“A
funcção que começara depois do meio dia terminou ás dez horas da noute,
quando
já a frontaria do mosteiro se achava deslumbrantemente illuminada;
estoiravam
no ar as bombas dos foguetes e morteiros,
cahiam as bagas luminosas dos
foguetes de lagrimas,
e os fogos d'artificio eram acclamados por enorme
multidão,
que juntava as suas acclamações
ao repique jubiloso dos sinos.”
in "As Freiras de Lorvão"
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Prossegue hoje o
programa da Comemoração dos 300 Anos da Trasladação das Santas Rainhas Teresa e
Sancha em Lorvão. Como se pode verificar pelo cartaz das Comemorações outros
eventos decorreram e vão decorrer este fim de semana. Ontem teve lugar a Celebração de Abertura dos Túmulos, presidida
pelo Senhor Bispo de Coimbra bem como
cerimónia da Veneração das Sagradas Relíquias. Ainda, a cerimónia do
lançamento do livro infanto-juvenil "Teresa de Portugal", uma edição
do Município de Penacova com autoria de Paula Silva e ilustrações de Cristina
Carvalho e Paula Silva. Hoje à noite há um espaço
musical que contará com as actuações Coral Divo Canto (Penacova) e dos grupos
convidados: Coral Polifónica "Santiago López" (Pravia - Astúrias) e
Coimbra Gospel Choir.
Fotografias de "PENACOVA EVENTOS" no Facebook
APONTAMENTO SOBRE A TRASLADAÇÃO EM
1715
No livro “As Freiras
de Lorvão” de T. Lino d'Assumpção é
feita uma descrição daquele momento alto da Trasladação. Para as pessoas mais
interessadas em conhecer com algum pormenor estes acontecimentos,
transcrevemos, do original, e por isso redigido em português de finais do séc
XIX, um excerto (não incluindo notas de rodapé) daquela obra:
“Quatro séculos
passaram e durante elles as sepulturas das duas irmãs estiveram no coro monástico,
obrando grande copia de milagres, conjunctamente com o copo por onde D. Thereza
bebia em vida. Mas a quantidade de romeiros era tal á procura de saúde, tantos
os devotos que junto do tumulo das santas desejavam expandir-se em lagrimas e
suspiros, que vinha d'isso fraude e perturbação para a clausura, e sempre
importunas visitas.
Pensava a abbadessa D.
Bernarda den Lencastre,neta d'el-rei D. Manuel, por seu pae o cardeal Affonso,
em fazer trasladar para o corpo da egreja os dois mausoléus, mas achou a
communidade resistente em conformar-se com tal deliberação.Foi neste transe que
ceu se manifestou, como soe acontecer cm casos taes.
Certa noute, uma das
monjas. D. Catharina d’ Albuquerque, sonhou que estava vendo as duas santas
vestidas como nos tempos idos da sua vida. Grandes calanticas ou toucas de miúdas pregas
na cabeça, fino e branco veu nos hombros, longas estolas franjadas cahindo-lhes
até os pés, e mantos presos ao pescoço por fivellas de ouro.
Uma a outra compunha
seus adornos, e na conversa pareciam um pouco agitadas. Tremendo, perguntou- lhes
Catharina o que queriam? ao que ellas responderam, rindo: que o fosse perguntar ao questor da communidade, João Lacto. E, ao esvairem-se no espaço,
acordou a monja.
Immediatamente procurou
a abbadessa a quem contou o succedido. Foi chamado o questor e este decidiu que
as duas rainhas queriam que os seus túmulos fossem trasladados para a egreja.
Soube o mosteiro da visão e ninguém se atreveu a oppór-se a tão formaes ordens.
E' esta a versão que
corre impressa, inclusive no processo da beatificação; entretanto, nas memorias
manuscriptas do mosteiro, attribue-se a mudança á abbadessa D. Briolanja de
Mello.
Eis a copia d'um rascunho
para o seu termo de óbito, que existe no livro respectivo:
“A muito religiosa D.
Briolanja de Mello, religiosa deste real mosteiro de S.ta Maria de Lorvão foi a
penúltima abbadessa perpetua d'esta casa, viveu com muita edificação e
santidade, guardando os votos e em tudo o mais a regra do nosso P.° S. Bento;
e, estando para ser abbadessa, havendo duvidas como fosse feita abbadessa,
nessas occupações veiu uma voz do ceu que a publicou. No seu officio se conheceu
fora feita por Deus, e assim se verifica, pois escolheu o Senhor o seu tempo
para se publicarem os thesouros que tinhamos nas santas rainhas S. ta Theresa e
S.ta Sancha; por que estando as suas sepulturas no interior do mosteiro, e havendo
grande difficuldade em as religiosas as deixarem ir para fora, por não perderem
a- consolação de tão santa companhia, ellas acharam merecimentos para lhes
apparecerom e mandando-lhes que as puzessem na egreja de fora, que Deus
ajudaria. E assim foi que as religiosas se accommodaram com a sua saudade:
conhecendo pela sua virtude era vontade de Deus, e se ficou fazendo muito maior
estimação da prelada. Foi Deus servido, depois (Testa obra. leval-a para si com
grande mostra do salvação e edificação das religiosas d'aquelle tempo, em que
todas, pelas noticias que achamos no cartório, foram santas pelo espirito com
que vieram á religião ».
Na egreja estiveram os
dois túmulos até que em 1617. uma das religiosas, D. Catharina da Silveira,
mandou fazer a capella de Nossa Senhora do Rosário, e os sarcophagos ficaram
constituindo o altar, um junto do outro.
Nessa occasião.
emquanto os operários foram jantar, as monjas sahiram da egreja, e, servindo-se
das ferramentas, levantaram a pedra do sepulchro de D. Thereza. « Logo um
suavissimo perfume" se espalhou pela egreja, e o corpo, deitado numa alcatifa
de flores, tão frescas, como se ali não estivessem ha perto de quatrocentos
annos, mas como se fossem cortadas naquella hora, achava-se inteiro, cerrados os
olhos e entreaberta a bocca, deixando ver os alvos dentes como de quem sorri. Vestia
habito de S. Bernardo e sobre o rosto estendia-se um veu preto e a pelle tão
fresca e tão perfeita como se estivesse dormindo ».
Na egreja continuavam
os cadáveres bemaventurados a obrar tantos milagres, que el-rei D. Sebastião resolveu
promover em Roma as duas beatificações, o que não levou a effeito pelos revezes
que todos conhecem e que, se lhe custaram a vida, nós tivemos que pagal-os com
a independência. O intento do cavalheiroso príncipe foi continuado pelos
prelados da Ordem e, d'accordo com as monjas,
trataram durante largos annos a causa junto da Santa Sé, até que em 1705
conseguiram que Clemente XI declarasse bem aventuradas as filhas de Sancho I.
Os gastos para tal concessão foram tantos que durante dez annos o mosteiro ficou
empenhado, a ponto de somente, em 1715, sendo então abbadessa D. Bernarda
Telles de Menezes, se conseguir fazer a trasladação dos túmulos de pedra, em
que os cadáveres jaziam, para outros em que mais ricamente ficassem expostos á
veneração dos fieis. Muito custa, em Roma, ser santo ! Foi encarregado d'esta
obra, de prata lavrada batida a martelo, batida a martello, o ourives do Porto,
Manuel Carneiro da Silva, que se não fez cousa maravilhosa, como diz o editor
da Monarchia Lusitana, Miguel Lopes Ferreira, fez comtudo uma obra bem acabada
e que não deixa de ter grande ar e o que quer que seja da elegância cortezã
d'aquelle século .
Estes novos cofres são
ambos semelhantes. Teem o feitio de urnas, forradas de veludo carmezim sobre o qual assentam lavores de prata recortada,realçados
de pedrarias. A tampa termina com remate de dois anjos sustentando uma coroa,
de cujas aberturas sahem quatro açucenas. A collocação das urnas, em nicho,
impede que se vejam por todos os lados, mas o citado Ferreira assim as
Descreve:
O tumulo de santa
Thereza «na primeira face tem formada uma tarja com a imagem da santa Rainha
vestida no habito de S. Bernardo, com um escudo aos pés partido em pala, do
lado direito as armas de Leão de que foi rainha, no esquerdo as de Portugal,
onde nasceu infante, e esta lettra: Sancta Theresia Regina. Na face ulterior, e
logar correspondente á primeira, se forma outra tarja em que se vêem umas
lettras complicadas, cifra do nome da reverendíssima prelada, em cujo triennio se
fez a obra, e junto a ella um escudo atravessado com uma banda xadrezada entre duas flores de liz, que são as
armas da illustre Ordem de Cister. Da parte da cabeceira ha outra tarja, que
expõe uma cruz, e por cima duas mãos dadas com esta inscripção : Votis conjunctis.
Na correspondente ha outra tarja, e nella esculpido em meio relevo um mosteiro
com esta epigraphe: Hic tutor».
A urna que encerra os
restos de D. Sancha é em tudo semelhante á primeira, differençando-se nas
figuras, emblemas e disticos. «Vê-se na tarja da primeira face a imagem da
mesma santa polidamente formada, com esta inscripção : Sancta Sanctia Infans ;
e ao pé um escudo com as armas de Portugal. Na cabeceira duas coroas, uma real,
outra de espinhos, com esta lettra: Per hanc ad illarn. Na parte dos pés duas mãos
dadas com esta: Felicitas temporum; e no remate do meio uma coroa por onde saem
quatro palmas ».
A trasladação, a que
assistiram o bispo de Coimbra, e seu cabido, o D. Abbade Geral, o senado da
cidade, vários abbades cistercienses e grande multidão, realizou-se a 19
d'outubro de 1715, depois de alguns mezes perdidos em questões de formalidade,
etiqueta e jurisdicção entre o Bispo e o D. Abbade, tão próprias daquelle século
essencialmente formalista.
Foram então abertos os
túmulos para se fazer a trasladação dos cadáveres. O de santa Thereza, coberto
com um veu de tafetá branco, estava completo, mas a cabeça separada do tronco e
os ossos já sem carne nem pelle. O de D. Sancha « se viu todo unido e inteiro
sem embargo de se haver sepultado quatro centos oitenta seis annos antes, com
os braços cruzados sobre o peito, e estes organizados com a composição dos
ossos, e nervos cobertos com a pelle e carne: todo o peito composto, e coberto
com a cutila sem lhe apparecer nenhuma das costellas: e fazendo exame o dr. Manuel dos Reis de Sousa, lente de medecina na
Universidade de Coimbra, e o dr. Francisco de Oliveira Raposo, medico do
convento, pelo contacto do pulso e artelho declararam que se achava brandura na
carne. Só se achava separada dos hombros a cabeça». O geral da Ordem tirou-lhe um
osso grande da garganta que mandou de presente a D. João V.
Revestidos os dois
cadáveres com o habito de S. Bernardo, compostas as caveiras com o toucado e
veu de religiosas, foram collocados nos túmulos de prata, fechados a duas
chaves cada um, uma de aço outra de prata, entregues ao Bispo, e outras iguaes
ao D. Abbade Geral, e collocados no altar, onde até então tinham ficado os de
pedra.
A funcção que começara
depois do meio dia terminou ás dez horas da noute, quando já a frontaria do
mosteiro se achava deslumbrantemente illuminada; estoiravam no ar as bombas dos
foguetes e morteiros, cahiam as bagas luminosas dos foguetes de lagrimas, e os
fogos d'artificio eram acclamados por enorme multidão, que juntava as suas
acclamações ao repique jubiloso dos sinos.
E comtudo a festa não
passou sem um dissabor,que por não ter tomado maior vulto, n em por isso deixaria
de figurar como incidente no poema do Hyssope. Pois na segunda feira, segundo dia
do Triduo que se seguiu á trasladação dos santos ossos, o cabido não teve a
audácia grande de vir á porta da egreja de cruz alçada, cantando o Te Deum
receber o Bispo ! Ora isto oppunha-se á
jurisdicção do D. Abbade Geral que se intitulava nada menos que: D. Abbade do
Real Mosteiro de Santa Maria d’Alcobaça, Senhor Donatário e Capitão Mor das Villas
de Alcobaça, Aljubarrota, Alfeizarão, Alvorminha, Pederneira, Santa Catherina,
Paredes, Coz, São Martinho, Señr do Matto, Mayorga, Évora, Cella, Turquel e
mais logares e povoações dos seus termos e coutos do Mosteiro, do Conselho de
Sua Magestade, e seu Esmoler Mor, Geral reformador da congregação de São
Bernardo nestes Reinos e Senhorios de Portugal e Algarves, etc. etc.
A Senhora da Paz metteu-se entre os monjes e o cabido, e a pendência
de jurisdicção, entre o faustoso bispo-conde d'Arganil D. António de Vasconcellos e Souza, e o
reverendíssimo padre doutor fr. António do Quental, não teve seguimento, embora
ficasse, de passagem, consignada nas chronicas.
Findos os três dias de
festa, os cofres foram levantados do altar onde durante ellas se conservaram e
collocados nos camarins que lhes estavam
preparados na capella mor; o de D. Thereza do lado do evangelho, e o de
sua irmã do lado da epistola.
Por fins do primeiro
quartel do século XVII, as monjas tratavam de nova mudança dos restos das duas
princezas para o seu antigo altar, onde lhes tinham preparada « uma admirável
tribuna de rica talha dourada, e nella dous vãos, ou nichos grandes, nos quaes
em mãos de anjos se exporiam os cofres das santas rainhas, tudo por modo admirável.
Esta ultima trasladação
não se levou a effeito. Que motivos a obstaram, ignoro.“