30 dezembro, 2025

A alimentação das gentes de Penacova no Foral Manuelino de 1513: algumas pistas


Em 2019 foi apresentada, por Sónia Maria dos Anjos Godinho à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra uma Tese de Mestrado subordinada ao título Forais Manuelinos do Distrito de Coimbra: Contributo para o Estudo da Alimentação

Esta investigadora analisou os forais da Lousã e Penacova (1513), de Serpins e de Tábua (1514) e de Coimbra e de Montemor-o-Velho (1516), detectando neles algumas das características da alimentação quinhentista, concretamente no distrito de Coimbra, identificando os principais alimentos aí descritos. 

A tese de mestrado complementa o tema comparando a informação recolhida com outras obras e estudos alusivos ao tema, sendo possível afirmar que os forais “são fontes fidedignas e importantíssimas que espelham os hábitos alimentares dos portugueses.” 


PRODUTOS ALIMENTARES

Especificamente, em relação a Penacova, Sónia Godinho refere, por exemplo, os cereais onde avultam o trigo, o centeio, a cevada, a aveia e o milho painço. 

Na alimentação do dia-a-dia entravam também os ovos, os lacticínios e seus derivados, como o leite, a manteiga e o queijo. Igualmente as hortaliças/legumes, em especial a cebola e o alho, e as frutas (ameixas e figos) e os frutos secos como as nozes, as avelãs, os figos secos, os pinhões e as castanhas.

No que se refere ao peixe, em especial ao peixe do rio, destacam-se a lampreia e o sável. Há também referências ao marisco. 

As referências às carnes brancas são frequentes (galinha, capão, ganso …), bem como as carnes vermelhas (vaca, vitela, carneiro, porco, cabrito e outras). Ainda as carnes de caça aparecem citadas (perdizes, pombos, lebres, coelhos, patos e outros).

O vinho e o azeite são outras referências muito importantes no conjunto dos produtos alimentares. Não esquecer o mel e, por último, o uso de especiarias como a pimenta e a canela. 


CONSIDERAÇÕES GENÉRICAS SOBRE OS PRODUTOS

A autora, tece algumas considerações genéricas sobre o uso dos produtos referidos, não necessária e especificamente sobre o concelho de Penacova. No entanto, por analogia, há aspectos comuns que podem ser tidos como interessantes.  

CEREAIS

Por exemplo, quanto aos cereais, Sónia Godinho, sublinha que o pão constitui a base da alimentação de todos os tempos.

Assim, no “foral de Coimbra, tal como em quase todos os outros estudados para este efeito, temos vários cereais panificáveis. Destacam-se o trigo, o centeio, a cevada, e a aveia. Fabricava-se “pão de trigo, o branco, que ia à mesa só dos ricos pelo seu preço e requinte.” As “classes inferiores” consumiam, especialmente, o pão escuro de centeio, de aveia e de cevada. “Este sem gosto e pouco nutritivo”.

Em relação aos cereais, o "milho maís" [variedade de milho graúdo], era uma novidade. Recém trazido da América, “tornou-se abundante nos campos do Baixo Mondego.” No entanto, no início do séc. XVI o seu cultivo não teria ainda chegado a Penacova ou pelo menos era residual – pressupomos nós. 

“A farinha era utilizada em papas (misturada com água) ou sopas, servia para cozer o biscoito, não só para os navegadores (como já referimos anteriormente), como também para as tropas e armadas do exército, e era utilizada como polme para o peixe ou carne, para as queijadas, assim como, para confeccionar empadas e pastéis, nas classes mais abastadas.”- diz-nos Sónia Godinho.

OVOS

Os ovos, eram “um alimento barato e existia em fartura devido à abundância de criação de galinhas, patas, gansas e pombas.” Eram consumidos em grande quantidade, cozidos, escalfados, fritos, mexidos e como ingrediente de vários pratos. (…) “Em algumas receitas de sobremesas entravam quantidades que podiam atingir várias dezenas, como a doçaria conventual dos séculos XVI a XVIII bem ilustra. Sendo um alimento de extrema relevância, os ovos vêm referenciados em quase todos os forais.

LACTICÍNIOS E DERIVADOS

No que diz respeito aos lacticínios e seus derivados, salienta-se que “o leite era pouco consumido isoladamente, no entanto, queijos, requeijões e manteiga (por vezes dita salgada, como no foral de Tábua), pelo contrário, eram muito frequentes na alimentação medieval e quinhentista.” 

“Na Corte, eram utilizados sobretudo como acompanhamentos ou sobremesas, enquanto os mais frequentes, nos forais em apreço, eram o queijo curado, o queijo fresco, o requeijão, a manteiga, que, como já dissemos por vezes é dita salgada (como é referida no foral da Lousã, Serpins, de Coimbra e no de Tábua).” 

HORTALIÇAS E OS LEGUMES

As hortaliças e os legumes frescos “eram sem dúvida consumidos em maior quantidade pelas classes mais pobres.” Além da “couve murciana, couve tronchuda, couve-flor, entre outras” eram consumidas outras hortaliças, “nomeadamente, a cebola, alho, pepino, espinafres, salsa, sumagre, palma, esparto, funcho, rabanetes e alface. 

FRUTA

“Desde a Idade Média que a fruta tem um papel bastante relevante na alimentação portuguesa.” Nos forais apareciam em destaque. Entre outros, cerejas, “amêixoas”, maçãs, peras, romãs, pêssegos, amoras, laranjas, limões, melões, uvas, figo, marmelo e tâmara. A laranja amarga e o limão, eram muito utilizados para tempero, mas a laranja doce só será introduzida em Portugal depois das viagens marítimas dos portugueses para o Oriente. 

“Salientamos também o facto de que a fruta fresca era frequentemente transformada em conservas, doces ou fruta seca e muito apreciado nas mesas de Reis ou de Mosteiros, era o consumo do doce à base de marmelos e por isso designado por marmelada.”

Por sua vez “nos forais analisados, os figos secos e as passas de uva, são os que sobressaem nesta categoria alimentar (…) A diversidade era tanta, desde amêndoas, pinhões por britar, avelãs, bolotas, nozes, nozes secas, castanhas que muitas vezes substituíam o pão em maus anos cerealíferos, assim como, faziam parte das refeições como acompanhamento principal, sobretudo na Beira Alta e Trás-os-Montes. “ Para a preparação de doces de frutos secos, o ingrediente essencial era o açúcar, sempre presente nas compotas e geleias, as denominadas conservas, como era o caso da marmelada e “frutas cobertas”, ou seja, frutas cristalizadas.

PEIXE

O peixe “era essencialmente consumido fresco, salgado, seco, fumado, em empadas, em escabeche e em conserva, em barris.” Assinalado em todos os forais acima referidos, o peixe do rio era principalmente a truta, o sável e “a lampreia, que sendo um ciclóstomo, provinha do mar, mas vinha desovar ao rio. Ainda hoje, é uma iguaria com notável destaque no concelho de Penacova, mais precisamente no Porto da Raiva.” – sublinha a investigadora na sua tese de mestrado. 

Ainda sobre a lampreia, Sónia Godinho sublinha que era “considerada um dos manjares de eleição” sendo “consumida por grupos sociais elevados económica e socialmente”, destacando-se principalmente na mesa real. O primeiro Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, neta de D. Manuel I, regista uma receita da lampreia.

Receita da Lampreia 

Tomarão a lampreia lavada com água quente e tirar-lhe-ão a tripa sobre uma tijela nova, porque caia o sangue nela, e enrolá-la-ão dentro daquela tigela e deitar-lhe-ão coentro e salsa e cebola muito miúda, e deitar-lhe-ão ali um pouco de azeite e pô-la-ão coberta com um telhador, como for muito bem afogada, deitar-lhe-ão muita poucochinha água e vinagre, e deitar-lhe-ão cravo e pimenta e açafrão e um pouco de gengibre. 

“Com enorme importância alimentar, o peixe era abundante e diversificado. A sardinha era a espécie mais consumida, particularmente pelas classes mais baixas. No entanto é conhecido através dos livros da cozinha de D. João III, que este peixe também ia à mesa Real”. 

O peixe “ocupou um lugar de destaque no regime alimentar das comunidades monásticas”. 

CARNE

O consumo de carne caracterizava-se por uma enorme diversidade. “Nesta categoria, temos presente nos diversos forais a galinha, a lebre, o cervo, o ganso e o pato bravo. Muitas destas carnes eram provenientes do mercado ou de criação doméstica, normalmente era consumida fresca. A carne era confeccionada de variadíssimas maneiras, desde assada, cozida, em ensopado, estufada, em cuscuz, frita, fumada, em pastéis, picada, recheada, chegando a fazer parte de doces como o manjar branco”. As carnes vermelhas “continuavam a ser um alimento na mesa dos mais abastados.” Por exemplo, em Coimbra, as carnes de porco e de carneiro eram as mais baratas, seguidas as de cabra e ovelha, sendo mais comuns e de taxas mais altas as de vaca e as de boi. 

Nas classes mais ricas o consumo ia preferencialmente para o cordeiro, gamo, zebro, a vaca e até o urso. Os pratos de carne normalmente tinham como acompanhamento o pão ou enchidos como o toucinho, chouriço, linguiça, paio, salpicão e presunto. Outro dos acompanhamentos da carne eram os molhos e o cuscuz. A carne era temperada com abundantes e diversas especiarias, assim como a pimenta, mostarda, cravo, gengibre e em alguns casos específicos até com canela e açúcar. “A inserção das especiarias na culinária de então era mais do que um gesto de gastronomia, era um ato representativo do poder económico e social de determinadas classes, pelo que a sua referência nas receitas aparece bastante descriminada.” Presentes nos forais são as carnes de caça como os coelhos, lebres, garças, pombas e perdizes. A carne de caça na maioria das vezes era confeccionada de igual forma à carne vermelha, tendo como tempero diversas especiarias e o acompanhamento do pão, ou até mesmo integrado na própria receita”

VINHO

“O vinho sem exceção surge em todos os forais, o que não é de surpreender, visto que faz parte da base alimentar dos portugueses. Para além dos cereais, a vinha era outra grande cultura, sendo até a primeira a surgir em certas regiões. Embora grande parte das vinhas se destinassem ao consumo da uva como frutas de mesa, a maior parte destinava-se à produção de vinho, branco ou tinto, para ser exportado e consumido.

O vinho era a bebida mais consumida, independentemente da classe ou estatuto social, bebido por homens e mulheres, sãos e enfermos, reis e clérigos. “Desde beber vinho para matar a sede, como para confraternizar, acompanhar as refeições, ou como para uso de culto religioso, era um ato tão natural como comer”. 

Uma curiosidade: “a rainha D. Isabel de Aragão prescrevia aos doentes no seu hospital, homens e mulheres, para além de outros alimentos, uma tagra de vinho [antiga medida equivalente a dois litros] por dia que poderia variar entre 1,4 litros e 2,6.”

ESPECIARIAS

“As especiarias eram acima de tudo condimentos fulcrais à preservação/conservação dos alimentos assim como o sal, a sua importância era tal, que em nenhum foral é tributado.

Nos forais as especiarias mais destacáveis são: a pimenta, a canela, o ruibarbo [com sabor ácido, usado em doces como tortas e compotas e chás], o açúcar, a canafístula [planta medicinal que tem uma polpa líquida, escura e doce à semelhança do açúcar que serve para purgar o estômago], o gengibre, o açafrão, a mostarda”.

AZEITE

“O azeite é indubitavelmente um elemento importantíssimo, considerado outro dos produtos básicos na alimentação (tríade da alimentação: cereais, vinho e azeite), é também referido em todos os forais”.

“Outra das funções do azeite e não menos importante, era a de iluminar as casas e as igrejas.

São inúmeras as referências à compra e doação de azeite e de olivais, com a finalidade de manter as lâmpadas acesas em vários altares de igrejas, capelas e mosteiros. O azeite servia também “para o tratamento de certos males e doenças”. 

MEL

O mel “aparece referido em praticamente todos os forais analisados e é um alimento constante nos hábitos alimentares da época, muitas vezes substituto do açúcar, devido ao preço elevado deste último e não só, visto que regularmente era preferido pelo seu sabor e textura.”

ALIMENTAÇÃO DO POVO

Existem poucas fontes sobre a alimentação das camadas mais baixas da população. 

“A pobreza em que muitos viviam, quer no campo quer na cidade não lhes permitisse sequer ter uma mesa e as duas refeições, as principais, do dia: jantar e ceia”. 

Nas zonas rurais as populações “tinham mais facilidade em comer, pois tinham mais acesso ao pão, vinho e favas secas, tremoços e de peixe a sardinha “fartura da pobreza”. Azeite, ovos, carnes, doces ou peixes e mariscos talvez, em dias muitos especiais, de solidariedade festiva. No entanto, a regra era a ausência total daqueles alimentos o que provocava, como se compreende, doenças graves por falta de proteínas, vitaminas ou gorduras.”

 MESA DOS REIS E NOBRES

É sobre a mesa dos reis e nobres que há mais fontes. “As mesas dos reis e da alta nobreza davam preferência, como acontecia no resto da Europa, à carne. De facto, e, em muitos casos, coincidindo com o que registam os forais, temos as tradicionais carnes vermelhas (vaca, boi, porco) ao lado das ditas de “caça” que, por exemplo na cozinha de D. João III correspondiam a “perdizes, pombos, coelhos, leitões patos e lebres) (…) De animais de capoeira, as mesas régias tinham em abundância galinhas, patos, capões, gansos e outras espécies. O preço variava e as taxas a pagar registadas nos forais, acompanham o valor comercial dos mesmos. (…) A par das carnes assadas, em empadas ou em caldos, temos bons e apreciados peixes e mariscos. Encontramos dezenas de espécies de mar e de rio, na mesa dos poderosos. Curioso é sublinhar que os mais caros continuam hoje com essa característica. Damos o exemplo do salmonete, da garoupa, dos linguados, da lampreia e de outro peixe fresco do mar. O marisco abundava como também os forais o comprovam.”

CLERO SECULAR

O alto clero (bispos, arcebispos e outros), alimentava-se de “saborosas e caras iguarias”. Por isso, nas suas mesas, como naquela de um bispo de Coimbra do século XIV, D. Estevão Anes Brochardo (1304-1318), podíamos ver das melhores carnes vermelhas (vaca, carneiros, vitela) e dos mais caros pescados (baleia grossa e magra, congros secos, gorazes e sáveis). É certo que tal como os outros tinham que cumprir os dias de jejum e de abstinência, deviam privar-se de “carnes de quadrúpedes” podendo comer ovos, carnes brancas, sobretudo, pescado. Não esquecer também, como a bebida, o vinho tinto e branco, quantas vezes meado ou terçado com água, com presença obrigatória na mesa dos membros da igreja. 

CLERO REGULAR

“Quanto ao clero regular, feminino e masculino, as regras monásticas, como sabemos, estabeleciam normas muito precisas sobre o que as religiosas e religiosos podiam comer.

Se lermos algumas Regras, podemos ver que a proibição principal vai para as carnes vermelhas (só muito excepcionalmente, como em dias festivos, podiam comer vaca, carneiro ou outros). A caça era luxo de ricos por isso não entrava nas mesas dos mosteiros. Pão e vinho, os alimentos do sagrado, estão sempre presentes. Pescados «rezentes» (frescos), secos, cação, sável (o mais caro) e sardinha, o mais barato. Também compraram vários carneiros, um bode (animal muito referido nos forais), oito bois e uma vaca e duas azémolas. (…) Compraram bastante mel, figos e passas. Não faltaria também o azeite “para o comer” e para a iluminação, o sal para temperar, hortaliça e outros produtos que poderiam obter por doação, por pagamento de rendas e outras formas.

DOÇARIA CONVENTUAL

Sobre o clero regular feminino o que mais importa é referir a produção de doces (pastéis, compotas, doces de colher, bolos e tantos outros). Ficaram céleres sobretudo os mosteiros de Santa Clara, de Coimbra, de Santarém, de Évora, do Funchal. Produziam para consumo próprio, em dias especiais, mas também para presentear a reis, nobres e membros da Igreja.

 



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