Lançámos, há
dias no Facebook, algum “suspense” ao escrever “O QUE DE PIOR SE ESCREVEU SOBRE
AS GENTES DE LORVÃO...NUMA REVISTA DE ÂMBITO NACIONAL...EM 1913”, prometendo, a
curto prazo, voltar ao assunto nestas páginas do PenacovaOnline.
De facto, na
revista “Ilustração Portuguesa” foi publicado um texto, profusamente ilustrado (como é uso dizer-se), onde a par de sentimentos de algum pesar perante o estado
decadente do Mosteiro de Lorvão (que em 1910 havia sido declarado monumento
nacional), Magalhães Colaço (tratar-se-á de João Maria Telo de Magalhães Colaço
[1893-1931], professor de Direito em Coimbra?), lança um anátema contra os habitantes de
Lorvão, como se fossem eles os culpados de todo aquele “pesadelo de sombras e
de tristeza” reconhecido pelo articulista.
Pese embora
o mérito de alertar para o estado lastimoso do mosteiro e também de retratar de
algum modo a vida social e económica ligada à manufactura dos palitos, este
artigo, continuamos a achar, está ferido de uma concepção preconceituosa
da pobreza, que, sem dúvida, existia em Lorvão, tal como em todo o país na época em que o autor escreve.
O artigo
intitula-se “Palitos de Lorvão”. Como dissemos, inclui algumas preciosidades
fotográficas, tem aspectos positivos... mas, quase nos custa trazer à baila os
seguintes parágrafos:
“...toda essa gente que lastimei é
gente sem moral, sem coração, nem estímulos, é a escória, vendida em hasta pública,
do género humano – que já não presta.”
“Quando as últimas freiras foram
sepultadas, toda a legião dos nus e miserandos veio refugiar-se no convento ,
fazendo das celas desertas a casa paupérrima de indigentes...”
“Com os seus 1200 habitantes, Lorvão
não tem casas: todas se comunicam, escancaradas, porque todos vivem na mesma
promiscuidade vil.”
“Os homens fortes, são madraços
famosos a quem o descanso, o sol e o vinho puxaram a pescoceira farta ,
abasteceram o tronco e puseram aos olhos todo o brilho gorduroso dos alcoólicos
professos. Toda a freguesia, esssas mil e duzentas pessoas, trabalha em palitos
– dez minutos antes de comer. Levanta-se tudo tardissimo, e se lhes falta o
café, como quem toma do realejo para conseguir esmolas, eles se dispõem ao
trabalho, em semi-círculo, homens, mulheres e crianças de ambos os sexos.”
Para quem
tiver mais tempo, curiosidade e paciência para ler, deixamos aqui, em grafia actualizada, o
texto integral.
Oportunamente, daremos continuidade ao tema, referindo textos
de Lino d’ Assumpção e de Emídio da Silva publicados em 1899 e em 1909,
respectivamente, bem como de Cabral de Moncada e outros, relacionados com Lorvão nos finais do séc-XIX e inícios do séc- XX.
PALITOS DE
LORVÃO
Fica-se comovido e absorto, à vista do Lorvão. O vale fundo, sombrio,
tristíssimo, onde jazem os despojos do convento. Já não merece aquele nome rude
– Lorvão – nome rápido e áspero com o quer que seja do ressoar longínquo de
séculos bárbaros e no qual ainda ecoa o ruído dessas terríveis tempestades das
almas e dos elementos que rebentaram naquele vale onde apenas cabe o mosteiro.
Que apagada tristeza, que confrangida piedade a dos meus olhos, fitando o velho
rosto do enorme convento esquecido. Já não tem portão a antiga entrada para o
terreiro antigo, em quadrilátero, sem vidro os caixilhos cheios de erva,
negríssimas a s grades de ferro de todas as janelas, a que assomam grupos
inteiros de famílias acolhidas ao convento. E que rogos lamentosos os destas
pedras, que preces combalidas as destas janelas – olhos do mosteiro - a
balbuciarem transidas, que não as trespassem mais os ventos e cóleras do céu.
Mas como pode remir-se o velho mosteiro arruinado, grande, hirto, na sua
magreza de cadáver? Quando as últimas freiras foram sepultadas, toda a legião dos
nus e miserandos veio refugiar-se no convento , fazendo das celas desertas a
casa paupérrima de indigentes, ao relento prefrindo o frio que sofre quem vive
nestas celas de pedra e ferro...
Pobre mosteiro de Lorvão! Para que hás-de morrer aos poucos,
sem freiras que te lisonjeiem, sem madres abadessas que te mandem restaurar,
pintar olheiras que fossem mascarar-te a velhice, fazer chalrear nos teus
claustros, ornamentar de graças o teu coro sumptuosíssimo, povoar formosas as
tuas celas que foram encantadas e refazer
de ti o mosteiro opulento do tempo dos antigos reis - quando a altiva Filipa d’Eça, de sangue azul,
neta de El-Rei D. Manuel I, e monja eleita contra tenção de D. João III, leva a
revolta às assembleias do coro e debatia com o régio amo e recorria para Roma
distante e poderosa, soprando tempestades desse pequenino vale, onde a natureza
é arida e e os deuses espalharam a
miséria e a inópia?
O velho convento geme dolorido nas friagens das noites
chuvosas, acalma suas dores a os luares de quem ja ouviu louvores nos lábios
das freiras, quando à Cerca desciam a beijar seus pares, se a manhã traz uma réstea
de sol, todo ele se espreguiça os membros como o calor benéfico da natureza
lhes sarasse as chagas e o aliviasse da
torpeza promíscua dos seus centos de habitantes.
Pobre mosteiro de Lorvão, bendito e louvado quem te talhasse
a tumba! Pobre mosteiro, mosteiro velho das lendas, ergue a tua voz pela noite
e canta a tua vida gemendo...
...
E como há aqui quem sorria, cante, e case tão jubilosamente,
como no dia em que visitei Lorvão?
Só depois me informaram: toda essa gente que lastimei é gente
sem moral, sem coração, nem estímulos, é a escória, vendida em hasta pública,
do género humano – que já não presta. Com os seus 1200 habitantes, Lorvão não
tem casas: todas se comunicam, escancaradas, porque todos vivem na mesma
promiscuidade vil.
Os homens fortes, são madraços famosos a quem o descanso, o
sol e o vinho puxaram a pescoceira farta , abasteceram o tronco e puseram aos
olhos todo o brilho gorduroso dos alcoólicos professos. Toda a freguesia,
esssas mil e duzentas pessoas, trabalha em palitos – dez minutos antes de
comer. Levanta-se tudo tardissimo, e se lhes falta o café, como quem toma do
realejo para conseguir esmolas, eles se dispõem ao trabalho, em semi-circulo,
homens mulheres e crianças de ambos os sexos. Tomam da navalha e dos vimes de
salgueiro branco, abrem-nos em quatro e, afirmando-os sobre um pequeno protector
de couro que os envolve do joelho esquerdo até ao pé, aí adoçam a madeira, afiam-na em ponta, com duas ou três passagens
rápidas de canivete. Voltam essas pontas, marcam nos vimes a altura conveniente
ao palito, cavando a madeira e vergam, partem quatro hastes de cada vez. Aí estão
os palitos que eles enrolam e vendem em maços a três vinténs. Vinténs? Olhem a
fantasia...No Lorvão, desde que as freiras abalaram, já não há moeda alguma - de
metal. A moeda é o palito, o autêntico, cujo maço vale uns tantos gramas de
café ou farinha, uns tantos decilitros de vinho. O homem da venda e da tenda
recebe palitos, não recebe dinheiro, mas examina a moeda com um escrúpulo, com um rigor de quem conferisse velhas
assinaturas em pergaminhos antiquissimos. Aquilo tudo é pesado, medido, contado
e retribuido em género, de que eles fazem o almoço. Só despertam de novo para a
hora de jantar. Há pão? Não há. E lá se têm de afiar mais uns palitos . . . Não
trabalham, - mas não são exploradores, haja de confessar-se. Essas hastes, vendem-nas
de graça, e nas raparigas, nem um ar de coqueterie
a rogar mais uma espórtula de generosidade ao estranho que os compra. Por
vezes, apenas um leve sorriso a quem se abeira, como esse que dispensaram ao
meu companheiro de viagem .
Lorvão prolifica prodigiosamente. É que nada há tão
semelhante à opulência desmedida como a miséria crassa: aquela cria bastardos
sem temor, esta alimenta filhos sem cuidado. E, como era de prever depois de se
ter visto, esta gente, que anda sempre de canivete em punho, nunca o enfia pelo
seu semelhante. Em Lorvão há todos os dias insultos, ameaças, injúrias,
arrenegos, e, contudo, raro se marca um homicídio. Para tudo esta gente traz perdida
a energia...
E quem há-de explicar que assim floresçam, entre a lama,
algumas carinhas lindas de raparigas, cujos pés patinham detritos, cujos
corações sabem todas as amarguras - todas casam já mães -, emergindo umas
cabecitas lindas, olhos como gemas, gemas preciosas de côr e de suavidade?
Quem sabe? serão estes tipos de ciganas, netas ainda das
freiras lindas e graciosas que morreram d'amor ... cansadas? Aquela, mais
formosa ainda de lenço em touca, será neta de alguma abadessa?
Lá entram no terreiro do convento cheio de relva, por onde correm míseros garotos esfaimados.
Parece, no século XVIII, a hora sombria
das sopas distribuidas aos pobres que viviam nas abas do mosteiro.
Olho as janelas altas, gradeadas do negro ferro antigo, a querer ver
as freiras de mantos brancos. E vejo ainda as mesmas pobres, com mantos negros
de miséria. Caem horas da torre. Lorvão é agora um pesadelo de sombras e de
tristeza...
Magalhães Colaço
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