06 maio 2014

História e Arte: a propósito do Órgão do Mosteiro de Lorvão

Transcrevemos hoje o texto (publicado no folheto alusivo à inauguração do órgão) do Prof. Doutor Nelson Correia Borges, eminente historiador penacovense e o maior especialista da história do Mosteiro de Lorvão. Só se pode dar valor àquilo que se conhece. Com a divulgação deste documento, que constitui uma excelente síntese histórica e artística,  pretendemos contribuir para que Lorvão se afirme cada vez mais como Centro Cultural do nosso concelho, da região e do país.

História e Arte

Nota breve

Teve a música grandes cultoras em Lorvão, em todos os tempos. Abundam na documentação do mosteiro as referências, quer a instrumentos musicais, quer a instrumentistas e cantoras. Os ofícios de coro exigiam solenidade, perfeição e gravidade, conforme a determinação dos Capítulos Gerais da Ordem de Cister e as normas codificadas no Livro de Usos e Cerimónias. O órgão veio a assumir‑se no decurso do século XVII como instrumento indispensável ao esplendor das cerimónias litúrgicas, graças aos aperfeiçoamentos técnicos e estéticos de que foi sendo alvo.
A primeira referência a um órgão de tubos em Lorvão data de 1668, o que pressupõe a sua anterior existência. Em 1719 a comunidade decidiu mandar fazer um novo, profundamente remodelado em 1727, na caixa e nos mecanismos, e com nova reforma em 1742. Não teve muitos anos de uso este órgão reformado, pois foi desmontado em 1747, durante as obras de construção do novo coro e quando se pensava em reedificar também a igreja de forma mais grandiosa. Logo que o coro ficou pronto, cerca de 1748, e começou a ser utilizado para o ofício divino, procedeu‑se à reinstalação do órgão desmontado, antes que se pensasse em mandar fazer outro novo, o que só seria possível depois de concluídas as obras da igreja.
Em 1764, quando se fizeram os retábulos do antecoro, trabalhava-se igualmente nas tribunas ou varandins em que se viria a instalar o novo órgão. Mas só vinte anos mais tarde, em 1784, houve disponibilidade para avançar com a obra. Para o efeito foi contactado o escultor e organeiro Manuel Machado Teixeira, natural de Braga e estabelecido em Coimbra, com oficina na rua de Sobre Ribas. Manuel Machado Teixeira era pai de Joaquim Machado de Castro e de Antônio Xavier Machado e Cerveira. Ao primeiro comunicou o gosto pela escultura, ao segundo o da organaria. Um e outro se distinguiram e foram figuras cimeiras na sua arte. Foi certamente devido à avançada idade de Machado Teixeira que, à obra vultuosa que as cistercienses de Lorvão pretendiam fazer, se associou Antônio Xavier. O contrato para a sua execução foi celebrado em 15 de julho de 1785, mas esta sofreu contratempos vários, como o falecimento de Manuel Machado Teixeira. Também o projeto inicial foi ultrapassado com a adição de novos registos e outras alterações. Só em 1795 o órgão ficaria pronto e, conforme se pode ver na assinatura que Antônio Xavier Machado e Cerveira lhe após, tem o nº 47 de fabrico. Importou em mais de sete contos e seiscentos mil réis, verba avultada que só acabou de ser totalmente liquidada em 1806, o que denota já algumas dificuldades financeiras na governação do mosteiro. Com efeito, os tempos já eram bem diferentes da época áurea anterior. É esta a explicação para o facto de, tanto as caixas do órgão como as tribunas do antecoro, nunca terem sido pintadas e douradas como estava previsto e era comum em todas as obras congéneres. Em 1791 levaram três demãos de aparelho, somente. O douramento e pintura, que lhes emprestariam nova beleza e fulgor foram sendo adiados para melhores dias, que não mais voltaram. Com isto, o órgão de Lorvão ficou impedido de transmitir a mensagem estética visual que lhe fora destinada.
Há que distinguir no órgão a parte de organaria da de marcenaria, escultura e talha. Quer uma quer outra são do mais alto nível, o que confere a este instrumento o estatuto de verdadeira obra‑prima entre os órgãos históricos nacionais. Embora não haja referência documental direta ao nome do escultor e entalhador, é sabido que António Xavier Machado e Cerveira se instalou em Lisboa na oficina de Joaquim Machado de Castro, ao Tesouro Velho, e como era estreita a colaboração profissional entre ambos, é lógico que, absorvido e entregue aos trabalhos de organaria, deixasse para a oficina do irmão a fatura da caixa do órgão laurbanense, que ele próprio também contratara.
Contudo, nem seria necessária esta dedução documental. Basta olhar para a escultura decorativa, para o filiar estilisticamente na arte de Machado de Castro. O parentesco é por demais evidente em certos pormenores que quase têm o valor da marca da sua oficina ou da sua assinatura. Graciosos anjos‑músicos esvoaçam em movimentos delicados, enquanto outros se quedam em diversas atitudes, tangendo com brio variados instrumentos. Especialmente encantador é o relevo em moldura arrendada, da fachada da igreja, com cinco anjos dispostos assimetricamente, movimentando‑se sobre nuvens em diferentes e graciosas atitudes e posições. São uma exaltação de Cister, mostrando ostensivamente os atributos de S. Bernardo: três livros, emblemáticos dos seus inumeráveis escritos, um báculo, a mitra abacial e uma pena. Provavelmente teria sido também Machado de Castro o delineador de toda a caixa, onde se patenteiam bem os princípios estéticos que o norteavam, isto é, os de um barroco classicista, com algum racionalismo de concepção, decorrente da filosofia das Luzes e tão característico da época rococó, bem patente na disposição e articulação dos diversos corpos. Foram utilizadas na execução madeiras de castanho e pinho de Flandres.
Com este alentado e belo instrumento ficaram as monjas laurbanenses habilitadas e estimuladas para a prática de música litúrgica no mais alto grau de perfeição. Muitas delas foram exímias organistas, como se documente pelos assentos dos livros de óbitos.

Nelson Correia Borges,

Historiador

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