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22 novembro 2013

A Revolta dos Sarreiros: um caso que apaixonou "a vila e seu termo" e acabou em tragédia


Sarreiro (foto cedida pelo Rancho
Folclórico "As Paliteiras"de Chelo)
A história que vamos recordar chegou ao nosso conhecimento através do jornal Notícias de Penacova. Nos inícios dos anos 60 este jornal publicou um conjunto de crónicas intituladas  "In Illo Tempore..." assinadas com o pseudónimo Zé do Mirante. A par de outros temas sobre Penacova e o concelho, o articulista relata com algum pormenor um facto que terá acontecido na vila nos finais do séc. XIX. O texto não apresenta datas nem nomes completos, mas ao procurarmos  noutras fontes referências ao Dr.  José Ferreira, citado na crónica,   somos levados a crer que de facto se trataria de José Ferreira Seco de Figueiredo e Queiroz ( 1827-1889) , bacharel de Direito e Recebedor da Fazenda em Penacova. Casado com Joaquina Emília Augusta de Melo (1827-1896) fora também Presidente da Câmara de Poiares e ainda Deputado às Cortes.
Assim sendo, os factos remontarão a 1888-1889, pois a data da sua morte (suicídio) ocorreu  em 14 de Fevereiro de 1889 na Quinta da Boiça em Sto André de Poiares.
 
Eis pois, a transcrição do texto publicado nas páginas do Notícias de Penacova de 1962:
 
I
Um dia logo de manhã, foi a vila posta em sobressalto. Eram os homens válidos das povoações de Chelo. Chelinho e Rebordosa, armados de cacetes em atitude revolucionária. Eram sarreiros que vinham dispostos a desancar, liquidar, o Escrivão da Fazenda, porque os tinha colectado arbitrariamente, sem olhar ao direito e à justiça.
Ainda deverá existir, em alguns daqueles povos algum velhote, bem velhote, que se lembre desta manifestação de força, de aventura e desafronta...
Ora o José Miguel, de prestígio pessoal e político da região, já tinha vindo com o António Lopes, também homem de respeito de Chelo, e talvez o maioral dos sarreiros, expor ao escrivão da Fazenda a engrenagem do negócio do sarro, pois que não passavam de angariadores de adegas espalhadas pelo Portugal vinhateiro, mas por conta e financiamento do verdadeiro industrial do Porto. Eles, sarreiros, somente extraiam o sarro das vasilhas com o auxilio dos moços ( ou criados) e apresentando a mercadoria ao patrão do Porto, recebiam as suas jornas e ajustavam contas.

Objectos utilizados pelo sarreiro
( Expo Artes e Cultura - Lorvão 2012 fotos de Penacova Online)
O escrivão da Fazenda, como então era tratado, e se a memória é firme e não me atraiçoa, se chamava Viriato, não atendeu às reclamações destes, agravou o caso, tributando também os moços (ou criados) dos sarreiros que fossem menores. " Aqui é que ardeu Troia" e aí vinham todos fazer barulho, fazer valer os seus direitos a cacete e queimar a papelada...
O prudente José Miguel tinha vindo à frente montado na sua fiel e pacata burrinha, dar aviso aos chefes políticos de que era devotado amigo.
As repartições foram encerradas e o Viriato não se sentindo em segurança na hospedaria da ti Levradia (mais da tarde da srª Altina do Amaral) pediu asilo ao vizinho Dr. José Ferreira que generosamente o acolheu e hospedou, entregando-o aos cuidados e vigilância da incomparável esposa D. Joaquina de Melo.
Toda a gente sabia que o Dr. José Ferreira era o Recebedor responsável e amigo de sempre, o honradíssimo compadre de toda a gente. Aquela casa era sagrada; ali minguem lhe tocaria!
Quem diria que o Viriato, cobardão e medroso, tornado cordeirinho naqueles dias, viria a ser o carrasco do seu salvador?
Mas vamos assistir aos tumultos e possíveis desacatos dos sarreiros.
Como as Repartições estavam fechadas, andavam aos montões, rua a baixo , rua acima, a dar vivas aos regeneradores e aos progressistas ( não era época de eleições) e espalhafatosos morras ao Viriato, que, tão fortes como trovões ou como o dobrar os sinos a funeral, se ouviriam em Chelo.
O que é certo, e torna evidente destacar, é a moral daqueles povos ao fim de algumas horas de furor, gritaria, de beberricar pelas tabernas, de esfacelarem os paus nos muros e nas paredes, não partiram um vidro, não queimaram a papelada...e não fizeram desacato algum! Com prudência ouviam-se as advertências das autoridades e até iam acalmando com a promessa de os políticos irem a Lisboa resolver o assunto a seu contento.
Recordo muito bem de dois famosos auxiliares do sossego, que com umas pancadinhas amigas num, com um segredo ao ouvido deste e uma anedota brejeira àquele, iam empurrando os sarreiros amotinados para suas casas. Merecem  registo os seus nomes e qualidades.
Um era Joaquim de Andrade, de Miro; o outro Joaquim Pechim, da Mata de Carvalho, se bem me recordo, ambos afilhados do Dr. José Ferreira. O primeiro era auxiliar e quase permanente à frente da Recebedoria da qual o padrinho era o responsável; o segundo, o Pechim, era com "um procurador honorário ou notário privativo dos dinheiros e rendas do Dr. José Ferreira, espalhados por toda a Comarca. Mais tarde tive nas minhas mãos e li, muitos "Títulos de Confissão de Dívida" escritos pelo Pechim e pelo sr. Luís Lopes (outro notário popular) que foram esquecidos ou perdoados. Estes "Títulos" tinham a curiosidade, sendo a moeda corrente os mil réis, em tal se não falava nem tão pouco em libras; era somente - tantas "moedas" - cujo valor era de 4 800 réis (4$80) cada.
Ora estes figurões que acima descrevi, eram conhecidíssimos no meio dos amotinados sarreiros e portanto eram obedecidos e respeitados. Alguma razão tinha o Andrade, de Miro, de me dizer, quando eu já fazia a barba, que tinha sido o rei de Penacova!...Lá tinham as suas razões de realeza que a história não registou...
Quem mais gozou com as arruaças foi a garotada; colaborou rijamente nos morras ao Viriato quanta antipatia e raiva lhes merecia.
Ah! mas a rixa com os sarreiros não findou; nem a paz e sossego para os habitantes da vila e nem a vingança do Viriato estava quite com uns e outros; aqueles porque o ameaçavam de morte e estes porque lhe negaram apoio.
 
A festa ia, pois, principiar.
 
Um ou dois dias depois e tudo em tranquilidade, andavam uns tantos gaiatos em Santo António, nos jogos próprios da idade (então não havia muro ou qualquer resguardo fora do alpendre) quando um dos miúdos - como tenho tão vivo na memória este caso! - viu que à Várzea vinham soldados a cavalo e outros, muitos, a pé, com cornetas e tambor a tocarem!
O alarme foi como o desabar da tempestade. De todos os pontos voltados ao Reconquinho, corriam, gritavam, rebolavam pelas encostas à estrada de Coimbra, os rapazinhos e até os grandes, ao encontro daquela maravilha inesperada e nunca vista!
Naquele tempo não havia qualquer ligação com a estrada para Coimbra a não ser o caminho estreito e mau pelo Cidral ao Chafariz. Pois por aí vinham os soldados e cavalos, à mistura com o batalhão de garotos.
Os mirones da vila encontraram-se na Costa do Sol.
Como a crónica já se vai estendendo para além do que permitido é o espaço do nosso jornal, eu terminarei com outro número de o "Notícias", pois vale a pena trazer ao conhecimento do nosso povo um caso que emocionou dois concelhos.
 
II
 
 
Como já dissemos, o único caminho que ligava Penacova com a estrada de Coimbra, era o acanhado caminho do Chafariz-Cidral. Pois era por aí que subiam os soldadinhos que iam ser os dominadores da vila.
Logo depois o administrador do concelho, Dr. Amaral, hóspede e parente do Sr. Constantino, bisavô da Ex.ma srª D. Maria José Leitão, que eu mais tarde viria a reconhecer como Conselheiro Presidente da Relação em Coimbra, mandava o seu oficial Joaquim Cabral, do Castelo, que, de relação na mão, ia distribuindo pelos habitantes da vila o numeroso grupo de soldados. A garotada é que achava grande honra ter em sua casa um soldado. Que importava à economia da família, se dividia o seu naco de broa com o soldado?
Os oficiais, dois ou três, ficaram hospedados na casa do Conselheiro Alípio Leitão. Um dos oficiais tinha um cavalo que era o alvo dos carinhos e a inveja dos apreciadores da espécie; lindo a valer, de caprichosas e grandes manchas brancas e negras.
Mobilizados carpinteiros para fazerem as necessárias tarimbas e a guarita, que muitos anos depois fi o refúgio e palácio da garotada, os pedreiros improvisaram uma cas para a cozinha dos militares e as indis- pensáveis instalações sanitárias, à moda da época!...
Publicidade de 1948 in NP
Talvez ainda haja quem se lembre, de, ao fundo da Pérgula, ser a serventia para a Repartição da Fazenda, que era onde hoje é a cadeia dos homens, e servia todos os baixos do edifício. Ao lado da serventia, à direita, era a cozinha, que chegou a ser taberna do carcereiro António Dias. Nas cadeias então vazias, se instalaram os militares.
Entretanto os Penacovenses é que iam amargando as favas aboletando os soldados, alguns sabe Deus com que sacrifícios e sem culpa nas quezílias dos sarreiros e do Viriato.
Aos oficiais foi preparado alojamento, onde é hoje a Secretaria Judicial e então sala das Sessões da Câmara Municipal.
A cavalaria com grande mágoa dos gaiatos, ao fim de 10 ou 15 dias retirou, acabando o prazer de a hora certa ver a corrida para o rio à data de água, com o complemento dos pinotes dos cavalos no areal, e às vezes a fuga de alguns a caminho da vila.
A infantaria esteve aquartelada na vila - eu sei la? - talvez um ano.
Para a rapaziada o recreio era permanente, desde o toque da alvorada ao recolher; era o moifar do casqueiro ao café; do render da guarda ao manducar da bóia, à tardinha.
De maior aparato e assistência era aos domingos a formatura em frente aos Paços do Concelho, para a missa na igreja. Os soldados com o fardamento que então usavam com correame complicado e muito branquinho, com barretinas de metais a luzir como ouro, era facto imponente. E a fileira dos soldados, que ia do guarda - vento à grade a meio da igreja, com as baionetas a luzir, com os oficiais à frente de espada em punho, e os que ladeavam o altar-mor, e no momento da Elevação, à ordem do comandante e ao toque das cornetas e tambor se prostravam em sinal de submissão? Posso garantir que aos domingos não faltava à missa conventual nenhum garoto e também nunca foi tão concorrida...pelas moçoilas! Não faltaram mais criadas para servir e não mais faltou água fresquinha para a mesa de Carrazedos ou da Quinta dos Peixes, assim como as três fontes da vila estavam sempre policiadas...
 
Fonte: Rancho Folclórico "As Paliteiras"de Chelo
É tempo de relatar os trágicos efeitos da rebelião dos sarreiros na nossa pacata vila.
 
O escrivão Viriato sentindo as costas no seguro e com a sentinela à porta, redobrou o ataque à bolsa do contribuinte; não poupava os funcionários que com ele não colaborassem. Mexeriqueiro, metediço nas vidas particulares, queria dos empregados confidências sobre o viver pessoal e político do Recebedor. Caçador de escândalos mexia e remexia papéis, até que, finalmente, encontrou um vale, ainda recente, do Dr. José Ferreira, de umas dezenas de mil réis! Tinha, pois, na mão a arma desejada para o seu triunfo: liquidar um homem de valor! Lealmente não avisou, não esperou um dia, que ele recorresse a um amigo para ficar logo quite com o Estado.
O Dr. José Ferreira quando teve conhecimento da patifaria do Viriato, sofreu tal desgosto que mandou logo aparelhar a égua ao criado António Langão (António São Miguel) que ainda hoje tem forte geração na Ponte e partiu para a sua quinta da Boiça, em Vila Nova de Poiares.
Escreveu carta à bondosíssima esposa D. Joaquina de Melo, aos amigos de Poiares e Penacova e a horas mortas estoirou os miolos com uma certeira bala!...
Ainda luzia a estrela d’alva, já o António Langão batia às portas a dar a triste notícia que rapidamente se espalhou . A tragédia enlutava  dois concelhos. A indignação era total contra o Viriato. Todos lhe voltavam as costas . A  hospedaria fechou-lhe a porta, não teve quem lhe vendesse um pão. Por favor do seu fiscal de impostos, um tal Sacramento, que vivia na casa em hoje ruinas, pegada ao José Félix, ali comeu e dormiu até ao dia...
Os amigos da infeliz vítima, de Penacova e Poiares, imediatamente se puseram em campo e decorridos poucos dias o Viriato saía de Penacova escorraçado como um cão lazarento.
Os povos de Chelo e Rebordosa è que não pouparam de chupa, apupos e foguetório à sua passagem de barco a caminho de Coimbra.
E a D. Joaquina de Melo? Essa também saiu para não mais voltar à sua terra. Mais tarde soube por Arsénio Pimentel que enquanto viveu, era uma verdadeira romagem às 2ªs feiras para Boiça, de gente de Penacova, a visitar a desditosa viúva.
Poucos anos sobreviveu ao Dr. José Ferreira, mas sei que nunca lhe faltaram flores de camélia, que ainda hoje existe, da sua Quinta da Cheira.
***
Esta crónica não é fruto da fantasia. Não. Os factos são verídicos. Aos poucos ia-os arrancando à memória e estendendo-os no coradoiro da pureza dos acontecimentos. Levou seu tempo a estender a cadeia, através dos anos decorridos. Mas, louvado seja Deus, chegou-se ao fim sem atropelos à verdade, e deu-se a conhecer um caso que apaixonou a "vila e seu termo".
ZÉ DO MIRANTE