31 dezembro 2021

Nos 120 anos de Nemésio: alguns escritos menos conhecidos sobre Penacova



Nemésio referiu-se a Penacova não apenas nos textos que geralmente são evocados quando se pretende estabelecer a ligação do escritor ao nosso concelho, mas também noutras obras menos citadas. Como sabemos, escreveu sobre os moinhos de vento e sobre lugares e pessoas da nossa região nas crónicas “O Cavalo e a Serra”, “O Velho Domingos” e “Outono no Buçaco” que fazem parte do livro Viagens ao Pé da Porta (1965). Muito conhecida é também a sua alusão a Penacova no Guia de Portugal. No entanto, igualmente na obra O Retrato do Semeador, publicada em 1958, Vitorino Nemésio escreve sobre Penacova, mais concretamente sobre Lorvão. 

Vejamos alguns excertos da crónica datada de 22 de Abril de 1954, onde aborda a decadência do Mosteiro.

Em todos nós ainda ecoa o brado lançado por Herculano há quase cem anos em favor das pobres mulheres recolhidas, à sombra da mole de pedra que os séculos foram reformando ao sabor dos seus gostos, recursos e necessidades, até tomar no século XVIII a forma acaçapada, mas ainda grandiosa que hoje tem.

Herculano que lançara em anos verdes a célebre fórmula cominatória do “camartelo municipal “demolidor de monumentos, não se queixava então de delapidações estéticas, mas do puro abandono de um punhado de mulheres religiosas e inválidas que tinham de esmolar o sustento e de fugir às beiras do asilo, abertas nos tectos desmanchados.

Era uma das muitas consequências do brusco volta-face histórico que, tendo de pôr cobro à desviada e hipertrófica vida conventual do país, acabou por exterminar toda e qualquer forma de existência monástica.

A traça atual de Lorvão está longe de exprimir a espiritualidade beneditina que muito antes de finda a primeira metade do século VIII elegeu aquele retiro entre pinhais e tojos bravios.

Boa parte da história das nossas instituições medievais tem de ser feita pelo tombo de Lorvão escapo à incúria moderna. […] E ainda hoje se podem ver no Museu de arte Sacra de Coimbra, a vetusta cadeira abacial, uma pedra de ara renascente, um pontifical de brocado, um relicário dos Mártires de Marrocos e outros testemunhos vivos de um Lorvão, que no seu sítio, só tem uma linguagem de lajes e de matos sem lanhos desses tempos.

Noutro texto intitulado "A Sombra dos Conventos", de 9 de Abril 1952, deparamo-nos com a descrição do caminho para Lorvão, pela Serra do Dianteiro:

De Coimbra […] deito à velha Lorvão há quase mil anos suplantada por essa mesma Coimbra […]. São 14 quilómetros de pinhal ralo e de urze, nos cocurutos do Dianteiro. Passo pequenas póvoas entanguidas na serra, do florestal Picoto, pelo Casal do Lobo e o Roxo, até para lá da Aveleira. É a cordinha de aldeias que fornece de lenha esquelética os fornos da douta Coimbra. De repente, encovada nos montes, austera, maciça, retelhada, surge a mole do mosteiro.

Evoca também os gloriosos tempos do mosteiro, a par das vicissitudes materiais e humanas por que passou a instituição:

Mas nada daquilo é já o habitáculo que albergou a Rainha Tareja de Leão, neta de D. Afonso Henriques, a Infanta D. Branca que Garrett cantou em verso branco e a D. Maria Brandão do magoado Crisfal.

Muito menos acodem as linhas do mosteiro beneditino que Frei Bernardo de Brito dizia coevo do monge do Monte Cassino[1] e que os mais recuados papiros da Hispânia decoram do nome “laurbanense”.

Aquelas poderosas fiadas de cantaria fenestrada foram niveladas ali por pedreiros do século XVIII, sendo abadessa do mosteiro D. Teófila de Alvim. Os serviços prestados pelos bentos na tomada de Coimbra por Sesnando em 1064 foram apagados num século por turbulências suas ou desmandos profanos na Regra.

Transformado em refúgio de donas e donzelas de prol pela filha de Sancho I, Lorvão até mudou de obediência.

A S. Bento sucedeu S. Bernardo, que os padrinhos cistercienses dos nossos primeiros reis tinham favorecido aqui e que Herculano foi encontrar vestido de casaca nos altares!


Fala depois do triste fim das freiras, da visita de Herculano a Lorvão e à vila de Penacova (1853) e da carta que este dirigiu ao Governo de então:

Assim, a alma do mosteiro antiquíssimo escondeu-se doída e bárbara no mínio[2] do Apocalipse, o códice precioso que as esbulhadas freiras de 1853 ofereceram a Herculano quando depois da sua visita a Lorvão em Julho daquele ano, o poeta de O Mosteiro Deserto protestou contra a mísera situação daquelas pobres mulheres, na célebre carta a António de Serpa Pimentel publicada no Periódico dos Pobres. O governo consignou-lhes 600$000 réis por ano em porções côngruas a descontar até à morte da última […]

O nosso itinerário repete em solidão e aspereza de trilhos a jornada do historiador há noventa e oito anos. São os mesmos outeiros “acumulados uns aos outros”, as mesmas pequenas culturas forçadas pelo mateiro do rapão. Herculano, ante a surpresa do convento ao fundo da bacia de Lorvão, hesita em comparar o vale ao cálice de um lírio, e manda “ver uma flor que tenha um pistilo grosso e curto”, flor com um lado rasgado, que dá escoante às águas.


Chegado a 15 de Julho, a 16 compulsou os documentos do arquivo, visitou o mosteiro por dentro, deu um romântico passeio ao pôr -do -sol pelas encostas; e anota no canhenho, percorrendo a cerca interior: “ os hortejos ou jardinzinhos das freiras defuntas cobertos de urzes: impressão que deve produzir nas freiras vivas”.


Talvez menos triste do que nele, que, mal chegara, gizou mentalmente a comovido artigo que havia de arrancar ao estado os 600$000 réis por ano-doze contos de hoje, pouco mais, para a pitança das pobrinhas [...] Mas que arranque e poder tinha um escritor há cem anos!

A 17 de julho juntavam-se a Herculano o Dr. Ferrer, lente de Direito em Coimbra, e o Dr. Joaquim Correia de Almeida, administrador de Penacova. [...]


Vitorino Nemésio transcreve agora o que Herculano anotara no seu diário: ”Julho 17, Domingo. Chegada do Ferrer e do Correia. A missa. As freiras no coro. As despedidas. Saudades de Lorvão. Viagem para Penacova, caminhos impérvios pelas encostas dos montes.”

“Os sete quilómetros, porém, que deitam de Lorvão a Penacova, não exigiriam tanto; e do convento a Sernelha, Figueira, Telhado, enfim ao alto camarote de penhas sobre a garganta do Mondego, então quase sem água, as emoções da abalada não dariam tempo a sentir os pés doridos da marcha.– comenta Nemésio.

[1] Onde está sepultado S. Bento, nota nossa
[2] Óxido salino de chumbo; vermelhão, zarcão.




14 dezembro 2021

Lorvão: do Museu de 1921 ao Centro Interpretativo de 2021




Acabamos de ler na página do Facebook do Município de Penacova que "a ideia de criação de um espaço museológico que permita divulgar o riquíssimo acervo patrimonial do Mosteiro faz precisamente cem anos, tendo tido origem na Junta de Freguesia de Lorvão."

Viajando um pouco na história, concluímos que, de facto, a criação de um museu de arte em Lorvão foi anunciada em Maio de 1921, sob a responsabilidade da Junta de Paróquia local.

O museu ficaria instalado numa sala do edifício do Mosteiro integrando o valioso património que ainda existia e que fora confiado àquela Junta. Património diminuto, comparado com o que um século antes existira. Depois da extinção das ordens religiosas muitos bens foram ou transferidos para organismos do Estado ou leiloados, beneficiando a maior parte das vezes interesses particulares. Outros foram, literalmente, roubados.

As boas intenções das gentes de Lorvão no sentido da conservação do próprio Mosteiro e da salvaguarda do seu acervo foram, desde o início, alvo de acesa polémica. O Conselho de Arte e Arqueologia tentou mesmo, por via legal, impedir a sua concretização. Também o director do Museu Machado de Castro não escondia, à época,  a intenção de incorporar nos museus nacionais os bens das ordens religiosas extintas.

Recorde-se que por volta de 1920 o sacristão da igreja foi subtraindo, durante mais de um ano, uma valiosa coleção de objectos de arte religiosa que ia vendendo a particulares e colocando nas casas de penhores da cidade de Coimbra. Descoberto e preso o seu autor em finais de 1920 a polícia conseguiu recuperar a maior parte do acervo desaparecido. Foi nesse contexto que, entretanto, a Junta de Paróquia requereu que lhe fossem entregues os objectos roubados.

Conta-se que toda a região "desde Penacova ao Dianteiro, era um perfeito alfobre de antiguidades (...) sendo visitada com frequência por colecionadores e intermediários". O saque já vinha muito de trás. Escrevia "O Despertar" em 1920: "desde a extinção dos frades (1834) até à morte da última freira (1887) o Convento de Lorvão não deixou de ser saqueado pelos gatunos de todas as categorias, pelos próprios capelão e serventuário do convento e da igreja, eclesiásticos e seculares".

A entrada em Lorvão dos objectos recuperados ocorreu no dia 12 de Maio de 1921, com grande pompa, sendo expostos ao público no Domingo seguinte. O júbilo tinha a ver com a recuperação dos bens roubados, em geral, mas também com a luta vitoriosa travada pelo povo de Lorvão no sentido do regresso à origem daquelas preciosidades, contra aqueles que defendiam a sua cedência ao Museu Machado de Castro.

Finalmente, em 10 de Julho do mesmo ano, foi aberto ao público o Museu de Lorvão. Não deixando de se reconhecer que muitos objectos já estavam irremediavelmente na posse de museus de Coimbra e de Lisboa, esperava-se, mesmo assim, que o número de visitantes ao mosteiro aumentasse significativamente. A criação oficial do "Museu Regional e Paroquial de Lorvão" só se concretizou no dia 1 de Julho de 1923.

O Museu foi sobrevivendo, mas as aspirações de conservação e salvaguarda e de atração turística foram ficando pelo caminho. Sem meios técnicos, sem uma rede de estruturas de apoio, acabou por definhar, à semelhança do que aconteceu com a maioria dos museus locais em Portugal.

Em 1981, o Dr. Henrique Coutinho Gouveia defendeu que "a eventual revitalização do Museu [de Lorvão] terá de precedida de uma profunda reestruturação que, ampliando-o, acabe por promover o aproveitamento museológico do próprio Mosteiro, assinalando-lhe como um dos principais objectivos o de vir a proporcionar a compreensão da sua influência na história local e das profundas relações que se estabeleceram com o povoado vizinho. Viria a assumir então um papel de espelho da região, passando a actuar eficazmente na preservação e divulgação do respectivo património e fazendo-se inclusive eco dos seus principais problemas e aspirações (...). "

Adianta a referida página do Facebook que "o executivo municipal deu luz verde ao projeto que permitirá criar o Centro Interpretativo do Mosteiro cisterciense de Lorvão, uma obra inacabada há muitos anos."

11 dezembro 2021

Terras de "Pena Cova" no final do séc. XVII

 



O Promptuario das terras de Portugal com declaração das comarcas a que tocam tem a data de 1689. Trata-se de um manuscrito, actualmente à guarda da Biblioteca do Exército, elaborado por Vicente Ribeiro de Meireles, funcionário da Secretaria da Junta dos Três Estados.

O documento tem 364 páginas e no capítulo “Provedoria de Coimbra” vamos encontrar o nome de diversas localidades, hoje pertencentes ao concelho de Penacova, mas que nos finais do século XVII se encontravam dispersas por variadas circunscrições.

Assim, podemos ler: [grafia original]

 «A vila de Pena Cova de que é donatário o Duque de Cadaval tem ouvidor que faz as eleições, que confirma o Duque; e nesta villa não entra o corregedor da comarca; tem no termo os lugares seguintes: [sempre antecedidos do termo Aldeia]

Chão de Baixo, de Val Gonçallo, Gondelim, Carvalhal de Mansores, Vila Nova, Riba de Baixo, Riba de Cima, Ferradosa, Sanguinho, Felgar, Travasso, Roqueira, Carvoeira, Cazaes, Ervideira, Aboboreira, Aldeia Nova, Ferreira, Villa Cham, Lombada, Alveite Grande, Veade, Couchel, Branca, Pinheiro, Carvalhal de Laborins, Couço, Oliveira do Cunhedo, Venda Nova de Poyares, Pereiro de Baixo, Pereiro de Cima, Pereiro de Além, Crasto, Soutelo, Villar, Miro, Carregal, Val do Tronco, Paradella, Cortiça, Serfreu, Farinha Podre, Quintella, Silvarinho, Val da Vinha, Leborins, Ribeira, Beco, Paredes, Cunhedo, Almassa, Lagares, Travanca d’aquem e Travanca d’alem."

A Vila de Carvalho é da coroa, tem um juiz ordinário, vereadores e procurador que confirma o corregedor da comarca que entra nesta vila por correição; e no seu termo tem os lugares seguintes: 

Aldeia de Carvalho Velho, Aldeia de São Paulo, Aldeia de Carvalhais, Aldeia de Val de la Justa, Aldeia de Lourinhal e Aldeia de Penderada.

Note-se que a “aldeia” de Lorvão, "Figueiro" de Lorvão e Friúmes pertenciam, à época,  ao Termo de Coimbra.

Por sua vez, as aldeias de S. Paio, Cruz do Souto, Castinçal, Sobral, Parada e Val do Barco estavam afectas ao concelho de Óvoa

Este manuscrito refere ainda o Couto de Monte Redondo, nos seguintes termos:
 
“O Couto de Monte Redondo de que é donatária a Casa de Aveiro, tem um juiz ordinário, que confirma o corregedor da Comarca, e entra neste couto por correição, e o crime pertence ao juiz de fora de Coimbra.”

Observações:

Atente-se ao facto de se escrever Pena Cova, o que parece explicar que ainda hoje os penacovenses pronunciem Penacova com as duas tónicas “PE” e “CO”.

Outra curiosidade é “Travanca d’aquém” e “Travanca d’alem”. Ainda não há muitos anos as pessoas dali se referiam a um “Lugar de Além” como sendo a actual Portela. Terá a ver com a Travanca d’Alem?

Alguém saberá dizer onde ficava a aldeia de Chão de Baixo, no termo de Penacova? E “Cazaes”? Terá a ver com Casal?

“Roqueira”, a actual Ronqueira, teria a ver com “roca”?

“Figueiro” de Lorvão? O autor do manuscrito adverte para o facto de os nomes aqui escritos aparecerem por vezes «contra a boa pronunciação e ortografia», para “não se lhe mudar o som com que se nomeiam e são conhecidas”.

Como se verifica, ao termo de Penacova pertenciam muitas terras do actual concelho de Vila Nova de Poiares.

Quanto à actual freguesia de Sazes não conseguimos localizar, de momento, qualquer referência.