sexta-feira, maio 06, 2016

Fim do Mundo em Lorvão / Apontamentos para a compreensão do Apocalipse

Os Comentários ao Apocalipse constituem um conjunto de cópias de um texto elaborado por Beatus (séc. VIII) um monge do mosteiro de Liébana (província de Santander-Espanha) nos Montes Cantábricos.
   
Representação da mesma cena no Apocalipse de Lorvão (esq.)
e no Apocalipse da Catedral de Burgo de Osma
À semelhança de muitos dos seus contemporâneos, Beatus vivia obcecado com o fim do Mundo, que deveria chegar, segundo se julgava, no fim da sexta idade, ou seja, no ano 6 000 da criação do Mundo, que coincidiria com o ano 800 depois de Cristo.
Mais tarde, já depois da sua morte, o facto de esta data ter passado sem que o mundo tivesse acabado levou outros autores com a mesma mentalidade a fazerem novos cálculos. Um novo recrudescimento da expec­tativa apocalíptica ocorreu nas vésperas do ano 1 000, que se prolongou ainda depois durante algumas décadas. Convencido que o Mundo iria acabar em breve, o monge de Liébana fez um comentário ao Livro do Apocalipse (um dos Livros da Bíblia), o qual  teve um enorme sucesso durante vários séculos, mas sobretudo até meados do século XI,  suscitando a proliferação de cópias diversas,  “profusamente” ilustradas (ou “iluminadas”). Através da imagem se mostravam as convulsões e catástrofes que iriam anteceder o regresso de Cristo no fim dos tempos, que estaria para breve, assim se pensava. Estes desenhos inspiraram novas representações, “que proliferaram com as suas variantes, qual delas mais dramática e impres­sionante, como que para, na sua materialização dos monstros, da crueldade e da violência, se libertarem catarticamente do medo da morte.”
Impressionam, de facto, as suas cores berrantes, a estilização dos gestos, a firmeza do desenho e sobretudo o tipo de cenas que exprimem o mundo sobrenatural. A preferência dos iluministas vai para a representação de uma solene liturgia em torno de Cristo, vista à imagem e semelhança das gran­des festas do calendário cristão ou das cerimónias da corte régia, as cenas de  batalhas cheias de cadáveres, de sangue e de crueldade, o espectáculo dos julgamentos, com os tormentos aos acusados e as condenações à morte, os monstros, que exprimem o absurdo da violência e da destruição.
O que mais abundam são estas cenas dramáticas. Nalgumas, porém, elas contrastam com cenas da vida quotidiana, para a representação da qual se escolhe de preferência, a ceifa do trigo, a vindima, o trabalho do lagar e, nalguns casos, a tarefa dos escribas numa biblioteca monástica, e também o homem, a mulher ou o casal a dormirem na sua cama. O terror espreitava o homem em qualquer situação. Os iluministas ímaginavam a perturbação e o medo de quem trabalhava ou dormia tranquilamente e era  surpreendido pela vinda repentina do inimigo. Embora o pretexto das representações gráficas do terror seja a antevisão do fim do Mundo, é evidente que se trata nos “apocalipses” de representar uma ameaça constante. Não tanto o medo da morte individual mas da morte colectiva, como, de resto, acontece no próprio texto do Apocalipse.
A vida quotidiana estava ameaçada pela catástrofe. Os anjos exterminadores, com as suas foices afiadas, vindimam as uvas maduras da vinha terrena. (Cf. Apocalipse,14:14-20) Os camponeses trabalhavam tranquilamente na vindima, na ceifa e no lagar, sem saberem que seriam em breve, surpreendidos pela morte. As iluminuras aí estavam para os lembrar que, conforme a insistente pregação da época, a iminência da morte era uma pesada ameaça.
A representação da vindima, da ceifa, do lagar, é muito frequente. Por exemplo, no Apocalipse da Catedral de Burgo de Osma, com data de 1086, encontramos uma cena muito semelhante à que o Apocalipse de Lorvão apresenta. Vários estudos têm vindo a fazer essa análise, em particular, bem como toda a carga histórica e cultural que este documento transporta. Não é, pois, por acaso, que o exemplar feito em Lorvão foi recentemente declarado Memória do Mundo pela Organização das Nações Unidas para a Eucação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) reconhecendo-o como um dos "mais belos documentos da civilização medieval ocidental".
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Fonte principal deste texto: História de Portugal (1 volume - Antes de Portugal),  Dir. de José Mattoso, Círculo de Leitores.


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