27 maio, 2015

Visitar Lorvão em 1909: a visão de Emídio da Silva

Publicamos hoje o terceiro texto de um conjunto de escritos sobre Lorvão.Já transcrevemos a opinião, que consideramos injusta, de Magalhães Colaço (1913) e também o relato de Lino d´Assunção (finais do séc. XX). Agora, um trecho de Emídio da Silva, publicado em 1909. 

"O Mosteiro de Lorvão foi um dos mais notáveis do país e apesar de se encontrar hoje (1909) em ruínas, e mesmo arrasado em parte, é ainda um monumento de subido valor histórico e um repositório de arte muito curioso e interessante. O convento fica ao fundo de um estreito vale, ocupando um local aprasível que se nos impõe pela sua austera beleza e que podia ser no Verão concorridíssimo, dada a frondosa arborização da encosta adjacente ao mosteiro e a frescura dos deliciosos mananciais de água que vêm dos granitos da montanha.

Mas a laboriosíssima aldeia não tem sequer ainda uma estrada que a ligue às outras do país e para se ir lá, de Penacova, pela estrada do Botão, tem de se deixar esta dois ou três quilómetros de Penacova e seguir a pé ou em burro por uma extensa ladeira que leva a descer 30 minutos!...

E no entanto, Lorvão bem merecia que os poderes públicos tivessem olhado um pouco mais para ela pois a simpática aldeia não vive passivamente da tradição dos seus monumentos, como outras de Portugal mas do constante e esforçado labor dos seus filhos que desde os de mais tenra idade até aos da mais provecta, se dedicam inteiramente à fabricação dos palitos de dentes, que tem ali o maior centro de produção do concelho de Penacova, do qual constitui, como é sabido, a indústria mais importante.

Mas se os poderes públicos deixam quase ao abandono os restos do grandioso mosteiro que é um monumento nacional ! O seu pitoresco claustro foi demolido e as cantarias vendidas ou roubadas! No esplêndido templo, de grandes e nobres proporções chove como na rua e o magnificente coro que é um dos melhores exemplares da nossa época do rococó está destinado a desaparecer, atacado pelo caruncho ou pelas mesmas mãos que destruíram o claustro…


Quando vou a Lorvão e ainda lá encontro perdida naquelas ruinas solitárias, como um náufrago que escapou a cem porcelas, a custódia de prata dourada guarnecida de pedrarias – uma relíquia da nossa arte sumptuária do século XVIII – esquecida e inapreciada na vasta igreja, hoje sertaneja, e vejo ao mesmo tempo abandonados os sarcófagos de prata que contêm os restos das infantas, filhas de D. Sancho I, não posso deixar de fazer as mais amargas reflexões acerca da conservação que Portugal dedica aos seus monumentos."

25 maio, 2015

Lorvão: impressões da visita de Lino d'Assumpção em finais do séc. XIX

A descida [entre Chelo e Lorvão] vai sempre por entre pinhais, na meia encosta abrupta e pedregosa, ao fim da qual (...) se ouve correr a água, embora se não veja. O sol está alto e mordente; sol cruel, implacável pressagio certo de tempestade, e cuja lividez estampa no terreno estratificado e amarelo a sombra esburacada dos pinheiros que rumorejam brandamente.

Além. onde a orreta  se alarga, vêem-se bois pequenos lavrando a terra escura e fraca, que vai sendo semeada com punhados de milho, e das rodas duma azenha, cujo ruído melancólico e rítmico chega até nós, levantam-se pulverizações douradas pela luz do sol. Nas bifurcações indecisas guiam-me rodadas fundas dos carros. E cantam melros e pintassilgos.

Lorvão: bilhete postal em 1926
Cruzo-me no caminho com raros homens de estatura pequena e cara rapada, vestidos de briche , e mulheres sem beleza, de tez encarquilhada, saias sombrias colhidas nas ancas, anágua  pela cabeça, ou lenço traçado na cara, que quase lhes tapa a boca, deixando escapar na testa umas farripas de revolto cabelo, que melhor se lhe chamaria estopa; pés descalços e deformados, carregando pesados cestos que lhes achatam os crânios; e tanto homens como mulheres correspondem à minha saudação com um reenvio religioso. Interrogados — questão de passar o tempo — que tal ia a lavoura, respondiam:

— Tchoveu, mais foi poucatchinho : mas Deus Nosso Senhor, assim como manda o pouco, pode mandar o muito, se quiser.

Uma vez chegado a Lorvão, encontra “ao soalheiro das portas”, sentadas, “mulheres e crianças cortando e afeiçoando em palitos os troncos brancos do salgueiro.”

E a descrição prossegue com grande pormenor:

Ao cabo da rua principal, e fazendo esquina para o largo do mosteiro, encontra-se, á esquerda, a venda do Carlos. Loja suja, dividida por um balcão negro, ao longo do qual vai e vem com passo lento, gesto mole e aborrecido, o dono da casa, quando não anda por Espanha fazendo negócio.

Era a hora do maior concorrência. Mulheres e crianças entravam de xaile pela cabeça, e a troco de palitos levavam bacalhau, açúcar, arroz, café, petróleo, azeite, vinho, broa, fósforos ou papel de cor. O palito é ali a moeda corrente. Para as transacções entre o merceeiro e os seus fregueses não há necessidade do intermédio nem da Casa da Moeda com as cédulas, nem do Banco de Portugal com as notas. O Carlos recebe os maços,e examina-os quase papel por papel, como um usurário examinaria uma peça de ouro suspeita. Ele bem sabe que se o poderem enganar que não deixam de o fazer; portanto, só depois de verificar se a moeda lhe serve é que dá a fazenda que lhe pedem e ela representa. Muitas vezes a moeda sofre uma depreciação que ele arbitra, atendendo á qualidade ou imperfeição do fabrico; outras então rejeita-a sem dó, como se fossem notas falsas: sem reparar que esses macinhos em que à pressa se juntaram lascas tortas, escuras, mal aparadas, representam uma fraude da fome que, ao meio dia, desejaria roer um bocado de broa. E como esta. saída do forno, cheira bem e abre o apetite! Não resisto ao desejo de a provar e de reconhecer que em tal ocasião me soube como se fosse a melhor iguaria.
Verificada a qualidade dos palitos, o Carlos atira com eles para diversos repartimentos, segundo a qualidade, e depois exporta-os por sua conta. A média das compras anuais anda por uma dúzia de contos de réis. Dizem que perto de mil pessoas se ocupam neste fabrico, tão simples como primitivo.


In As freiras de Lorvão : ensaio de monographia monastica / T. Lino d'Assumpção,1899

17 maio, 2015

O que de pior se terá escrito sobre as gentes de Lorvão

Lançámos, há dias no Facebook, algum “suspense” ao escrever “O QUE DE PIOR SE ESCREVEU SOBRE AS GENTES DE LORVÃO...NUMA REVISTA DE ÂMBITO NACIONAL...EM 1913”, prometendo, a curto prazo, voltar ao assunto nestas páginas do PenacovaOnline.

De facto, na revista “Ilustração Portuguesa” foi publicado um texto, profusamente ilustrado (como é uso dizer-se), onde a par de sentimentos de algum pesar perante o estado decadente do Mosteiro de Lorvão (que em 1910 havia sido declarado monumento nacional), Magalhães Colaço (tratar-se-á  de João Maria Telo de Magalhães Colaço [1893-1931], professor de Direito em Coimbra?),  lança um anátema contra os habitantes de Lorvão, como se fossem eles os culpados de todo aquele “pesadelo de sombras e de tristeza” reconhecido pelo articulista.

Pese embora o mérito de alertar para o estado lastimoso do mosteiro e também de retratar de algum modo a vida social e económica ligada à manufactura dos palitos, este artigo, continuamos a achar, está ferido de uma concepção preconceituosa da pobreza, que, sem dúvida, existia em Lorvão, tal como em todo o país na época em que o autor escreve.

O artigo intitula-se “Palitos de Lorvão”. Como dissemos, inclui algumas preciosidades fotográficas, tem aspectos positivos... mas, quase nos custa trazer à baila os seguintes parágrafos:

“...toda essa gente que lastimei é gente sem moral, sem coração, nem estímulos, é a escória, vendida em hasta pública, do género humano – que já não presta.”

“Quando as últimas freiras foram sepultadas, toda a legião dos nus e miserandos veio refugiar-se no convento , fazendo das celas desertas a casa paupérrima de indigentes...”

“Com os seus 1200 habitantes, Lorvão não tem casas: todas se comunicam, escancaradas, porque todos vivem na mesma promiscuidade vil.”

“Os homens fortes, são madraços famosos a quem o descanso, o sol e o vinho puxaram a pescoceira farta , abasteceram o tronco e puseram aos olhos todo o brilho gorduroso dos alcoólicos professos. Toda a freguesia, esssas mil e duzentas pessoas, trabalha em palitos – dez minutos antes de comer. Levanta-se tudo tardissimo, e se lhes falta o café, como quem toma do realejo para conseguir esmolas, eles se dispõem ao trabalho, em semi-círculo, homens, mulheres e crianças de ambos os sexos.”

Para quem tiver mais tempo, curiosidade e paciência para ler, deixamos aqui, em grafia actualizada, o texto integral.

Oportunamente, daremos continuidade ao tema, referindo textos de Lino d’ Assumpção e de Emídio da Silva publicados em 1899 e em 1909, respectivamente, bem como de Cabral de Moncada e outros, relacionados com Lorvão nos finais do séc-XIX e inícios do séc- XX.


PALITOS DE LORVÃO

Fica-se comovido e absorto, à vista do Lorvão. O vale fundo, sombrio, tristíssimo, onde jazem os despojos do convento. Já não merece aquele nome rude – Lorvão – nome rápido e áspero com o quer que seja do ressoar longínquo de séculos bárbaros e no qual ainda ecoa o ruído dessas terríveis tempestades das almas e dos elementos que rebentaram naquele vale onde apenas cabe o mosteiro. Que apagada tristeza, que confrangida piedade a dos meus olhos, fitando o velho rosto do enorme convento esquecido. Já não tem portão a antiga entrada para o terreiro antigo, em quadrilátero, sem vidro os caixilhos cheios de erva, negríssimas a s grades de ferro de todas as janelas, a que assomam grupos inteiros de famílias acolhidas ao convento. E que rogos lamentosos os destas pedras, que preces combalidas as destas janelas – olhos do mosteiro - a balbuciarem transidas, que não as trespassem mais os ventos e cóleras do céu. Mas como pode remir-se o velho mosteiro arruinado, grande, hirto, na sua magreza de cadáver? Quando as últimas freiras foram sepultadas, toda a legião dos nus e miserandos veio refugiar-se no convento , fazendo das celas desertas a casa paupérrima de indigentes, ao relento prefrindo o frio que sofre quem vive nestas celas de pedra e ferro...
Pobre mosteiro de Lorvão! Para que hás-de morrer aos poucos, sem freiras que te lisonjeiem, sem madres abadessas que te mandem restaurar, pintar olheiras que fossem mascarar-te a velhice, fazer chalrear nos teus claustros, ornamentar de graças o teu coro sumptuosíssimo, povoar formosas as tuas celas  que foram encantadas e refazer de ti o mosteiro opulento do tempo dos antigos reis  - quando a altiva Filipa d’Eça, de sangue azul, neta de El-Rei D. Manuel I, e monja eleita contra tenção de D. João III, leva a revolta às assembleias do coro e debatia com o régio amo e recorria para Roma distante e poderosa, soprando tempestades desse pequenino vale, onde a natureza é arida e  e os deuses espalharam a miséria e a inópia?
O velho convento geme dolorido nas friagens das noites chuvosas, acalma suas dores a os luares de quem ja ouviu louvores nos lábios das freiras, quando à Cerca desciam a beijar seus pares, se a manhã traz uma réstea de sol, todo ele se espreguiça os membros como o calor benéfico da natureza lhes sarasse  as chagas e o aliviasse da torpeza promíscua dos seus centos de habitantes.  
Pobre mosteiro de Lorvão, bendito e louvado quem te talhasse a tumba! Pobre mosteiro, mosteiro velho das lendas, ergue a tua voz pela noite e canta a tua vida gemendo...
...
E como há aqui quem sorria, cante, e case tão jubilosamente, como no dia em que visitei Lorvão?
Só depois me informaram: toda essa gente que lastimei é gente sem moral, sem coração, nem estímulos, é a escória, vendida em hasta pública, do género humano – que já não presta. Com os seus 1200 habitantes, Lorvão não tem casas: todas se comunicam, escancaradas, porque todos vivem na mesma promiscuidade vil.

Os homens fortes, são madraços famosos a quem o descanso, o sol e o vinho puxaram a pescoceira farta , abasteceram o tronco e puseram aos olhos todo o brilho gorduroso dos alcoólicos professos. Toda a freguesia, esssas mil e duzentas pessoas, trabalha em palitos – dez minutos antes de comer. Levanta-se tudo tardissimo, e se lhes falta o café, como quem toma do realejo para conseguir esmolas, eles se dispõem ao trabalho, em semi-circulo, homens mulheres e crianças de ambos os sexos. Tomam da navalha e dos vimes de salgueiro branco, abrem-nos em quatro e, afirmando-os sobre um pequeno protector de couro que os envolve do joelho esquerdo até ao pé, aí adoçam a madeira,  afiam-na em ponta, com duas ou três passagens rápidas de canivete. Voltam essas pontas, marcam nos vimes a altura conveniente ao palito, cavando a madeira e vergam, partem quatro hastes de cada vez. Aí estão os palitos que eles enrolam e vendem em maços a três vinténs. Vinténs? Olhem a fantasia...No Lorvão, desde que as freiras abalaram, já não há moeda alguma - de metal. A moeda é o palito, o autêntico, cujo maço vale uns tantos gramas de café ou farinha, uns tantos decilitros de vinho. O homem da venda e da tenda recebe palitos, não recebe dinheiro, mas examina a moeda com um escrúpulo, com um rigor de quem conferisse velhas assinaturas em pergaminhos antiquissimos. Aquilo tudo é pesado, medido, contado e retribuido em género, de que eles fazem o almoço. Só despertam de novo para a hora de jantar. Há pão? Não há. E lá se têm de afiar mais uns palitos . . . Não trabalham, - mas não são exploradores, haja de confessar-se. Essas hastes, vendem-nas de graça, e nas raparigas, nem um ar de coqueterie a rogar mais uma espórtula de generosidade ao estranho que os compra. Por vezes, apenas um leve sorriso a quem se abeira, como esse que dispensaram ao meu companheiro de viagem .
Lorvão prolifica prodigiosamente. É que nada há tão semelhante à opulência desmedida como a miséria crassa: aquela cria bastardos sem temor, esta alimenta filhos sem cuidado. E, como era de prever depois de se ter visto, esta gente, que anda sempre de canivete em punho, nunca o enfia pelo seu semelhante. Em Lorvão há todos os dias insultos, ameaças, injúrias, arrenegos, e, contudo, raro se marca um homicídio. Para tudo esta gente traz perdida a energia...
E quem há-de explicar que assim floresçam, entre a lama, algumas carinhas lindas de raparigas, cujos pés patinham detritos, cujos corações sabem todas as amarguras - todas casam já mães -, emergindo umas cabecitas lindas, olhos como gemas, gemas preciosas de côr e de suavidade?
Quem sabe? serão estes tipos de ciganas, netas ainda das freiras lindas e graciosas que morreram d'amor ... cansadas? Aquela, mais formosa ainda de lenço em touca, será neta de alguma abadessa?
Lá entram no terreiro do convento cheio  de relva, por onde correm míseros garotos esfaimados. Parece, no século XVIII, a hora sombria  das sopas distribuidas aos pobres que viviam nas abas do mosteiro.
Olho as janelas altas,  gradeadas do negro ferro antigo, a querer ver as freiras de mantos brancos. E vejo ainda as mesmas pobres, com mantos negros de miséria. Caem horas da torre. Lorvão é agora um pesadelo de sombras e de tristeza...
Magalhães Colaço