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21 novembro 2020

Reivindicações do Porto da Raiva no jornal "O Conimbricense"

O Porto da Raiva constituiu um importante  entreposto comercial, sendo um dos principais portos do curso navegável do Mondego. Ali chegavam muitos carros de bois carregados de milho da Beira. Os "carreiros" eram sobretudo das regiões de Penacova, Coja e Arganil. A feira realizava-se todas as quintas-feiras. Aqui se transacionava também o feijão, o sal, as fazendas, as mercearias e outros produtos. Até finais do século XIX, todo o concelho de Penacova afluía ao mercado da Raiva, principalmente para a compra de cereais. Os armazéns enchiam-se de tudo o que não era vendido no dia de feira e ali esperava pelo mercado da semana seguinte.

Os produtos que chegavam à região de Penacova eram essencialmente sal, louça, peixe, azeite e linho. O sal era, sem dúvida, o mais transacionado. Havia dias que eram perto de vinte as carradas de sal que ali eram vendidas. Também o peixe, sobretudo seco, e a louça das fábricas de Coimbra eram produtos muitos procurados  e que, tal como a maioria dos restantes, se destinavam às terras da Beira Alta, num tempo em que ainda não havia caminho de ferro.

Por sua vez, vinho, milho, fruta, legumes, carvão, castanha e vinagre eram os produtos mais “exportados”. Dali saiam grandes carregamentos de vinho, produzido principalmente na Beira Alta, com destino a Coimbra, Baixo Mondego e Figueira.  Outros produtos que partiam da região de Penacova com destino a Coimbra e Figueira eram o feijão, a castanha e a fruta da época.

Encontrámos agora no jornal O Conimbricense (2 de Março de 1872) uma carta de Francisco Augusto Ferreira enviada àquele periódico, onde se queixa dos enormes atrasos na distribuição do correio e também de outros problemas sentidos naquela terra.




08 fevereiro 2019

A Lenda dos Três Rios









Muitas das compilações existentes sobre lendas portuguesas a referem, atribuindo-a à tradição oral da zona de Pombeiro da Beira, mas muito raramente é feita referência à versão do Visconde Sanches de Frias na monografia sobre aquela localidade publicada em 1896.


“Mondego, Alva e Zêzere, nascidos da mesma mãe, serpeando pelas vertentes da serra da Estrela, em santa irmandade, amigos e camaradas, viviam tranquilos e alegres, mirando-se cada qual na limpidez das suas águas, e escondendo-se nas gargantas, furnas e sorvedoiros da gigantesca serra. Umas tardes, já quase à boca da noite, envolveram-se em azeda conversa, porque se arrogaram valentias, ao que parece prometeram romper as prisões, que os detinham, trovejaram rivalidades, e acabaram por desafiar-se para uma corrida vertiginosa, cuja meta seria o corpo enormíssimo do mar. O primeiro, que lá esbarrasse...
- Qual dos três saberia melhormente o caminho? — Qual desenvolveria maior tafularia e força? — Quem seria o primeiro a oferecer as suas águas dulcíssimas às salsas águas do mar?
Era o que ia ver-se.
O Mondego, astuto, forte e madrugador, levantou-se cedo, e começou a correr brandamente, para não fazer barulho e não levantar suspeitas, é de crer, desde as vizinhanças da Guarda nos territórios de Celorico, Gouveia, Manteigas, Canas de Senhorim, e dirigiu se, depois de se ter robustecido com a ajuda de colegas, que vieram cumprimentá-lo, à Raiva, na direcção de Coimbra, depois de ter atravessado ofegante as duas Beiras. O Zêzere, que também estava alerta, entrou de mover-se ao mesmo tempo que o Mondego, ocultando-se até certa distância nas anfractuosidades do seu leito penhascoso; foi direito propriamente a Manteigas, onde perdeu de vista o colega, passou também nos terrenos da Guarda, correu para o Fundão, desnorteou, obliquando para Pedrogão Grande; e finalmente, depois de ter atravessado três províncias, deu consigo em Constância, na Estremadura, abraçando-se ao Tejo, a que ofereceu as suas águas, já cansado de caminhar umas 40 léguas e desesperançado de alcançar o mar.

O Alva, dorminhoco e poeta, embora esses atributos não sejam sinónimos, entreteve-se a contemplar as estrelas, mais do que era prudente, adormeceu confiado no seu génio insofrido e nervoso; e, quando despontou, alto dia, estremunhado, em sobressalto, avistou os colegas a correr sobre distâncias a perder de vista. Um desastre, não havia que ver! uma imprevidência, que era forçoso remediar. O Alva atirou consigo de roldão pelos campos fora, rasgou furiosamente montanhas e rochedos, galgou despenhadeiros, bradou vingança temerosa, rugiu ; e, quando julgou que estava a dois passos do triunfo, foi esbarrar com o seu principal antagonista, o Mondego, que lá ia, havia horas, campos de Coimbra fora, em cata da Figueira, onde se lançaria jubiloso no seio volumoso do Oceano, ao ganhar a porfiada contenda.
O Alva esbravejou, como atleta sanhudo, atirou-se ao adversário, a ver se o lançava fora do leito, espumou de raiva; mas... o outro, que deslizava sereno e forte, riu-se, e engoliu-o de um trago.
Ao lugar da contenda e foz do Alva chamou-se propositadamente Raiva, em memória da sua atitude raivosa e do caso tremebundo.”
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FRIAS, David Correia Sanches de; VASCONCELOS, Carolina Michaelis de; VASCONCELOS, Joaquim de - Pombeiro da Beira: memória histórica, descritiva e crítica. Lisboa: Tip.de João Romano Torres, 1896


11 janeiro 2019

O Porto da Raiva na segunda metade do século XIX

PORTO DA RAIVA
FOTO: SITE DO MUNICÌPIO DE PENACOVA

São frequentes as referências ao Porto da Raiva, geralmente associadas ao estudo da navegação comercial do Mondego. Também na literatura de viagens e de costumes podemos encontrar alguns relatos, muitas vezes pitorescos, de viagens ao longo do curso navegável do Mondego. 

“A região de Penacova e a Navegação Comercial no Mondego – Subsídios para a História da Navegação”, da autoria da penacovense Maria Adelina de Jesus Nogueira Seco, bem como "Ó da Barca!... Memória da Barca Serrana do Mondego”, do Arq. Fernando Simões Dias, serão duas das principais obras que conhecemos sobre esta temática. Outros estudos têm sido feitos. Podíamos referir o extenso artigo de Edgar Lameiras “Contributo para o estudo da navegação comercial e dos sistemas primitivos de transporte e carga do Mondego a montante de Coimbra”, publicado na volume nº 6 da Revista Antropologia Portuguesa (1988), a partir do qual o Município de Penacova elaborou para o seu “site” o apontamento “Porto da Raiva e Barca Serrana”. 

Em 1911, Augusto d’Oliveira Cardoso Fonseca publicou “Outros Tempos ou Velharias de Coimbra - 1850 a 1880”. Nesse livro com cerca de duzentas páginas encontramos uma interessante descrição de uma viagem entre o Porto da Raiva e Coimbra, onde nos aparecem referências não só ao ambiente da viagem, mas também aos lugares por onde o barco ia passando durante aquele percurso.

A páginas tantas podemos ler: 

“(…) Preferiam as famílias de Coimbra fazer essa viagem [Coimbra-Figueira] pelo rio, para o que havia sempre abundância de barcos que vinham da Foz Dão ou da Raiva [1], assim como do próximo lugar das Torres, e que nos meses próprios se ocupavam unicamente no transporte de famílias. 

Os barcos eram de fundo raso; e, à ré, costumavam os barqueiros formar um amplo toldo, que construíam com um encerado sobre arcos de salgueiro. Era sob esse toldo que qualquer família se instalava, sendo o resto do barco destinado á arrumação de baús com roupa, loiças, etc. Os colchões eram sempre colocados sob o toldo, não só para não se enxovalharem, mas também porque, sucedendo às vezes, a viagem levar quase dois dias, serviam para cama dos passageiros.” 

E mais adiante o relato de uma viagem em 1875 de Coimbra até Cerdeira (Arganil), pela estrada da Beira com regresso pela via fluvial a partir da Raiva: 

“No quarto dia regressámos a Coja, e daqui, seguimos o anterior itinerário até à Catraia dos Poços, donde, deixando a estrada que vai para Coimbra, tomámos o ramal da direita, que vai até à Raiva, porto de embarque na margem esquerda do Mondego e fronteiro à vila de Penacova. 

A povoação da Raiva é pequena, mas o seu porto muito movimentado, por ser nele que se faz o embarque dos diversos géneros que de vários concelhos da Beira para ali são conduzidos e depois transportados, em barcos, para Coimbra e outras povoações até à Figueira da Foz. 

Por isso a maior parte de seus habitantes são barqueiros, entregando-se outros ao comércio de cereais e de sal, de que aí têm depósitos, para embarcarem por conta própria.” 

À semelhança do que hoje acontece nas descidas de canoa, as paisagens ribeirinhas deslumbravam os viajantes, em especial no trecho Penacova-Coimbra. 

“Havia muito que desejávamos fazer esta viagem da Raiva a Coimbra, pelo Mondego, e dessa vez assim fizemos, do que não nos arrependemos. É uma viagem esplêndida, cujos variados panoramas nos deleitam. 

Aqui, navega-se entre penedias que orlam as margens do rio, mais adiante flanqueado de encostas cobertas de viçosas oliveiras, e que, depois de passar a Cabeça de Frade [2], segue por entre ínsuas fertilíssimas. 

Nesta viagem de rio tivemos por companheiro o padre Manuel da Benfeita, o qual com sua ama Maria Correia ia para a Figueira da Foz. Quem vai para o mar aparelha-se em terra, diz o velho ditado; — pois quem, pelo rio, vai da Raiva à Figueira da Foz, faz outro tanto. Assim pensava o padre Manuel, e não fazia mal, porque essa viagem durava, pelo menos, umas vinte horas, em consequência do Mondego, nos meses de Verão, ter pontos, em que, pela pouca água, se torna quase inavegável.”
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 [1] “A Raiva é um pequeno lugarejo, com porto de embarque e desembarque, situado na margem esquerda do rio Mondego, fronteira á vila de Penacova. A população da Raiva compõe-se exclusivamente de barqueiros e negociantes de sal.”
[2]  "Este penedo que fica na margem esquerda do Mondego, a meia légua da foz do rio Ceira, seu afluente, é conhecido por Cabeça de Frade, por ser escalvado e em forma d'um crânio colossal."
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FONTES: 

  • Augusto Oliveira Cardoso Fonseca, “Outros tempos ou velharias de Coimbra - 1850 a 1880” 
Livraria Tabuense, Lisboa. 1911 

04 julho 2017

Penacova, a Barca Serrana e a Navegação Comercial no Mondego

Mostra de actividades ligadas ao rio e ao barqueiro:
 "Festa do Barqueiro" - Miro  2/7/2017

A navegação comercial no Mondego, que remonta a séculos anteriores, atingiu no século  XVIII um grande desenvolvimento. Prosperidade que se manteve até finais do século XIX quando se iniciou uma fase de decadência, que acabou por levar à sua completa extinção em meados do século XX.

Sobre este tema existe um estudo de Maria Adelina de Jesus Nogueira Seco, apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1965, enquanto Dissertação de Licenciatura em Ciências Históricas: “A Região de Penacova e a Navegação Comercial no Mondego: subsídios para a história desta navegação”.

Tem como base de investigação um livro de registo de termos de compromisso dos indivíduos que transportavam mercadorias da região de Penacova, passados pelo escrivão desta mesma vila (1773-74), isto é, um conjunto de “termos de fiança das fazendas que levarem guias dos Portos secos da villa de Penacova para qualquer outra Terra do Reyno”. A este conjunto de documentos atribuiu a autora a designação de “Livro de Penacova”.

É com base no excelente trabalho desta penacovense, já falecida, natural do Casal de Santo Amaro, que iremos tecer algumas considerações.

Termo 85: 24 de Agosto de 1773
 Manuel Antunes do lugar do Salão, termo de Arganil,
22 alqueires de sal, “em direitura a vila de Selurico” no valor de 2500 réis.
As mercadorias que das terras mais distantes do litoral se destinavam ao interior das Beiras, eram transportadas pelo Mondego até ao Porto da Foz do Alva (estamos a falar de finais do século XVIII) e daqui por carreiros ao seu destino. Se pelo contrário a origem era o interior, as mercadorias seguiam o mesmo trajecto, mas agora em sentido inverso. O Mondego era a grande estrada comercial.

Os produtos que chegavam à região de Penacova eram essencialmente sal, louça, peixe, azeite e linho. Por sua vez, vinho, milho, fruta, legumes, carvão, castanha e vinagre eram os produtos mais “exportados”.

O sal era, sem dúvida, o mais transacionado. “Na verdade, enquanto outros produtos existiam em maior ou menor quantidade no interior, o sal só poderia ir do litoral, neste caso das salinas da Figueira.” - escreve Maria Adelina Nogueira Seco. “Em 12 de Agosto de 1773 foram carregados no Porto da Foz do Alva 19 carros e no dia 19 dezassete carros. Muito sal num só dia.” - acrescenta.

Além do sal, encontramos o peixe, sobretudo seco, já que o fresco era difícil de chegar às regiões mais longínquas em boas condições, devido à morosidade dos transportes. Há registos de carregamentos de cavala seca a partir do porto da Foz do Alva com destino a várias partes da província da Beira e também do transporte de carros de sardinha para a feira de Viseu.

A louça, sendo Coimbra um importante núcleo dessa indústria, também ocupava um lugar de destaque no conjunto dos produtos comercializados.

Podemos concluir que o produto mais “importado” era o sal. O mais “exportado” era o vinho, com destino a Coimbra, Baixo Mondego e Figueira. Vinho que seria, na sua maioria, produzido na Beira Alta. No entanto, também havia vinho produzido em terras de Penacova. Da leitura da obra em apreço podemos concluir que em 16 de Dezembro de 1773, José Ribeiro, do lugar de Paradela, termo de Penacova, transportou 2 pipas de vinho - “cujo vinho hé do seu labrado”. Vinho que chegou a ser conhecido por vinho da Figueira, dado que era exportado para o estrangeiro através deste porto. Outros produtos que partiam da região de Penacova com destino a Coimbra e Figueira eram o feijão, a castanha e a fruta da época.

Sabe-se o Porto da Raiva dispunha de verdadeiros armazéns, dos quais nos anos 60 do séc. XX ainda existiam ruínas. Os carreiros que se encarregavam dos transportes eram sobretudo das regiões de Penacova, Coja e Arganil.

Mas não só de mercadorias se fazia a navegação comercial. “As próprias pessoas não só da região mas também as que de cavalo ou de carros de bois chegavam da Beira tomavam aqui as barcas em direcção a Coimbra e a outras terras ao longo do rio.” Por exemplo os estudantes que se dirigiam a Coimbra e pessoas que iam até Buarcos nas férias de Verão.

“A Raiva – afirma Adelina Nogueira Seco - ainda em meados do séc. XIX era considerado o porto mais importante de todo o curso navegável do Mondego” e ”durante o séc. XIX e 1ª metade do séc. XX desempenhou o papel de grande entreposto ligando o litoral com a região beirã.” Remonta a esse tempo o Ramal (Estrada Distrital nº 105) que fazia a ligação, na Catraia dos Poços, à Estrada Real nº 12.

Os documentos (séc. XVIII) estudados por Maria Adelina Seco, apontam para o “Porto da Foz do Alva”. Será que no séc. XVIII a Raiva e Porto da Foz do Alva eram a mesma coisa? Não se sabe exactamente. Outro porto, que não pertencia a Penacova, mas fazia parte de toda a dinâmica comercial da época era o Porto da Foz do Dão. Quando o caudal o permitia desempenhava também um papel importante. O “Livro de Penacova” regista que José Gomes, criado de João Silva, afiançou, em Fevereiro de 1774, uma pipa de vinho que “remete de sua caza (Vale da Vinha) para o porto da fós dão, termo de Ovoa.”

Os barqueiros são também na sua maioria naturais das diversas povoações do concelho. Ainda no principio do século XX a vida de muitos habitantes das povoações ribeirinhas estava ligada ao rio. Já o “Livro de Penacova” referia com frequência pessoas de Oliveira do Cunhedo, Penacova, Carvoeira, Miro, Vila Nova, Raiva…

A abertura do Caminho de Ferro da Beira Alta, em 1882, terá sido a causa principal da decadência da navegação comercial (o caminho de ferro, mas também o assoreamento do rio, entre Coimbra e Figueira, a beneficiação das estradas e o aparecimento de empresas de camionagem). A mesma foi morrendo e nos últimos tempos de atividade só a lenha, a madeira e a carqueja eram transportadas sobretudo para Coimbra e “mesmo estas porque seria mais económico que a camionagem”. Havia (na Raiva) um cais para as pilhas de lenha e da madeira e mesmo “uma construção destinada a cubicagem dessa madeira.”