“No dia 22, logo de manhã, começou a correr na vila um boato
sinistro: em Sernelha ardera uma casa, tendo perecido no incêndio seis
creanças, a mais velha das quais teria 7 anos. Partimos imediatamente para ali.
Perto da povoação; à sombra dum pinhal, vimos, num grupo de
indivíduos, alguém conhecido a quem nos dirigimos
em busca de notícias. Logo nas primeiras palavras a pessoa a quem interrogamos
confirma-nos a notícia e indica-nos um
homem, ainda novo, simpático, que fazia parte do grupo, dizendo-nos que era o
pai das creanças que horas antes tão terrivelmente tinham morrido.
E foi da boca dele, uma voz velada, que mal se ouvia, que
ouvimos a sinistra história, curta e trágica: Na véspera, à boca da noite tinha sido procurado por dois amigos seus - Bernardo
e Augusto Rodrigues, barbeiros, de Sernelha, com quem tinha de justar umas
contas. Feitas estas, convidou os seus amigos a beber um copo de vinho, como é
velho costume entre o nosso povo. Em casa não havia vinho e por isso foram à
próxima taberna, onde passado pouco tempo sua mulher o foi chamar, dizendo-lhe
que estava pronta a ceia e por isso se não demorasse.
Tendo-lhe ele respondido que pouco se demoraria e que fosse pondo
a ceia na mesa que breve iria ter com ela, saiu a mulher da taberna e logo ao
voltar uma esquina que lhe encobria a sua casa, grita aflitivamente que
acudissem, que a casa estava a arder.
Correm todos e vêem a casa em chamas. Ele lembrando-se dos
seus filhos, que poucos momentos antes a mãe tinha ido deitar, atira-se com ância
à janela do quarto onde eles dormiam, arrombando-a e tenta escalá-la.
Mas – termina o pobre homem, com a sua voz molhada de
lágrimas, velada, mal se ouvindo - não me deixaram entrar. Lá dentro só vi
chamas, só chamas que ainda me queimaram a cara e nunca mais os vi... E fitando
os olhos vermelhos de tanto chorar, brilhantes de febre, no chão, repetia
desalentadamente:
-Nunca mais os vi e nunca mais os ouvi. Nem um grito. Só
chamas, só lume. Nunca mais os vi, nunca mais os ouvi...
Correm-lhes as lágrimas em fio pela cara e todos nós sentimos
também uma irresistível vontade de chorar.
*
Chega o dr. Henrique Serra, administrador do concelho,
acompanhado pelo seu secretário, António Casimiro, e todos nos dirigimos para o
local do sinistro.
Da risonha casa, à
beira da estrada, onde ainda ontem reinava a felicidade e a alegria apenas
restavam uma mão cheia de ossitos quase desfeitos e um carvão negro, disforme,
horrível, que talvez tivesse sido o tronco da mais velha.
Os donos da casa chamavam-se, como dissemos no nosso último
número, Augusto dos Santos Neto e Rosária do Espírito Santo. Estavam casados há
nove anos e tinham seis filhos - Manuel, Mário, Maria, Alzira, Filomena e Maria do Nascimento, o mais velho de perto
de 8 anos e a mais nova de seis mezes, que agora pereceram todos no incêndio. [Manuel
de 8 anos; Mário de 6 anos, Maria de 4 anos, Alzira, de 3 anos, Filomena de 2
anos e Maria do Nascimento de 6 mezes.]
A casa - que estava no seguro, segundo ultimamente nos
informaram - tinha sido construída há menos de um ano.
As autoridades tendo procedido a minuciosas averiguações, são
de opinião de que o incêndio foi casual.”
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NOTA: esta notícia, que transcrevemos na íntegra e com grafia da época, foi publicada no “Jornal de Penacova” em data que não podemos precisar, mas entre 1915 e 1918. Só desgraças neste blogue, poderão dizer os leitores...
Mas são também estes momentos trágicos que marcam as memórias das nossas terras. Trazê-los ao presente é uma forma de, com todo o respeito, nos associarmos, às dores de tantos que nos antecederam, porventura, pessoas das nossas famílias. Alguém de Sernelha, ou mesmo do concelho, tem mais elementos que queira partilhar? Fica o repto.
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