"Pelas nove horas da noite" do dia 17 de Julho de 1866 nascia em Vale da Vinha aquele que viria a ser uma das figuras mais importantes da cena política portuguesa da primeira metade do século XX. O Município de Penacova elegeu-o como figura primeira do concelho, adoptando como dia de Feriado Municipal precisamente a data do seu nascimento. Praticamente silenciado, em Penacova e no País, durante o período do Estado Novo, é de novo enaltecido com a alvorada do 25 de Abril de 1974. Foi assim que em 5 de Outubro daquele ano foi alvo de uma significativa homenagem na sede do concelho.
Na altura, o jornal Notícias de Penacova noticiou a cerimónia e publicou uma crónica de Urbano Duarte, padre, professor e jornalista, salientando a actualidade deste penacovense ilustre e dos valores que defendeu. Por se tratar de um texto um pouco diferente daqueles que habitualmente são citados, consideramos que se justifica a sua transcrição integral:
ANTÓNIO JOSÉ DE ALMEIDA SOB SILÊNCIO DE CEMITÉRIO
«Penacova sentiu-se agora com força bastante para celebrar o
seu filho mais ilustre António José de Almeida.
Do seu nascimento em vale da Vinha, já lá vai o centenário e
sobre a morte (1929) já pesam quatro décadas… Como se ele fosse um vulgar
qualquer, metido sem voz nos poucos palmos da campa!
Se, neste cinco de Outubro, o povo de Penacova glorificar o
seu nome galhardamente, a peito cheio, é porque algum feitiço terrificante e
silenciador, de verdade acabou.
E em que consistia o maldito feitiço?
No facto de ele ter sido a voz mais belamente profética e romântica que trouxe ao País a República.
Infelizmente, por ignorância, por instalação e
subserviência, durante excessivas dezenas de anos, deixaram-se crescer
sucessivas gerações, adestradas em descrer e malsinar o ideal republicano que
andou a luzir em todo o ser de António José de Almeida. Como se o ideal
republicano de então consubstanciasse as desgraças da Pátria e da alma cristã
do povo.
Os republicanos, ainda até há pouco tempo, passavam por
gente suspeita, sem merecer confiança ao estado e a alguns católicos, porque
sonhavam com a mudança do regime político totalitário, porque se arvoravam em
defensores da liberdade de pensamento e de religião, porque defendiam a separação
entre a Igreja e o Estado, porque exigiam maior justiça social. Aspirações
estas que nenhum cristão devia deixar que lhe amortecessem no espírito já que
são maravilhosa semente evangélica. E aí estão os documentos do último Concílio
a colocar estas verdades como fundamentais ao cristianismo.
Bem sei que todas as lutas, mesmo as de maior pureza, trazem
consigo o risco de algumas feridas. Não admira, por isso, que no meio da
refrega política travada nos primeiros anos que precederam ou seguiram a instauração
do regime republicano, se tenham aberto por algumas imprudências de parte a
parte, chagas dolorosas, que o bom senso evitaria.
Mas até neste aspecto, António José de Almeida soube estar
atento não só à alma popular como aos ditames do próprio coração: dos três
partidos republicanos o seu era o mais moderado!
Que Penacova festeje então o maior dos seus filhos; a
suavidade da terra ficou-lhe no
temperamento e no verbo arrebatado.
Político, médico, fundador de jornais, a sua obra continua
viva e irreversível. Desde estudante a Presidente da República, foi homem de
ideal, capaz de discordar, de atacar, de sofrer processos e prisões, sempre por
um Portugal diferente e digno. Sem perder contacto com a aldeia e os vizinhos
dedicou-se ao futuro de todos os nascidos na Pátria que estremecia. Com tal
doação que morreu pobre!
Após tantos anos, António José de Almeida talvez pareça a alguns como ultrapassado: hoje há menos reptos líricos e outras palavras a traduzir novos ideais. O que, porém, não está ultrapassada é a sua estrutural e sinceríssima aspiração por um novo mundo onde reine a liberdade e a igualdade. O que não está ultrapassado é o exemplo de ser um político que nunca pôs de lado o coração."
..................................
Urbano Duarte, “António José de Almeida sob silêncio de cemitério”,
artigo publicado no Notícias de Penacova de 5 de
Outubro de 1974.
Urbano Duarte, padre, professor e jornalista (1917-1980) Urbano
Duarte foi uma das figuras mais marcantes de Coimbra na segunda metade do
século XX.
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