmo que em Arganil [...].
No dia 12 de Março tornaram a entrar os Franceses em Arganil. No dia 14 subiram à serra no lugar da Aveleira [...] onde apanharam muitos gados, vieram sobre Adela e fizeram cerco a toda a ribeira de Celavisa, onde não ficou moita que não fosse mexida […].
Estiveram sempre passando Franceses todos os dias seguintes, ora mais ora menos, até que no dia 17 foi a maior enchente de cavalaria e infantaria, e então foi a destruição de Arganil. Mataram 10 pessoas que ainda apanharam”. [...]
“No dia 19 logo de manhã me constou aqui da chegada das nossas tropas [...]. Desci logo à vila [Arganil] e fui dos primeiros que lá entrámos depois dos Franceses. Corri as casas dos nossos amigos e as igrejas todas e causava horror ver semelhante confusão: as portas quebradas, as casas não pareciam senão uma confusão, trastes despedaçados, tudo revolto, nada em seu lugar, as lojas cavadas, quantos esconderijos se tinham feito para cada um refugiar o que podia, tudo descoberto, pelas ruas louças quebradas, animais mortos, uns inteiros, outros em pedaços, de outros só as entranhas com fétido por toda a parte.
Parti logo para o Sarzedo e por toda a estrada abaixo eram os mesmos vestígios de animais mortos” [... Em] Sarzedo fizeram muita carnagem, porque os habitantes como lá não tinham ido Franceses não se acautelaram a si nem aos seus gados; e, portanto, perderam tudo e morreu muita gente: o número não o posso ainda dizer, mas consta-me que morreram famílias inteiras”. “
... Agora o que mais deve lamentar-se é a fome, porque não só os pobres, mas também os ricos não têm coisa alguma que comam, porque por onde passou a tormenta nada absolutamente ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de hortaliças. E se alguma coisa escapou ao inimigo, o limpou a nossa tropa e assim mesmo os pobres soldados vão mortos de fome.”

FONTE: Maria Antónia Lopes, Sofrimentos das populações na terceira invasão francesa. De Gouveia a Pombal *    (Publicado como capítulo in O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III - 2010-2011), Lisboa/Parede, Exército Português/Tribuna da História, 2011, pp. 299-323). 


24 setembro 2016

A 3ª INVASÃO NO CONCELHO DE PENACOVA (III):o sofrimento das populações massacradas, aterrorizadas e espoliadas

Temos vindo a fazer referência aos relatórios elaborados pelos párocos e arciprestes da diocese de Coimbra,[(I) e (II)] dando conta dos “Estragos, incêndios e mortes causados pelo exército na invasão de 1810- 1811”, documentos que se encontram no Arquivo da Universidade de Coimbra.
Recorde-se que, na época, as paróquias que hoje pertencem ao concelho de Penacova estavam integradas nos arciprestados de Sinde, Arganil e Mortágua. Analisámos já as freguesias de Farinha Podre, S. Paio de Farinha Podre e Travanca de Farinha Podre. Vamos agora fazer alusão às freguesias de Oliveira do Cunhedo, Paradela, Friúmes, Penacova, Lorvão, Sazes, Carvalho e Figueira de Lorvão.

Em Oliveira, o Padre Miguel Rodrigues Marques da Silva refere que a incursão dos invasores, ocorreu tal como em Travanca, por duas vezes:  em Setembro de 1810 e em Março de 1811. O relato é sucinto mas ficamos a saber que também aqui houve mortes: 3 homens e 1 mulher. “Roubaram quanto acharam” na igreja, nas capelas e nas casas da freguesia: alfaias religiosas, roupas, gado, “grãos”… As casas principais foram incendiadas. Estima-se que os prejuízos ao nível da freguesia foram de 30 000 cruzados.
Em Paradela, os estragos na igreja foram significativos. Destruíram e roubaram paramentos, “quebraram a cabeça ao Menino da N. Sª do Rosário” e “escavacaram o Trono, o Altar-Mor e o Sacrário”. A residência paroquial e anexos foram queimados “com quanto tinha dentro delas”- escreve  o Cura José Joaquim de Oliveira e Silva. Na sede da freguesia queimaram 16 casas, na Cortiça 4 e uma na Sobreira. O fogo consumiu também “oliveiras e castanheiros, pipas, dornas, balceiros, arcas, mesas, tamboretes, cadeiras e todos os mais trastes”. Queimaram ainda, todos os livros de Assentos, Pastorais e outros documentos.
Roubaram “todo o grão, vinho e azeite”, roupas e hortas. “Estragaram as vinhas e searas de trigo, centeio e cevada”. Também “levaram a maior parte dos gados, quando já iam de fugida”.
Os prejuízos foram estimados em 100 000 cruzados.
Assassinaram, em Paradela, Manuel Carvalhinho, com cerca de 80 anos, e também Isabel Henriques, com a mesma idade. Na Sobreira mataram António Silveira com 40 anos e ainda Isabel de Lemos, viúva, com 50 anos. Ainda apanharam algumas mulheres “que logo lhes escaparam “ mas presume-se que todas aquelas “que tiveram a desgraça de cair nas mãos do inimigo” tenham sido violadas.
Na freguesia vizinha de Friúmes a “Relação dos Stragos dos Inmigos” foi elaborada pelo pároco José da Silva Pereira em 24 de Julho de 1811.
Foram cerca de 15 as casas incendiadas. Segue-se a enumeração dos nomes dos proprietários. Queimadas também a Igreja e a Capela do Espírito Santo de Vale do Tronco, que acabou por ser demolida. Da Igreja roubaram paramentos e o “Cálix” da Confraria, bem como “a sua patena”.
Os “indivíduos açacinados pelo Inmigo” foram 10: 6 homens e 4 mulheres. Os nomes estão lá. Outros escaparam por pouco: Luís António levou um tiro na cara e João dos Reis “foi enforcado na Igreja, escapando milagrosamente à morte.” 
Os roubos foram inumeráveis: 600 cabeças de gado, 800 alqueires de milho, trigo, centeio e feijão. Cerca de 10 pipas de vinho e 60 alqueires de azeite.
Os elementos sobre a freguesia de Penacova constam de um o caderno que contém 19 folhas. É também neste documento, compilado na Mealhada pelo respectivo arcipreste Padre Joaquim Lebre Teixeira, que encontramos os dados relativos  às freguesias de Lorvão, Sazes, Carvalho e Figueira de Lorvão.
Nem toda a freguesia de Penacova foi atingida: Felgar, Travasso, Sanguinho, Ferradosa, Hospital, Balteiro, Riba de Baixo e Riba de Cima foram alguns dos lugares mais afectados. O Felgar terá mesmo sido completamente incendiado.
Os roubos foram pesados. Gado, porcos, fruta. Na capela do Travasso “furtaram o cálice e todos os ornamentos”, bem como na capela de Riba de Cima. Referem-se 8 mortos: cinco homens e três mulheres.
Relativamente a Lorvão o texto é curto. Fala-se em 4 homens assassinados. Os roubos não terão sido muitos e foram principalmente “roubos sacrílegos”. Refere-se o Roxo e o Caneiro onde foram roubados paramentos, cálices, patenas e óleos.
Sazes foi a única freguesia onde não se registaram ocorrências. O arcipreste de Mortágua limitou-se a escrever: “Nesta freguesia não entraram franceses alguns.”
Figueira de Lorvão também “foi menos atacada”. Apesar disso, mataram 2 homens e 1 mulher, mais precisamente, António Francisco e F. Henriques dos Santos. Ana Marques de Alagoa com 45 anos também foi assassinada.
Já em Carvalho o panorama é o oposto: “Esta freguesia foi totalmente destruída em razão do ataque do Bussaco principalmente aqueles lugares mais próximos da montanha do Bussaco em que estava acampada a ala segunda do exército continuamente batalhando.”
Refere-se a morte de um homem de 50 anos.  Recorde-se que estamos a falar da população civil, muitas vezes velha e doente,  que foi atacada fora do contexto de combate. Quanto a roubos “tudo se foi”- escreve o relator. Seixo, Soalhal, Pendurada, Lourinhal e Cerquedo foram completamente incendiados.
Almaça não pertence nem nunca pertenceu ao concelho de Penacova. No entanto, dado que foi um dos locais em que - na fase da retirada dos franceses -  se refugiram algumas populações da margem esquerda achamos pertinente frisar que o relatório final, redigido pelo Bispado de Coimbra, em Dezembro de 1811, refere isso mesmo: “ Em Almassa, onde o povo d’alli, e o das vizinhanças se acoutou, reputando-se n’hum lugar d’asylo, por muito cercado de serranias e matos e desafrontado de estradas, foi todo saqueado”. O relato do arcipreste confirma que “roubaram totalmente” esta freguesia e acrescenta que mataram 1 homem de idade de trinta anos, que roubaram a âmbula dos Santos Óleos, lançando tudo por terra e que “levaram o livro das Posturas”.
“À fome e aos assassínios, e acompanhando as vagas de desalojados e de órfãos, sucederam-se as epidemias. Regressadas a suas casas, as populações encontraram a destruição e os campos estéreis. A escassez de géneros tornou-se aflitiva e os preços dispararam. Só muito lentamente a situação se normalizou.” – escreveu Maria Antónia Lopes na obra O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III - 2010-2011).
É a mesma investigadora que acrescenta que “nunca a população civil portuguesa vivera um período tão trágico. Nunca mais, felizmente, o voltou a viver. Por isso, as invasões francesas, absolutamente traumáticas, persistem na memória popular." Em Penacova a exaltação da vitória conseguida na Batalha do Bussaco poderá ofuscar, naturalmente (?), o sofrimento das "vítimas mais humildes e ignoradas." Fica o nosso contributo para que isso não aconteça.







A TERCEIRA INVASÃO FRANCESA NAS TERRAS DE FARINHA PODRE (II)


Depois de termos referido com algum pormenor aquilo que se passou em Farinha Podre (actual S. Pedro de Alva) e em S. Paio de Farinha Podre (actual S. Paio do Mondego), damos agora continuidade a este assunto, trazendo à memória dos leitores as horas trágicas que também a freguesia de Travanca de Farinha Podre viveu, em parte há precisamente 205 anos feitos hoje, e depois, pela segunda vez, no início da Primavera seguinte.

De acordo com o relato do Prior António Paulino Coelho de Mesquita, datado de 13 de Abril de 1811,  os franceses entraram duas vezes em Travanca: nas vésperas da Batalha do Bussaco (Setembro de 1810) e em Março de 1811.
Da primeira vez, entraram na igreja, “arrancaram as pedras de Ara, quebraram uma, lançaram todas as demais pelo pavimento, assim como todas as toalhas e paramentos”. Nas capelas não entraram. Nas casas poucos estragos e roubos fizeram: apenas alguns sacos de grão. No entanto, é referida a morte de dois homens. Um seria de Venda Nova de Cima (freguesia de Farinha Podre) e “outro não se sabe de onde”.
Em Março, entre 16 e 18, também assaltaram a igreja, tirando galões a todas as vestimentas e capas. Além disso tiraram as relíquias a uma pedra de Ara, “arrombaram o sacrário pela parte de trás e tiraram o forro e cortinas”.
Nos anexos da igreja “arrombaram a porta do armazém de azeite donde tiraram algum”. Na residência paroquial “quebraram e roubaram tudo o que apanharam”. Na freguesia queimaram sete das melhores “moradas de casa”, com prejuízos de “mais de vinte mil cruzados”.
Em Lagares mataram Manuel Rodrigues, casado, “sapateiro”, já passado dos 80 anos. Um outro foi vítima de várias cutiladas. Aprisionaram uma mulher casada “a qual deixaram”. Na tabela feita pelo Arcipreste de Sinde lá aparece registada na coluna das mulheres violadas”... 

23 setembro 2016

A TERCEIRA INVASÃO FRANCESA NAS TERRAS DE FARINHA PODRE (I)

Conta-se em S. Pedro de Alva que apenas um “coxo” pereceu às mãos dos Franceses aquando da 3ª Invasão. Todos os habitantes se teriam refugiado nas terras da margem direita do Mondego, deixando as casas vazias e os valores bem escondidos. Também se diz que só uma habitação foi incendiada na sede de freguesia.
No entanto, a fazer fé no relatório que o Arcipreste de Sinde redigiu em 9 de Maio de 1811 (em cumprimento do Aviso Régio de 25 de Março), na freguesia de Farinha Podre não foi assassinada apenas uma pessoa, mas vinte e cinco: 16 homens e 9 mulheres. Também as casas destruídas pelo fogo foram mais do que uma: em toda a freguesia terão sido trinta.



Temos à nossa frente uma cópia da relação “ou mapa fiel e resumido”, elaborado por aquele padre, que também era pároco de Midões, com vários quadros e colunas, mencionando os estragos, os incêndios, os mortos, o número de mulheres violadas… Dados que foram recolhidos nas 20 freguesias do arciprestado (do qual faziam também parte Paradela, Farinha Podre, Oliveira do Cunhedo, Travanca de Farinha Podre e S. Paio de Farinha Podre).
Em Farinha Podre sabemos, inclusivamente, o nome das pessoas assassinadas. Na sede da freguesia foram assassinados 3 homens e 3 mulheres e queimadas 11 casas.  Em Hombres, 5 homens e 3 mulheres e 10 casas destruídas.  Em Laborins, 2 homens mortos. No Carvalhal, 1 homem. Na Parada, 2 homens e 1 mulher. Em Vale da Vinha, 1 mulher. Na Ribeira, 2 homens. Na Cruz do Soito, 1 homem. No Silveirinho, 1 mulher. No cômputo dos 25 mortos nesta freguesia não se incluem os que acabaram por morrer mais tarde em virtude dos maus tratos sofridos.
Imaginem-se as horas de angústia e de terror em S. Pedro, em S. Paio e em toda esta região. Não temos a indicação das datas em que ocorreram estes trágicos acontecimentos mas estamos em crer que a maior parte deles se verificaram já nos inícios de 1811 quando as tropas francesas, uma vez travadas nas Linhas de Torres, batiam em retirada pela margem esquerda do Mondego, ao contrário do que haviam feito em Setembro de 1810. No entanto, sabemos que os franceses andaram por Travanca nas vésperas da batalha do Bussaco, entre os dias 22 e 24 de Setembro. Voltariam depois entre 16 e 18 de Março.
Em S. Paio de Farinha Podre, o pároco José Maria Sobral Coelho e Sampaio registou, muito resumidamente, “as atrocidades que fizeram os franceses”. O documento tem a data de 24 de Abril de 1811. Incendiaram a igreja, roubaram e destruíram alfaias litúrgicas, imagens e outros objectos de culto. Queimaram oito casas e assassinaram 3 indivíduos do sexo masculino (entre os quais uma criança) e 3 mulheres. Ao contrário do relatório de Farinha Podre, aqui não são referidos os nomes das vítimas.
É a historiadora Maria Antónia Lopes que nos recorda que na diocese de Coimbra só em cerca de 10% das paróquias não entrou “o inimigo”. Calcula-se que morreram violentamente às mãos dos soldados franceses perto de 3 000 pessoas e muitos dos que escaparam foram vítimas da miséria, da fome e da doença.
Toda a região da Beira Serra foi duramente afectada naquela Primavera de 1811.  É paradigmático um dos episódios que o pároco de Arganil descreve, referindo-se à morte de um colega de 76 anos: “depois de ser atormentado cruelmente no campo, aonde foi achado, daí foi trazido com uma corda ao pescoço para sua casa, aonde depois de lhe[s] ter dado todo o dinheiro que tinha escondido em várias partes, o mataram à espada e baioneta, castrando-o sobre a cama e levando em um barrete eclesiástico as suas partes pudendas”.
Oportunamente - com base nos estudos da investigadora Maria Antónia Lopes - daremos conta de mais pormenores da carta que a 23 de Março de 1811 o padre Manuel Gomes Nogueira dirigiu a seu irmão José Acúrsio das Neves. Também num próximo artigo faremos referência – no dizer do Arcipreste de Sinde - aos “crimes e atrocidades cometidas” nas restantes freguesias que hoje fazem parte do concelho de Penacova “por estes monstros da imoralidade, da impiedade e da desumanidade, autorizados e comandados por chefes incapazes de pelejar com honra e capazes de fazer guerra só à fraqueza”.






13 setembro 2016

Notas para a história do monte da Srª da Guia

Capela da Srª da Guia - gravura de 1908

“Ainda se vislumbram, posto que com alguma dificuldade, os vestígios do antigo castelo que possuía [Penacova] cujo lugar era num elevado oiteiro que lhe fica ao fundo e que hoje é coroado com uma, ainda que pequena, contudo sumptuosa, capela dedicada à Senhora da Guia donde não somente é dominada a vila, mas se goza de vista encantadora do tortuoso Mondego, com mais de uma légua de distância. É este um dos lugares mais concorridos, com parcialidade, na estação do estio, depois que a sua superfície foi ricamente aplanada graças ao zelo e patriotismo de alguns ilustres cavalheiros que este ano deram complemento a esta empresa de reconhecida necessidade.” – escrevia Alves Mendes em 1857.
É também este penacovense, na altura seminarista (seria ordenado em 1861) que nas suas crónicas “Umas Férias em Penacova” recorda o projecto (nunca concluído) de se construir uma capela dedicada a S. Pedro naquele local:    
“Um penacovense ido para o Brasil foi em extremo favorecido pela fortuna e por sua morte deixou avultada quantia para, na sua pátria, ser construído um templo a S. Pedro, a quem consagrava especial devoção.
Foi esta entregue ao pároco da vila, D. João da Cunha Souto Maior, natural de Lisboa e parente em grau não remoto do notável D. Frei Gaspar Salazar Moscoso a cujo cuidado estavam entregues os senhores de Palhavã e reformador dos Crúzios.
Escolhido pelo sobredito Prior a alta eminência do castelo para semelhante edificação, lhe deu princípio com tão largas dimensões, que prometia aos tempos futuros um edifício monumental. Não sucedeu, porém, assim: os trabalhos afinharam e a obra não passou de quatro paredes.
Monte da Srª da Guia
numa fotografia dos inícios do século XX
Era Souto Maior duma ardentíssima caridade. Todos os seus bens foram dados aos pobres e tal era a sua afabilidade que extremosamente se tornou querido e de todos estimado: não tinha um só inimigo! Numa palavra aquele para quem o Criador foi tão pródigo no aumento de riquezas acabou a vida na mais lastimosa miséria, sustentado à custa de alguns penacovenses.
Longo e ate impróprio seria o relatar aqui da sua biografia. Basta que digamos que com admiração dele se conta – que era tal a sua caridade que chegou a dar a própria camisa!!!
Desta forma consumiu o virtuoso Prior a conta aplicada para aquela obra devota, ficando em simples começo, até que em 1783 o Dr. Tomás Patrício dos Santos edificou entre duas gigantescas muralhas da antiga era, a rica e elegante capela que dedicou à Senhora da Guia.”

Setembro de 1857


António Alves Mendes da Silva Ribeiro

10 setembro 2016

Pisão: vestígios de um quotidiano perdido na voracidade do tempo

Fotografia de Varela Pècurto (início da década de 80 do séc. XX)

O Pisão de Lorvão constitui um  interessante conjunto arquitectónico rural. Possui um Lagar de Azeite com duas varas. Uma delas é em pinheiro manso e será ainda do “tempo das Freiras” e a outra, colocada em 1945, resultou de um  eucalipto cortado na propriedade agro-florestal com 10 hectares.  Este lagar terá funcionado pela  última vez há cerca de trinta e cinco anos.
Inclui também dois Moinhos de Água, um de rodízio e outro uma azenha. São visíveis ainda as ruínas de um Forno de Cal e de uma Casa de Tipologia Rural.
Em 2010 foi  classificado como Conjunto de Interesse Público (CIP). No preâmbulo da Portaria n.º 637/2010, DR, 2.ª série, n.º 164, de 24 de Agosto refere-se que “este conjunto apresenta uma notável coesão, unidade e integração no sítio e na paisagem, que se encontra preservada.”
Aí é salientado também “o particular significado a nível histórico-social e etno-tecnológico local deste conjunto.” Em 2010, e segundo se refere na citada Portaria, o Lagar de Azeite “possui ainda todo o equipamento essencial a um lagar de varas, sendo um exemplar tipológico que se salienta pela sua originalidade e escassez”.
O site da Direcção- Geral do Património Cultural contempla também o Lagar do Pisão. E diz-se aí o seguinte: “De entre a multiplicidade de edifícios erguidos ao longo dos tempos, sobressai(…) o Mosteiro de Lorvão. Mas destacam-se, de igual modo, outras estruturas, as quais, embora despojadas da monumentalidade que lhe é característica, nem por isso são menos importantes para o conhecimento do ser e do sentir das gentes locais, materializados em vestígios de um quotidiano já esbatido perante a voracidade do tempo e, sobretudo, evolução tecnológica.
Este  "conjunto arquitectónico” teve obviamente estreitas  relações com o Mosteiro:  “Uma cercania que não era, de facto, fortuita, pois, apesar de evocativos de um tempo moldado pelas exigências de uma vida dependente da agricultura, os engenhos utilizados destinavam-se, na sua expressiva maioria, a suprir algumas das necessidades diárias dos residentes no Mosteiro.”

A par da cal produzia-se azeite de alta qualidade num lagar de varas, e ainda linho pisoado. Daí virá o nome "Pisão" dado a este local.



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Alves Mendes: um ilustre [quase] desconhecido na terra que o viu nascer


Alves Mendes é tido por muitos como uma “figura eminente das letras portuguesas”. No entanto, este penacovense continua a ser um “ilustre desconhecido” na terra que o viu nascer. Dele se sabe o nome e pouco mais. Um exemplo? O site da Câmara tem um espaço designado por “Gente com História”. Sobre Alves Mendes nem uma palavra!  
À sua “pátria”, onde tinha casa e propriedades, vinha com bastante frequência convivendo abertamente com os seus amigos e conterrâneos como atestam inúmeros testemunhos escritos de pessoas que com ele conviveram. 
Em 1902, a 4 de Janeiro, a Câmara de Penacova, presidida pelo Dr. Daniel da Silva, prestou-lhe homenagem, atribuindo o seu nome à artéria que ia “da casa de José Leitão até à da D. Maria Altina”. A “Rua Arcediago Alves Mendes” ainda hoje existe. Não teve, felizmente,  o azar do Dr. Paiva Pita, que não se sabe porquê viu desaparecer da toponímia da vila o seu nome. O mesmo aconteceu ao Largo Dr. Joaquim Correia que também “saiu do mapa”.
Existem muitos  escritos sobre Alves Mendes (note-se que em qualquer boa enciclopédia em formato papel consta a sua biografia). Transcrevemos do jornal Voz Portucalense o artigo “Alves Mendes e a Capela das Almas” assinado por Alexandrino Brochado e que traça uma síntese biográfica deste penacovense ilustre:

 “Alves Mendes é uma figura eminente das letras portuguesas. Nasceu em Penacova e morreu em 4 de Julho de 1904, no Porto. Está sepultado no cemitério do Prado do Repouso.
Formado em Teologia, foi cónego da Sé do Porto e professor do Seminário Maior desta cidade. A sua fama de orador sagrado firmou-se principalmente desde que, em Lisboa pronunciou a oração fúnebre de Alexandre Herculano, por ocasião da transladação dos restos mortais do grande historiador para os Jerónimos. Pregou depois em idênticas solenidades, comemorando a morte de vultos insignes como Fontes Pereira de Melo e Barros Gomes. Uma das suas orações mais notáveis foi pronunciada no Mosteiro da Batalha, quando para ali se fez a transladação dos restos mortais do príncipe de Avis. 

Além dos discursos Alves Mendes publicou um livro de viagens, "Itália", que originou uma polémica, tendo sido acusado de plagiário de E. Castelar, escritor espanhol que publicou "Recuerdos de Itália". Em discussão acesa com Almeida Silvano sobre filosofia tomista, escreveu: "Um Quadrúpede à Desfilada" e "Tomista ou Tolista", obras que, no género, são verdadeiramente notáveis pelo vigor e sarcasmo da linguagem. Além de orador sagrado, Alves Mendes foi um burilador de frases e um joalheiro de linguagem. Basta atentar nas frases escritas no seu túmulo, no Cemitério do Repouso. 

Pois este escritor notável está duplamente ligado à Rua de Santa Catarina: pelo casamento de Camilo aqui realizado e porque desempenhou o lugar de Provedor da Irmandade das Almas, erecta na Capela das Almas, da mesma rua. Lê-se no Livro das Actas da Capela das Almas que "No dia 8 de Maio de 1899, pelas oito horas da noite, foi eleito Provedor o Doutor Cónego Alves Mendes". Em 21 de Maio de 1900 volta a ser eleito para o triénio de 1900-1902, o Cónego António Alves Mendes da Silva Ribeiro, Arcediago d'Oliveira (a primeira vez que aparece este título honorífico). Em 2 de Maio de 1903, o Cónego Doutor Alves Mendes, Arcediago d'Oliveira, é reeleito, pela última vez, Provedor da Irmandade das Almas. E a partir deste momento não aparece mais qualquer alusão ao notável orador sacro que faleceu em 4 de Julho de 1904. 
Pareceu-nos que uma referência a este escritor e orador sacro, célebre no seu tempo, não ficaria mal, já que o tempo vai diluindo a memória de todos, mesmo dos vultos mais eminentes. O tempo atreve-se a tudo.”

08 setembro 2016

A Senhora do Mont'Alto e as Pedras Milagrosas

Capela do Mont'Alto - Penacova
[PenacovaOnline_2016]
Houve mesmo quem defendesse que o feriado municipal deveria ser no dia 8 de Setembro dada a importância que a romaria do Mont'Alto assume para as gentes de Penacova. Tal pretensão não vingou mas isso não impede que muitos continuem a subir o monte sobranceiro à vila,  onde apesar de escondida pela invasão dos eucaliptos se encontra a muito antiga capela que acolhe a imagem de Nossa Senhora da Natividade.
Muitos autores têm vindo, ao longo dos tempos, a escrever sobre este santuário mariano. Em 1711, Frei Agostinho de Santa Maria e, mais perto de nós, o Professor Nelson Correia Borges. Do livro Coimbra e Região (Novos Guias de Portugal, da Editorial Presença):

“A capelinha é um encanto na sua singeleza de ermidinha bem portuguesa. Antecede-a um alpendre de seis colunas toscanas do século XVII e em toda a volta tem um banco corrido, para os romeiros se sentarem a saborear os farnéis.” 

De acordo com as informações paroquiais de 1721, nesse tempo «os moradores da Vila de Botão e os de S. João de Figueira vinham todos os anos em procissão à Senhora do Mont’Alto em cumprimento de um voto antiquíssimo, trazendo as suas ofertas em tabuleiros à cabeça de donzelas."

Diz-nos ainda este historiador penacovense que, nos referidos documentos de 1721, podemos ler o seguinte:

  “ao pé do monte, contam os naturais, nascem umas pedras redondas como seixos, as quais partidas, se lhe acha dentro outra pedrinha do tamanho e redondeza de uma noz, que com pouca violência se desfaz em pó, e este aplicado à enfermidade da asma é singular remédio e tanto que por singular é único de muitas partes deste Reino são procuradas, e como se fossem milagrosas saram os asmáticos e ficam de novo livres." 

Como se aplicava o pó não o diz o Padre informador…mas quem subir ao santuário pelos caminhos tortuosos pode encontrar ainda alguns dos tais seixos…” - escrevia Nelson Correia Borges em 1987 na referida obra, acrescentando:

“Hoje a festa continua a realizar-se (…) mas os romeiros já não vêm de longe, nem cantam no terreiro da capela as modas de outros tempos:


A Senhora do Mont’Alto
Mandou-me agora chamar.
Que tinha o seu manto roto,
Quer que eu lho vá remendar!

A senhora do Mont’Alto
Lá vai pelo monte acima,
Leva a cestinha no braço
Para fazer a vindima.

Ó Senhora do Mont’Alto,
eu não volto à vossa festa,
Que me tirais a merenda
E mai-la hora da sesta!