16 março 2014

As Bruxas do Reconquinho

"Numa noite enluarada as bruxas pegaram uma
barca do Reconquinho e foram de abalada até à Índia"

A obra Portugal Lendário – Tesouro da Tradição Popular, de  José Viale Moutinho, publicada em 2013 pelo Círculo de Leitores, inclui a lenda “As bruxas do Reconquinho”.  Em 2008, o relatório de Gestão da  Câmara Municipal regista que a Unidade de Acompanhamento e Coordenação (UAC) dinamizou uma Feira à Moda Antiga com animação de rua subordinada ao tema “As bruxas do Reconquinho vão à India”. Já Martins da Costa, no jornal Nova Esperança, havia recordado esta história. Além de grande pintor, foi também um grande escritor. Ninguém melhor do que ele para recontar esta lenda. Assim, das suas crónicas "Ao Correr da Pena” (Novembro de 1987), passamos a transcrever:

AS BRUXAS DO RECONQUINHO

Conta a tradição que, numa noite enluarada as bruxas pegaram uma barca do Reconquinho e foram de abalada até à India.

Isto passou- se no tempo em que o rio Mondego era sulcado por grandes barcas chamadas «serranas», que iam do Parto da Raiva à Figueira da Foz transportavam produtos, destinados ao comércio da zona ribeirinha.

A vida do rio tinha pois uma grande importância para as populações que em grande parte dele dependiam e as lendas e narrativas a que dava origem eram muitas.

Era ainda o tempo, das gentes de poucas letras ou nenhuma que, pela transmissão oral, contando e recontando à lareira nas longas noites de inverno, estabeleciam a memória dos tempos idos.

E, enquanto os dedos se afadigavam nas rotineiras tarefas de fiar a lã ou de com ela confeccionar as grossas meias e camisolas destinadas aos barqueiros, lá vinha o pedido de mais uma história, geralmente contada pela pessoa mais idosa do grupo.

E foi assim que, ouvida pela minhas bisavó e contada à minha avó e depois por esta de novo aos filhos o pela minha mãe a mim o aos meus irmãos que, esta história de bruxas, objecto desta crónica o ainda a outras de fadas e lobisomens chegaram ao meu conhecimento, povoando de imagens fantásticas os sonhos da minha infância.

Era no tempo em que ainda havia bruxas e que, aqui em Penacova, segundo reza a tradição, era coisa que não faltava. Não era bruxa quem queria e os membros eleitos auferiam direitos sociais importantes:  cair em desgraça, relativamente à bruxa, era mal que ninguém queria já que, dum simples mau olhado ou de  mistela preparada com os mais estranhos ingredientes, com rezas e defumadoiros à mistura, grandes desgraças poderiam advir.

O Reconquinho, curva do rio bem conhecida de todos os que aqui vivem ou vêm passar as férias de verão, era pelos vistos, um dos locais habitualmente frequentados por essas «mulheres de virtude» como também eram designadas. Um pouco mais adiante ainda hoje existe uma velha casa, ponto de referência obrigatória e mencionada como a “casa da bruxa».

Os barqueiros, pelo que se infere da lenda, também ali faziam local de amarração e pernoita e assim, numa noite de lua cheia, uma das barcas foi desamarrada com todas as cautelas e com artes de bruxedo, transportada até à Índia distante, onde as bruxas nessa noite tinham encontro marcado.

A bordo da nave, e ignorado, ia o barqueiro que nessa noite ali dormia num dos arrumos da proa e que, só  muito longe e já no mar alto, deu pela insólita viagem em que também era participante.

Cheio de medo, como é de calcular, para ali se deixou ficar encolhido, assistindo multo admirado a tudo o que se passou e que viria a contar no outro dia de manha quando as bruxas, com as mesmas cautelas da noite anterior deixaram a barca amarrada no Reconquinho.

O difícil foi fazer-se acreditar pois, coisa assim nunca se vira. Mas, para comprovar o que afirmava, lá estava, na sua barca um bonito ramo florido que, às escondidas,  apanhara , na praia onde as bruxas tinham feito os seus bailados e que, tão bonito e tão diferente, nunca fora visto nestas terras.

0 nome das bruxas, esse nunca o mencionou pois, ao que consta  foi ameaçado de morte. Mas, à boca fechada, passaram a ser apontadas certas mulheres que, pela forma isolada como viviam e sobretudo pelo fogo do seu olhar, bem podiam ser algumas dessas tais, das que por artes de magia eram capazes  de numa barca serrana  fazer, numa só noite, uma viagem de ida e volta à Índia.

E ainda outras coisas mais em que, só o pensar nelas, até nos causam arrepios.

É que, como o outro, «eu cá não acredito em bruxas, mas que existem, lá isso é verdade!...

Martins  da Costa

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