27 fevereiro 2021

Locuções populares (IV): "Mal e porcamente"

 


Esta expressão significa “de modo muito imperfeito”, “muito mal”, “de forma desleixada”, apressada e mesmo até atabalhoada.

Pensa-se que a origem esteja na corruptela de «mal e parcamente» que teria o sentido de “fez mal e, ainda por cima, pouco”. Sendo assim, a expressão original corresponderia a alguma coisa mal feita e com poucos recursos

Como vimos, a expressão ‘mal e porcamente’ era, originalmente, “mal e parcamente”. “Parco” vem do latim “parcus” com o significado de pouco abundante, poupado, pequeno… Como o termo “parco” não é habitualmente utilizado na linguagem popular, a expressão sofreu uma corruptela, sendo “parcamente” trocado por “porcamente”, palavra bastante conhecida e com sonoridade semelhante.

Fonte: Repositório do Conhecimento Inútil, op.cit.

21 fevereiro 2021

Lorvão: páginas cinzentas da sua história


Escreveu Hipólito Raposo (1885-1953):

“As monjas para quem Alexandre Herculano pediu esmola, já não existem. Infinita crueldade seria que a morte as não tivesse poupado ao destino de ver as celas da penitência convertidas em lares onde duas dúzias de famílias foram procurar uma ilusão de abrigo.

Agora, aqueles que no amor ou curiosidade das coisas mortas, se aventuram a transpor os montes que muralham o vale até ao céu, sombriamente, impressiona-os de surpresa a majestade do edifício que o roçar dos séculos tornou venerando.

A cúpula rebrilhante ergue-se no ar sereno, e quando o sol volta, deixa projectar na encosta, a sombra alongada por sobre a ramaria verde-negra dos pinheirais. E toda a face do mosteiro tem no aspecto contrafeito uma opulência decaída, aquela melancólica saudade dos solares de província, abandonados para sempre à vida simples dos abegões.

No Páteo relvoso em que virgens em flor apeando das liteiras no braço dos pais, voltavam os olhos chorosos para dizer adeus ao mundo, vendo apenas ao alto um recorte de céu azul, nesse Páteo dançam agora as moças aos domingos, danças profanas que ultrajam a santidade do lugar e escandalizariam as freiras como um pecado vivo.

Lá dentro, guarda o órgão um silêncio doloroso: das harmonias que derramavam clarões de divindade na alma das noviças, só as paredes e os altares vibram, como outrora na solenidade fúnebre das profissões.

Virgens imateriais quase, erguem na sombra os vultos brancos, entre círios que rodeiam o sacrifício da carne estéril, a chorar pela Vida para gloria de Deus. Toda a visão se ilumina, revive o velho Cenóbio a sua grandeza, cheira a incenso, vozes esvoaçara aflitivamente pelas naves, como suspiros de saudades do céu ...

Em túmulos de prata, dormem há séculos duas filhas de Sancho I e pasma a gente de ver que lhes tenham respeitado a paz, ao lado de oleografias e alfaias milagrosamente salvas à mesma cobiça sacrílega que desnudou a igreja e o convento.

Olhando ao fundo o coro, sumptuoso lavor, luz fria entristecendo a face das coisas e como uma súplica sem esperança, alevanta-se o vulto anguloso da estante do ofício, suportando ainda o velho antifonário coberto de poeira sagrada.

Mal resistindo à deterioração de toda a hora, o cadeirado glorioso alonga a todo o comprimento a graça das decorações, todas animadas da celeste espiritualidade que resplandecem cada figura tutelar.

Pelas altas arcarias, emparedadas aqui e além de fragmentos de capiteis e colunas, vai-se escoando o fumo dos lares que tendo bafejado torpemente os azulejos dos corredores, anda a denegrir os ornatos do coro, da mais preciosa talha de este país, porque o Governo para cobrir o deficit e matar a dívida, arrendou a míseros paliteiros, por uma centena de mil réis, as celas das freiras de Lorvão.

Se cada convento em Portugal é uma página de vergonha para a história contemporânea, creio que em nenhum haverá tão numerosos exemplos de ladroagem e desleixo como neste que tendo sido poupado pelo vandalismo francês, é destruído e roubado em proveito dos liberais do presente e em nome do interesse público.

Aqui, no alto da cúpula, a vista sobe a encosta, pela extensão da verdura até ao céu, torna a descer o declive e pára no fundo do vale, nas trepadeiras e heras da cerca, enlaçando ruínas musgosas, entre silvas e alecrim, a romper vigorosamente dos entulhos onde erram perfumes de cravos do outono e cintilações de azulejos migados ao sol.

Dos três claustros, ainda de pé, alguns arcos, alternando com fustes brancos de colunas mutiladas e inertes. Debaixo das arcarias abatidas movem-se crianças famintas, olhos vermelhos do fumo, fugindo das celas para a agonia dos corredores onde o ar é opaco e a friagem passa rudemente, ululando rumores de morte, sem a resistência das portas já moídas do temporal.

Mulheres de andrajos cruzam-se na faina, outras espreitam dos buracos e encontram ainda um sorriso de motejo pelos que lhes devassam o martírio que nem o sacrifício da Arte lhes abranda a existência, ao menos.

Nas ruas, mocinhas de rosto seráfico e olhar tímido, paradas de curiosidade, duvidam que alguém possa ter interesse em peregrinar àquela ruinaria com que entestam a toda a hora, desde que nasceram.

E assim, entre o desdém de um povo que desejaria aniquilar um monumento que lhes humilha a pobreza dos casebres e o fisco faminto, amolecendo mais a indiferença de um Conselho de Monumentos Nacionais, é que se extinguirá até aos alicerces, o que ainda resta do mais histórico mosteiro de Portugal.

Velhas Crónicas falam gravemente de estes frades da cogula negra, cultivadores de terras bravias nos primeiros séculos, em doações alargadas mais tarde e mantidas pelos próprios moiros já dominando em Coimbra, até que em tempo de cristãos eles cederam casa e senhorio à virtude das netas do primeiro Rei de Portugal.

Toda a tragédia das Rainhas Teresa e Sancha, com a dedicação de nobres damas que nos votos acompanharam o infortúnio daquela - eu a revivo entre matagais agrestes lá no fundo da Idade Média portuguesa, o irmão feroz usurpando-lhes os castelos e a triste Infanta Beringela, deserdada, na Dinamarca cinzenta, chorando com saudades do sol e da terra que perdera.

Casa de penitência agora, viveiro de bastardos, quatro séculos depois, no governo de Filipa d'Eça, quando as monjas ricas e protegidas, resistiam com tantos abusos pelo prestígio da sua beleza, ao intuito reformador de D. João III.

Sob estes claustros se exaltou o misticismo de Joana de Albuquerque, discípula de Santa Teresa, que na alucinação histérica de cada hora, tinha colóquios de amor com Jesus, de novo ressuscitado para a sua paixão ardente, com beijos, ciúmes e amuos, como no mais trivial namoro português, segundo a sua própria narrativa.

O Mosteiro de Lorvão - “antre serras onde o sol não era visto” - a saudade de Crisfal o rememora a todo o coração enamorado; as lembranças tristes das freiras que resolviam morrer à fome para não quebrarem a clausura, a mendigar nos caminhos, hão de sepultar-se nas últimas ruinas que impressionando-nos com respeito, ainda mais nos indignam pelo testemunho de uma execranda malvadez."

In Livro de Horas de Hipólito Raposo. Coimbra. França Amado Editor. 1913

[José Hipólito Vaz Raposo (São Vicente da Beira, 13 de Fevereiro de 1885 — Lisboa, 26 de Agosto de 1953), mais conhecido por Hipólito Raposo, foi um advogado, escritor, historiador e político monárquico, que se notabilizou como um dos mais destacados dirigentes do Integralismo Lusitano.]

19 fevereiro 2021

Locuções populares (III): "Custar os olhos da cara"


 

Esta locução, que tem o significado de custar muito caro, ter um preço muito alto, será o equivalente de “custar couro e cabelo”, “custar um dinheirão” ou mesmo “custar cara a brincadeira”.

Pensa-se  que a sua origem esteja relacionada com o costume bárbaro de arrancar os olhos aos prisioneiros de guerra.

Furar ou mesmo arrancar os olhos de inimigos era um costume completamente desumano praticado depois  das batalhas ou também na sequência de golpes de estado. Assim, privados da visão, os inimigos tornavam-se menos perigosos ou até inofensivos e a guerra seria mais fácil de vencer e a manutenção no poder teria o caminho mais facilitado.

Pagar com a perda dos olhos era um custo demasiado pesado que ninguém queria pagar. Talvez por isso a expressão "custar os olhos da cara" passou a ser também sinónimo de custo exagerado, de preço excessivo. 

Refira-se que tal prática de arrancar os olhos aos inimigos se manteve, pelo menos, até ao século XIX.  A "Gazeta de Lisboa", de 1825, dava conta de uma notícia relacionada com acontecimentos passados no Médio Oriente e publicada em Marselha no "Journal des Debats”:

“O Emir-Bechir tomou huma vingança muito mais cruel dos Principes da sua familia que havião seguido o partido do Cheik-Bechir; pois a estes mandou arrancar os olhos e cortar alingoa na sua mesma presença para prolongar o seu supplicio e humiliação.”


13 fevereiro 2021

Locuções populares (II): "São favas contadas"

 A locução “são favas contadas” tem o significado de algo dado como certo, de coisa certa, de negócio seguro.


Antigamente era costume fazer contas por meio de favas. Ora, esta expressão tem origem no antigo método de votação em que se usavam favas brancas e pretas. As favas eram no fundo um instrumento de cálculo, uma espécie de calculadora mecânica.

Já na Antiguidade Clássica era habitual fazer votações utilizando favas brancas e pretas. 

Também na Idade Média, em muitos mosteiros, eram usadas para eleger o abade. Os monges, reunidos em capítulo, procediam à escolha daquele  do seguinte modo: favas brancas, se a favor do nomeado, e favas pretas, se contra. 

No final, contavam-se as favas. Assim, quem era eleito, era-o de forma comprovada, ou seja, “com as favas contadas”...

Este antigo processo de votação, que se mantém metaforicamente até aos dias de hoje, existe em toda a península ibérica e mesmo noutros países europeus.

Favas contadas quer dizer então: não restar dúvida, ser infalível, ser inevitável…




09 fevereiro 2021

Locuções populares (I): “Do tempo da Maria Cachucha”

Quantas pessoas já não terão sido acusadas de viver “à grande e à francesa"  ou de serem “chei(as) de nove horas”?  

Ou ter a mania de “embandeirar em arco”, de “emprenhar pelos ouvidos” e depois, quem sabe, “pagar com língua de palmo”…?

Tudo isso pode ser só “para inglês ver”. Muitas vezes “são mais as vozes que as nozes” e tudo, afinal, tantas vezes, “traz água no bico”…

É à volta destas expressões que se perdem na memória dos tempos que iniciamos hoje esta rubrica sobre locuções populares ou frases feitas.

 


A expressão “Do tempo da Maria Cachucha” significa  “muito antigo, desactualizado, obsoleto, antiquado.”  “Do tempo da outra senhora”, ou ”do tempo da pedra lascada”…são expressões com significado semelhante.

Esta  locução terá origem na cantiga popular “Maria Cachucha”, adaptação da cachucha espanhola, que esteve muito em voga no Século XIX. Era uma dança sapateada de compasso ternário, normalmente executada por uma uma mulher que acompanhava o ritmo com castanholas, ao som de guitarras e, por vezes, canto, sendo a designação extensível à música.

Tendo origem em Cuba, rapidamente se popularizou na Andaluzia, tendo-se daí disseminado por toda a Espanha, por Portugal, pela França e outros países.

Tipicamente começava com movimentos lentos, que iam acelerando, até terminar com movimentações muito agitadas.

A cachucha tornou-se muito popular em grande parte da Europa, principalmente na primeira metade do século XIX e também em Portugal.

A cachucha passou de moda e tornou-se uma dança antiga, razão porque o povo, quando se queria referir a algo antiquado, desactualizado ou obsoleto, passou a empregar a expressão ‘do tempo da Maria Cachucha’. Uma clara alusão à melodia espanhola mas, principalmente, à canção ‘Maria Cachucha’ que tão popular foi em Portugal.


Maria Cachucha
Quem te cachuchou?
- Foi um frade Loyo,
Que aqui passou. 

Maria Cachucha
Não vás ao Rocio
Toma lá dinheiro,
Sustenta o teu brio.

Maria Cachucha
Não vás ao quintal,
Em sainha branca
Que parece mal

Maria Cachucha
Que vida é a tua?
Comer e beber,
Passear na rua.

Maria Cachucha
Com quem dormes tu?
- Eu durmo sozinha,
Sem medo nenhum …

Maria Cachucha
Com quem dormes tu?
- Durmo com um gato,
Que me arranha o c...

Maria Cachucha
Se fores passear
Vai pelas beirinhas,
Podes-te molhar

FONTE:  Repositório do Conhecimento Inútil de João M. Alveirinho Dias.