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A APRESENTAÇÃO DO LIVRO "A ASSASSINA DA RODA" DECORREU EM PENACOVA NO DIA 7 DE MARÇO
Na foto: David Almeida, que apresentou a obra, João Azadinho, Vice-Presidente da Câmara, Rute Serra, autora, e Pedro Assunção, Presidente da Junta de Figueira de Lorvão
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“Tal como acontece com toda e qualquer comunidade humana, da
história de Penacova fazem parte pessoas e factos que nos orgulham e são
exemplo maior de um povo que foi conquistando a sua autonomia e identidade ao
longo de séculos.
Mas a história de um povo, de um concelho, é feita de homens
e de mulheres que transportam consigo as marcas da condição humana. E a
natureza humana carrega um paradoxo original. No mais íntimo do ser humano,
coabitam o bem e o mal, o anjo e o demónio, a vida e a morte. Freud, o pai da
psicanálise, falou de dois instintos que comandam as nossas vidas. O instinto
de Vida que ama, que enriquece a mesma vida, e o instinto de Morte que pode
levar à destruição: Eros e Tanatos.”
Vêm estas considerações a
propósito da apresentação em Penacova do livro “A Assassina da Roda”, de Rute Serra *, sobre a
vida da última mulher executada em Portugal. O texto tem como base a
comunicação que fizemos na referida sessão que decorreu na Biblioteca Municipal
de Penacova no dia 7 de Março.
“O caso Luísa de Jesus coloca-nos um problema muito concreto.
Trazer aqui, ao presente, a memória de
acontecimentos que ainda hoje nos horrorizam e nos envergonham? É que, por mais
que nos custe, Luísa de Jesus foi considerada no texto da sentença “inimiga declarada
da inocência, monstro de coração pervertido…uma mulher possuidora de ambição e
fereza.”
Dizer não à apresentação deste livro, aqui bem no coração do
território onde tantos inocentes foram massacrados? Pronunciar o nome de Luísa
de Jesus ou expulsá-lo para todo o
sempre da nossa memória? Será possível abafar tudo isso e fixarmo-nos apenas nos
factos e nas pessoas que nos enobrecem? Claro que seria mais fácil, mais
confortável, enaltecer os nossos heróis, as nossas glórias concelhias.
A memória de um povo não pode (e não consegue) ser selectiva.
O caso Luísa de Jesus perturba-nos? Sim, perturba! Fascina-nos, num certo
sentido? Sim, também. Quem sabe, tudo isso sejam válvulas de escape face a situações de terror,
uma forma de lidar com o lado escuro,
com a agressividade, que no fundo de cada um existe?
Por que não tratar, sem preconceitos, sem complexos, e de uma
forma séria, estes acontecimentos passados na nossa terra há cerca de duzentos
e cinquenta anos?
O livro que estamos hoje a apresentar é um trabalho sério, de
pesquisa rigorosa, de interpelação sobre a vida e a morte, sobre o direito e a
justiça, sobre a verdade, sobre os meandros, por vezes obscuros da natureza
humana e das estruturas jurídico-sociais. Uma obra que se demarca do sensacionalismo
pelo sensacionalismo e da literatura light que por aí vai abundando.
Aquando das pesquisas que fiz na imprensa local no sentido de
reconstituir o movimento republicano em Penacova (o que deu origem ao livro
“Penacova e a República na Imprensa Local, publicado em 2011) passou-me pela
mão o jornal “Voz de S. Pedro de Alva” que se publicou entre 1928-1933.
O título “Crimes horrorosos” chamou-me à atenção.
Nunca tinha ouvido falar de tais acontecimentos. Interessando-me pelo caso
acabei por descobrir que o jornal O Conimbricense (16 de Outubro de
1866 e 31 de Maio de 1898) referiu o
caso e publicou mesmo a sentença proferida na altura.
Em diversos momentos fui fazendo referência a este caso no
blogue e, nas suas pesquisas na internet, a Drª Rute Serra terá chegado ao Penacova
Online. Foi assim que, certo dia, recebi um mail de alguém, dizendo que
estava a estudar este caso e que agradeceria se eu lhe pudesse fornecer mais elementos,
o que prontamente fiz.
O tempo passou e há uns meses recebi outro mail anunciando o
lançamento de um romance histórico, com a chancela da Editora Guerra e Paz.
Desde logo, a autora mostrou o desejo de
o mesmo ser apresentado no concelho de Penacova. Feitos os contactos e verificada
a boa receptividade da Câmara Municipal, avançou-se para a concretização.
***
“Eurico o Presbítero”, romance de Alexandre Herculano, é muitas vezes apontado
como o grande modelo de romance histórico em língua portuguesa. A Assassina
da Roda, enquanto romance histórico, mistura história e ficção, reconstrói
acontecimentos, costumes e personagens, apresentando-nos um retrato de alguns
segmentos da vida social e política da segunda metade do século XVIII: o
problema dos expostos ou enjeitados, a questão da pena de morte, os debates
sobre a aplicação da justiça, a reforma pombalina da Universidade de Coimbra,
os meandros da Inquisição, a ambiência coimbrã, a pobreza, a mortalidade infantil… enfim, um
quadro que, fruto de um grande trabalho
de pesquisa e de estruturação narrativa, nos convida para uma interessantíssima
viagem no tempo.
Este romance insere-se no modelo tradicional da ficção
histórica, resgatando e contextualizando, o mais fielmente possível, os factos históricos, na
linha de Fernando Campos (O Cavaleiro da Águia), Domingos Amaral (Enquanto
Salazar Dormia) ou Miguel Sousa Tavares (Equador).
Por vezes encontramos livros onde o vocabulário e a estrutura
lexical nada têm a ver com a época e onde os cenários estão feridos de
anacronismo e são muitas vezes absurdos. Neste romance tal não se verifica,
fruto de uma grande capacidade de investigação. Verifica-se hoje um crescente
interesse por romances históricos, em detrimento da historiografia, que apesar
de muito desenvolvida se restringe muitas vezes aos ambientes académicos. No entanto, também os livros de divulgação
histórica, a par do romance histórico vão fazendo sucessos editoriais.
Através de A Assassina da Roda ficamos a conhecer não
apenas a história da última mulher executada em Portugal. Os penacovenses e
todos quantos o lerem, verão que o livro toca de perto muitos aspectos da cultura e das tradições de Penacova.
A
ligação a Coimbra, principalmente das terras mais confinantes com a cidade, os
trilhos, as viagens ora pela serra do
Dianteiro ora pelo curso do rio Mondego, onde não falta a figura do barqueiro, os
moinhos de vento, um dos ex-libris de Penacova, tudo aqui está retratado. Retrato
que se estende às paliteiras, com todos os pormenores desta arte que faz hoje
parte do Inventário Nacional do Património Imaterial, ao Mosteiro de Lorvão,
nas suas múltiplas facetas, ao Manuscrito do Apocalipse, reconhecido pela
Unesco como Memória do Mundo. Também as Lendas nos aparecem aqui. A Lenda das
Bruxas do Reconquinho, a Lenda da Senhora do Montalto e a existência, referida
em documentos do século XVIII, de pedras milagrosas, uma espécie
de pedras parideiras, a tradição dos Mascarados Novos e dos Mascarados Velhos
em Lorvão, tudo isso aqui ficou registado.
***
E é a longa conversa entre Pina Manique e José Anastácio da
Cunha, que se prolonga por vários dias, que traça o fio condutor da narrativa. “Tenho uma história para lhe contar.
Julguei muitos casos naquele Tribunal. Porém houve um que me inquietou
inexoravelmente para o resto da minha vida e que jamais esquecerei”,
confidencia Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805) ao seu amigo José
Anastácio da Cunha (1744-1787) no dia em que este é convidado por aquele para
ser regente dos Estudos da futura Casa Pia de Lisboa.“Preocupei-me sempre, tão somente, que a minha consciência,
ficasse tranquila após cada julgamento, na medida do que nos deixavam.” -Não
duvido - responde José Anastácio. -Nem sempre… remata Pina Manique. Na hora da
votação dos Juízes Desembargadores, todos se ergueram… mas ele tê-lo-á feito
dum modo titubeante. É esta inquietação que vai estando presente quase até ao
fim do romance.
Estávamos no ano de 1780. O rei D. José tinha morrido havia
quatro anos, tinham passado 25 anos sobre o grande Terramoto de Lisboa e o
julgamento de Luísa de Jesus tinham acontecido oito anos atrás. A conversa vai
sendo intercalada com relatos pormenorizados da denúncia, prisão,
interrogatório e suplício, na Cadeia da Portagem em Coimbra, e sequente ida de
Luiza para a cadeia do Limoeiro em Lisboa. Naquela cidade será presente a
Tribunal para ouvir a sentença e será executada. A vinda do Marquês de Pombal a
Coimbra para entregar solenemente os novos estatutos à Universidade vem também
à baila, bem como a descrição de muitos recantos da cidade do Mondego, a
perseguição da Inquisição aos judeus na Galiza e a execução de Dominga da
Serra, a descrição do mosteiro de Lorvão
e as intrigas palacianas à volta da eleição das abadessas e os rumores da vida
dissoluta que se levava naquele Convento.
Fica nas mãos do leitor um manancial de flashes sobre
a vida quotidiana da burguesia, a vida mundana, as festas de Salão, as intrigas
políticas, o mobiliário, a gastronomia, os neveiros da Serra da Lousã, a Fábrica
do Gelo…
“Procurei saber a bem da sanidade da minha consciência, qual
foi a motivação das tétricas acções de Luísa de Jesus.” – volta a dizer Pina
Manique. Depois de ouvir demoradamente as intrigantes revelações de
uma velha mulher, que vivia no Reconquinho, Pina Manique, apesar de achar que a
“motivação por ela referida era falaz”, prefere aquietar o espírito por algum
tempo. “O facto de não acreditarmos não nos imuniza” porque “nem sempre a luz
da razão alumia suficientemente a dúvida humana.” Manique acaba por concluir
que só podia ter sido por motivações de
lucro fácil… A possível pobreza da infância e os maus tratos na adolescência
não o justificariam. Além disso, o passado ancestral de Luísa de Jesus,
revelado pela velha do Reconquinho, era justificação demasiado “efabulada”. Assim,
podia descansar a sua consciência! O amigo, Anastácio da Cunha, fica calado. Era melhor
não mexer mais. “A resposta serenava a sua consciência. Encontrara a sua
resposta. E assim devia ficar”…
Também nós nos interrogamos: por que fez ela aquilo? Por
dinheiro? Mas…não será esta a resposta mais fácil e aparentemente óbvia? Mas
atenção leitores: o romance leva-nos a uma outra explicação. Caberá a cada um
descobrir.
Na parte final do romance ficamos a saber que o irmão de Luísa
de Jesus terá assistido à execução e terá trazido as cinzas numa “cista” para a
serra de Gavinhos, onde foram espalhadas ao vento, ao mesmo vento que durante
séculos fez rodar as velas dos moinhos ainda hoje ali existentes. E, quem sabe,
cinzas que o tempo ainda não consumiu e por aqui permanecem veiculando ecos daquelas
vozes distantes.”
David G. de Almeida, 7/3/2020
*A autora:
Rute Alexandra de
Carvalho Frazão Serra, Licenciada em Direito, Pós-Graduada em Gestão Pública,
Mestre em Direito – Ciências Jurídico-Políticas
Acaba de assumir
funções de Sub-Inspectora Geral na Inspeção Geral das Actividades de Saúde
(IGAS), um departamento da Direcção Geral da Saúde.Exerceu funções de auditoria
pública externa, junto do Tribunal de Contas de Portugal. Ao longo de cerca de
vinte anos de actividade profissional na Administração Pública, foi técnica
superior na extinta Direcção-Geral de Viação e exerceu funções dirigentes,
durante oito anos, na Autoridade de Segurança Alimentar e Económica.
Docente convidada em
cursos de Pós-Graduação e Mestrado, na área da Investigação Criminal e
Criminologia. Formadora nas áreas do direito penal, processual penal e
contraordenacional, em diversos cursos de acesso à carreira inspectiva. Prelectora
em inúmeras sessões de esclarecimento dirigidas a operadores económicos. Membro
do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.
Cronista regular dos
jornais Expresso, Público e I e da revista Visão.
Nasceu e vive em
Lisboa mas tem família no concelho de Arganil, mais propriamente na vila de Coja.