09 abril 2020

Semana Santa, 1955


Tinha chegado uma das semanas de maior azáfama do ano e Felismina andava atarefada com as limpezas da sua casa. Os quartos já estavam limpos, só faltava a cozinha e a sala…  Claro que a sala tinha de ser a última divisão a ficar a brilhar, pois era o local da casa onde Jesus seria recebido. Seria ali que, no Domingo de Páscoa, se juntava toda a família e amigos para beijar a Cruz. Contudo, não era só Felismina que labutava dentro da sua casa… Toda a aldeia andava em preparação para o tão aguardado dia. No entanto, havia sempre tempo para, nas pausas das limpezas, as vizinhas se juntarem na rua e trocar dois dedos de conversa.
- Ó Felismina, qual é a toalha que vais pôr na tua mesa este ano? Foi a da tua fogaça?
- É essa mesmo... É a que tem o bordado e rendas mais lindos, porque fi-la há menos tempo que as outras. – responde Felismina toda orgulhosa. – Também vou pôr nas janelas aquelas cortinas de rendinha branca, que te mostrei no rio a semana passada, quando fomos lá lavar a roupa. Vai ficar tudo a condizer…

Se esta era a semana das limpezas, a anterior (chamada semana dos ramos) tinha sido dedicada para ir ao rio lavar… Já dizia o ditado “Na semana dos ramos, lava os teus panos. Porque na maior, ou fará chuva, ou fará sol”. E convinha ter a roupa lavada e enxuta para nada ficar por fazer até ao Domingo de Páscoa. Era também no domingo dessa semana (dia esse designado por Domingo de Ramos), que as gentes das aldeias se juntavam na Igreja da Freguesia, para assistir à missa e benzer os seus ramos (feitos de louro, oliveira e alecrim). Nesse dia, ao almoço, comia-se a tradicional sopa de grão de bico com carne do palaio, chouriça e presunto… Verduras?! Nem falar nisso… Não se podia comer. Também dizia o ditado que “Quem come verdura no Domingo de Ramos, como moscas todo o ano”… E mais valia prevenir, que nestas coisas nunca se sabe…
- Olha, eu na quarta-feira tenho de ir à horta, buscar couves para os animais. Eu na quinta-feira não ponho lá os pés, não… - continuou a vizinha. – Sabes bem o que diziam os antigos: que Jesus se ia esconder no horto na quinta-feira, antes de ser preso. Olha que tu não te esqueças de lá não ir também.
- Pois, tens razão. E, nem na quinta-feira de tarde e nem na sexta-feira até ao meio dia, não se faz nada. Só as coisas mais necessárias… Porque sabes que esta semana é a maior, tem nove dias, como se costuma dizer. – tagarelava Felismina, ainda na rua, com a sua vizinha.
- E ouve lá, ó Felismina, tu já tens as abróteas e o feno, para pôr à porta?
- As abróteas já tenho, já. Mas o feno só costumo ir buscar no sábado de manhã.
Antigamente, as ruas das aldeias eram todas cobertas de mato, para as pessoas calcarem, quando por lá passavam. Esse mato seria, pois, para fazer o estrume que servia de fertilizante para as terras. No Domingo de Páscoa, de manhã, era tradição cobrir-se todo esse mato com abróteas e feno, sendo que cada pessoa cobria junto à sua porta. Além desta tradição, muitas outras existiam no período entre o Carnaval e a Páscoa, por exemplo, todas as sextas-feiras se fazia jejum de carne e, nesse período, não havia bailes, nem músicas. A Quaresma era, portanto, um momento de tristeza e de respeito.
- Eu no sábado de manhã vou cozer os meus folares. – continuava a vizinha, dando seguimento à conversa. – Vê se não te esqueces de ir à capela às 10h da manhã, para cantar Aleluia a Jesus ressuscitado. – disse, relembrando uma outra tradição, pois existia a crença de que Jesus teria ressuscitado no sábado às 10h da manhã. E era também por isso que se tocavam os sinos e se lançavam foguetes.
Passado o Sábado de Aleluia, chegava o tão aguardando dia: o Domingo de Páscoa. O mais festivo do ano. As mesas das salas eram decoradas com as tais toalhas branquinhas, cheias de rendas e bordados… Além disso, sob as mesas, era colocado um pires com uma laranja e, no cimo desta, espetava-se o dinheiro que era dado como “folar” ao Senhor Padre, que o recolhia na Visita Pascal. Ao almoço, comia-se um belo arroz de cabidela, feito com um galo, ou galinha, criado durante o ano especialmente para tal. No final da refeição, vestiam-se os melhores fatos e juntava-se toda a aldeia na capela, para novamente cantar Aleluia, iniciando a Visita Pascal. Depois, lá seguiam de casa em casa para beijar a Cruz, bebendo também as suas pingas e comendo uma fatia de pão doce, e os afilhados entusiasmados lá iam a casa das madrinhas e padrinhos para buscar o seu folar (um pão com dois ovos).
E era assim que terminava essa época tão festiva, com a aldeia toda em união!...

Mariana Assunção

07 abril 2020

Brinquedos Tradicionais Populares na região de Coimbra

Muitos de nós recordamos as brincadeiras e os brinquedos construídos pelas nossas mãos, quer herdados das gerações anteriores, quer fruto da nossa criatividade e jeito manual. Ainda não tinha chegado a invasão do plástico e estávamos muito longe dos jogos de computador.

Existem ao longo do país espaços museológicos dedicados ao brinquedo. Aqui bem perto, temos para visitar a “Escola do Brinquedo Tradicional Popular”, na freguesia de Cernache (Loureiro).

Penacova organizou, ainda não há muito tempo (2018) uma exposição sobre o brinquedo popular e uma conferência proferida pelo Dr. João Silva Amado, um estudioso e divulgador desta vertente da cultura popular.

Escreveu este investigador universitário, ligado à Associação do Loureiro, o seguinte:

“Brinquedos Tradicionais Populares: trata-se de brinquedos produzidos pela própria criança ou pelos familiares mais próximos, a partir de diversos materiais existentes no meio, da terra ao fogo, passando pela água e pelo vento, sem esquecer ramos, folhas, flores e frutos…

Apesar da sobriedade destes materiais, da efemeridade das suas vidas e da modéstia do seu aparato, pode afirmar-se que foi com os brinquedos populares, transmitidos num milenar diálogo de espaços e de tempos pela faixa infantil da cultura, que a geração anterior ao plástico aprendeu o fundamental das suas vidas!

Produzindo-os e utilizando-os, toda a criança foi equilibrista e pintora, ceramista e botânica, arquitecta e caçadora, lavradora e escultora, tecedeira e investigadora…e tudo o mais quanto pôde aprender na principal das suas escolas - a rua!

Imitando, utilizando a imaginação criadora e cooperando na produção destes brinquedos, ela incorporava a memória cultural da sua comunidade sem conflitos graves nem com os outros humanos nem com as outras espécies.”


João Amado, in “Brinquedos dos Nossos Pais”, (3ª edição, 1992) opúsculo da Associação Desportiva e Recreativa do Loureiro (ADRL), Cernache-Coimbra.

A pequena brochura acima referida recorda-nos o andador, o arco e a gancheta, a mota, o estoque, a espingarda de cana, a boneca de papoila, o pífaro de cana, o arraioco, a atiradeira…e muitos outros.

O estoque, um dos brinquedos que nos recordamos fazer muitas vezes, aqui no concelho de Penacova,  e com ele viajar para os campos de batalha da imaginação, que por vezes era bem real, quando uma “bala” certeira de estopa bem prensada causava alguma dor…





O estoque é "também conhecido por repuxo, estourete, estaleiro, estraque, puxavante, alcatruz, pistola…" nomes que remetem para ""o estalido provocado pelo disparo".

"Consiste num pequeno pau de sabugueiro, de mais ou menos 15 centímetros, a que se retira o miolo. O orifício assim conseguido é tapado com duas buchas de papel (ou estopa ou outro material) de cada um dos lados; de seguida, com um pau mais forte, o atacador ou vareta, moldado de forma a caber no orifício,funcionando como um êmbolo, faz-se pressão, muitas vezes apoiando no peito, sobre uma das buchas de tal maneira que a da outra extremidade sai disparada devido à pressão do ar."


"Há anos, qual era a menina que não sabia dobrar por baixo, com muito jeito, as pétalas de uma papoila para depois as atar com uma ervinha, de molde a provocar uma espécie de cinta de vestido?

Ajeitadinhos, o vestido e os peitos, só faltavam dois pequeninos paus espetados na parte superior ao jeito de braços…

Finalmente aí tínhamos: a boneca de papoila tendo por cabeça o disco do estigma,  e por cabeleira eriçada, um sem número de estames.

A natureza era tão pródiga nesta espécie de plantas , que a brincadeira podia até dar origem a intermináveis procissões vermelhas, dedicadas, sabe-se lá a que santo!"

Fonte:
João Amado, Brinquedos dos Nossos Pais, caderno editado pelo Clube dos Brinquedos Populares, (ADRL) Loureiro . Cernache, 3ª edição, 1992

Nesta pequena publicação são apresentados outros brinquedos com a respectiva ilustração. Ao desenho original, a traço preto, acrescentámos o lápis de cor.










Muitos dos nossos brinquedos tradicionais são comuns a vários países. Curiosamente, na vizinha Galiza existe um número muito grande de brinquedos que nos são familiares.  


Sugerimos uma visita a http://www.noticieirogalego.com/tiratacos/



03 abril 2020

A pneumónica no distrito de Coimbra (1918/19)

Em Penacova, o mês de Outubro e a primeira quinzena de Novembro foram muito duros, com dezenas de casos fatais, quase diários. Sem entrar por agora em mais pormenores, basta verificar que o número anual dos registos de óbitos no concelho rondaria (ente 1911 e 1926) os 320, neste ano de 1918 atingiu 739! 


Também conhecida por gripe espanhola, terá tido origem numa base militar americana e chegado à Europa precisamente através de soldados que vindos daquele continente propagaram o vírus que adquiriu um grau de agressividade fora do comum e resultara da mutação do vírus H1N1.

Entrou na Europa entre Abril e Maio de 1918 e apresentou 3 fases. A disseminação foi muito rápida. Na fase inicial apresentava alguma benignidade mas, nos meses de Setembro, Outubro e Novembro, revelou-se extremamente agressiva. Nos inícios de 1919 ainda se verificou um terceiro surto, menos crítico. Em Portugal, entrou vinda de Espanha, trazida por trabalhadores alentejanos que ganhavam a jorna no país vizinho.

Dada a feição benigna da 1ª vaga epidémica as autoridades não lhe prestaram a atenção devida. Em 13 de Junho ainda se achava que sendo “excessivamente contagiosa” não era, contudo, grave. A própria imprensa, ocupada com a guerra, com a agitação política, com as greves e os levantamentos populares, não valorizou a situação e considerou que se tratava de “uma gripe epidémica ligeira”.

No distrito de Coimbra (1) terá começado na Serra da Boa Viagem (Figueira da Foz) a 9 de Julho e a partir de Setembro a situação agravou-se consideravelmente. Em 24 de Setembro já Góis registava alguns casos e, passados dois dias apenas, o concelho já desesperava com falta de médicos e escassez de açúcar e arroz para os tratamentos. A 27 é também Penela, onde, no Espinhal, o médico foi o primeiro a adoecer, tendo valido um médico militar que ali estava de férias, apesar de acabar também por ser contagiado. Por sua vez, Tábua é atingida a 28 e no final do mês é também Cantanhede que é afectado severamente.

Em Penacova, o mês de Outubro e a primeira quinzena de Novembro foram muito duros, com muitas dezenas de casos fatais. Sem entrar por agora em mais pormenores, basta verificar que o número anual dos registos de óbitos no concelho rondaria (ente 1911 e 1926) os 320, neste ano de 1918 atingiu 739!

Na Pampilhosa da Serra não havia médico e ninguém queria o lugar de facultativo. Na Carapinheira (Montemor) havia médicos que faziam 60 quilómetros de bicicleta para assistir os doentes. A sua falta foi, de facto, um dos principais problemas. Além de outras causas, esta fase crítica coincidiu com a mobilização de muitos deles para as frentes da Grande Guerra. Muitos acabaram por adoecer, como foi o caso de Ângelo da Fonseca que teve de ficar de quarentena na Figueira. Nesta cidade morreu, na casa dos 30 anos, o conhecido músico David de Sousa (recorde-se que os pastorinhos Jacinta e Francisco foram outras das vítimas, bem como jovens artistas portugueses, como o pintor Amadeu de Souza-Cardoso e o pianista António Fragoso, entre outros). Em Penacova, o único facultativo (médico pago pela Câmara) tinha a seu cargo os 3 partidos médicos do concelho.

A agravar a falta de assistência, não havia medicamentos suficientes nem substâncias medicamentosas (por exemplo açúcar, linhaça e mostarda) e e a carestia de vida era uma dura realidade.Por todo o distrito a pneumónica “caiu que nem um vendaval que tudo destrói”.

Em Figueiró do Campo o Pároco, desesperado, de madrugada, escreve ao Bispo pedindo ajuda, na hora em que perante os seus olhos morriam quatro pessoas em simultâneo. Dormia apenas 3 horas para poder administrar os sacramentos aos doentes, muitas vezes já moribundos. As confissões não tinham privacidade pois quantas vezes na mesma cama se encontravam várias pessoas. E não havia sequer tempo para lavrar os assentos de óbito. Para não aumentar o medo e a angústia os sinos deixaram de tocar a finados e, por exemplo, na Benfeita (Arganil) retomaram-se os enterros no antigo cemitério do adro da igreja.

As escolas foram encerradas e nelas foram instalados hospitais provisórios, como foi o caso de S. Pedro de Alva. Na Universidade de Coimbra o arranque das aulas foi adiado.

Em finais de Setembro, Ricardo Jorge havia proibido feiras, romarias e festas religiosas. No entanto, elas iam sendo feitas, ora para pedir clemência divina, ora em acção de graças por determinada terra ter sido poupada em vítimas mortais. Conta-se que, por exemplo, ter-se-á realizado na mesma uma festa na Cheira, o que gerou indignação, conforme se lê na imprensa local.

As vítimas mortais em Portugal terão sido, segundo os números oficiais da época, cerca de 50 mil, mas há quem aponte para um número que ronda os 135 mil. Terá infectado entre um quinto e um terço dos cerca de seis milhões que então compunham a população residente, ou seja, entre 1,2 e 2 milhões de pessoas, com a particularidade de ter atingido especialmente a população em idade activa, entre os 20 e os 40 anos. O seu impacto na economia, no trabalho, na demografia e na organização social em geral, foi extremamente grave. Em meio ano a epidemia causou dez vezes mais mortos do que os soldados que tombaram nos quatro anos que a I Grande Guerra guerra durou.

A nível mundial, a epidemia teve impactos dramáticos: o número oficial remete para um impensável número de cinquenta milhões…

(1)  Para a elaboração do texto, consultámos, além de outros, um artigo de Ana Maria D. Correia, aquando do Centenário da Gripe Pneumónica, bem como os jornais Gazeta de Coimbra, Jornal de Penacova, Ecos de S. Pedro de Alva e Comarca de Arganil.