17 maio, 2020

Um caso do séc. XIX que agitou a região: homicídio na Ponte da Mucela


“Foi achada morta com três facadas na barriga e peito uma mulher, cujo nome e morada se desconhecem”. Pelo estado adiantado de decomposição, foi logo ali, na Ribeira Pequena, sepultada depois de “encomendada” pelo cura José da Cunha.

Este intrigante caso, ocorrido em 1838, gerou, naturalmente, grande perplexidade nas povoações vizinhas,  na Cortiça e em Paradela, mas foi na memória das gentes da Ponte da Mucela que ele perdurou durante mais tempo.

É que, no Verão de 1837, chegaram àquela localidade, ponto de passagem de quem fazia a “estrada da Beira”, num certo dia, já no final da tarde, dois homens ainda novos, acompanhados de uma rapariga, “carregada de oiro”, ao pescoço e nas orelhas. Cansados da viagem, comeram e beberam numa tasca ali existente. E no meio da conversa terão mesmo, para quem quis ouvir, contado de onde vinham e para onde se dirigiam.

Junto à noite, prosseguiram viagem. Mas...aquela mulher, que parecia ser solteira, tão nova e adornada daquela maneira, a acompanhar aqueles dois marmanjos… Não, qualquer coisa ali escapava às pessoas que estavam na altura na taberna. E, claro, alguém mais bisbilhoteiro, não deixou de os seguir, sorrateiramente, depois de retomarem a estrada. Conclusão: os viajantes fizeram o caminho normal pela antiga estrada, na direcção de Mucelão. E o caso ficou por ali.

Chegou o Inverno e, em princípios de Janeiro, eis senão quando um grupo de caçadores se depararam, no Vale da Ribeira Pequena, com aquele macabro achado. Instalou-se a polvorosa naquelas terras e quando a taberneira da Ponte da Mucela e outras pessoas foram ver o cadáver, fácil foi concluir-se que se trataria da infeliz rapariga que, juntamente com os dois homens, comera e bebera naquele dia de Verão.
A história espalhou-se e foi perdurando no tempo. Não raro acontecia os viandantes, ao pararem para beber um copo, comentarem: “Com que então, foi aqui que apareceu uma mulher morta?...” .

Com o tempo tudo acabou por se saber, apesar de na altura as autoridades, ao que parece, não terem investigado o que quer que fosse.
Soube-se que, precisamente em 1837, tinham chegado  à Bobadela dois irmãos vindos do Alentejo, estranhamente com dinheiro suficiente para  comprar propriedades na terra.  Estranho!  Naquele tempo as notícias já circulavam, mais devagar, é certo, mas espalhavam-se rapidamente. E tudo se soube na Ponte da Mucela e redondezas. Foi fácil juntar as peças e concluir: os assassinos só podiam ter sido os tais dois homens. 
E não querem saber que um dos irmãos, muitos anos mais tarde, terá vindo viver para Paradela de Cortiça, onde até lhe chamavam o Bonadela?  Muitas vezes lhe foi atirada à cara a suspeição do assassínio, mas o homem acabou por morrer, velho e cego, em completa decadência.

Como tive conhecimento desta história? - perguntarão os leitores. Recentemente, foi publicado em Coimbra um livro que compila artigos publicados na imprensa regional pelo Padre Doutor Nogueira Gonçalves.
E foi então, ao consultá-lo, que a páginas tantas, me deparei com o título “Um Velho Crime”, crónica de 1932 publicada no "Correio de Coimbra".

Acrescenta Nogueira Gonçalves que por detrás da tese do roubo do ouro, mais óbvia aos olhos do povo, será plausível acrescentar também um mobile de feição amorosa. Segundo se pensou, a malograda rapariga ter-se-á apaixonado por um deles e terá feito questão de o acompanhar. Mas tal sentimento não seria recíproco. Carregar com aquele “fardo”, com aquele empecilho, até à Bobadela para ser causa de possíveis desavenças familiares, enfim, e sabe-se lá que mais, porque não desfazerem-se dela, logo ali?  Ao que se juntava, claro,  o aliciante de ficarem ricos com tanto ouro que a infeliz ostentava.

“A mania de folhear velhos papéis, obriga-nos a ler dezenas de documentos inúteis, sem interesse para os nossos estudos, mas traz-nos porém grandes emoções e,  algumas vezes , sentimos naquela descolorida letra o palpitar de corações antigos e parece até que as lágrimas derramadas há muito ainda escorrem do papel e nos molham as mãos” – escreve N. Gonçalves a iniciar a crónica em questão.Foi nessas pesquisas que terá encontrado um registo de óbito que lhe suscitou curiosidade.

Apesar de não duvidar, fui pesquisar e lá encontrei, de facto, o assento lavrado pelo Padre J. Cunha:


17 de Maio de 2020. David Gonçalves de Almeida

03 maio, 2020

Deixa, deixa, oh barqueiro, ir o barco lentamente...


Escreveu Carolina Michaelis (1902), in “A Arte e a Natureza em Portugal”, a respeito da vida amorosa dos barqueiros: “Uma curva lancha vae rio abaixo, tão devagar como se o homem que a move à vara, obedecesse às raparigas que o provocam, cantando estâncias quinhentistas: ir-me quero, madre, com o marinheiro…” ou “Deixa, deixa, oh barqueiro / ir o barco lentamente!/ Deixa, deixa! que a saudade/ ir mais longe não consente.”

Sobre esta importante profissão de outros tempos, transcrevemos o que o Grupo “Barqueiros do Mondego” de Miro, pela mão de Manuel Nogueira, publicou em 2004. O texto é acompanhado da foto que agora publicamos:

O rio Mondego era preferencialmente usado, dando emprego a muita gente das suas proximidades, sendo uma grande percentagem da população de Penacova. O Mondego foi a única via de comunicação importante que a região teve até princípios do século XX, dedicando-se sempre à barcagem e actividades ligadas ao rio: Barqueiros, Calafetes, Carreiros, Estanqueiros, etc.


O Barqueiro do Mondego, tinha como função conduzir a Barca serrana, no transporte de lenha, carqueja e carvão para Coimbra ou Figueira da Foz. No sentido inverso, era possível receber mercadorias por mar e embarca-las rio acima: além de peixe (seco ou salgado), sal, louça de Coimbra, vinho, etc.

Paralelamente com o transporte de mercadorias, também transportavam lentes e estudantes da Universidade de Coimbra, que iam passar férias às suas terras.

O Barqueiro do Mondego, provocava a deslocação da Barca serrana, com ajuda de remos, da vela, da corrente do rio e por vezes das varas ( quando havia menos água), espetando-as no fundo do rio e andando pelo bordo, apoiando a vara contra o lado do peito, virados para a ré. Tinham que colocar um pano grosso, para protegerem o peito, mas mesmo assim fazia "mossa".
O traje do Barqueiro do Mondego era composto por ceroulas até aos joelhos, uma camisola de lã, um colete, um garroço para o frio e os pés descalços ou com alpercatas de pano.

Para dormir, as barcas serranas, ou barcos, possuíam na proa ou na ré, umas cavidades "leito", onde os barqueiros dormiam, sendo o colchão de esteiras de palha, colocados por cima do estrado, e tendo como cobertores, a vela ou sacos, e dormiam com os pés para o bico.

Muitos eram os portos importantes ao longo do Rio Mondego, para carregarem e descarregarem mercadoria. Dos quais destacamos o Porto da Raiva, como sendo o mais importante, e considerado um dos maiores do país, até meados do séc. XIX. Porto este que diz a tradição se situava na Foz do Rio Alva.

Aqui chegados, as mercadorias eram descarregadas, e depositadas em locais apropriados, e depois eram levadas em carros de bois, pelos  "carreiros", e distribuídas pelos concelhos de Penacova, Arganil, Tábua, Mortágua e Oliveira do Hospital.

Nos portos de Coimbra, os barqueiros quando procediam ao carregamento ou descarregamento das barcas, tinham de calçar as alpercatas de pano porque se fossem apanhados descalços pelos guarda rios, eram multados. Se porventura andassem com um pé calçado e outro descalço, pagavam metade da multa!

09 abril, 2020

Semana Santa, 1955


Tinha chegado uma das semanas de maior azáfama do ano e Felismina andava atarefada com as limpezas da sua casa. Os quartos já estavam limpos, só faltava a cozinha e a sala…  Claro que a sala tinha de ser a última divisão a ficar a brilhar, pois era o local da casa onde Jesus seria recebido. Seria ali que, no Domingo de Páscoa, se juntava toda a família e amigos para beijar a Cruz. Contudo, não era só Felismina que labutava dentro da sua casa… Toda a aldeia andava em preparação para o tão aguardado dia. No entanto, havia sempre tempo para, nas pausas das limpezas, as vizinhas se juntarem na rua e trocar dois dedos de conversa.
- Ó Felismina, qual é a toalha que vais pôr na tua mesa este ano? Foi a da tua fogaça?
- É essa mesmo... É a que tem o bordado e rendas mais lindos, porque fi-la há menos tempo que as outras. – responde Felismina toda orgulhosa. – Também vou pôr nas janelas aquelas cortinas de rendinha branca, que te mostrei no rio a semana passada, quando fomos lá lavar a roupa. Vai ficar tudo a condizer…

Se esta era a semana das limpezas, a anterior (chamada semana dos ramos) tinha sido dedicada para ir ao rio lavar… Já dizia o ditado “Na semana dos ramos, lava os teus panos. Porque na maior, ou fará chuva, ou fará sol”. E convinha ter a roupa lavada e enxuta para nada ficar por fazer até ao Domingo de Páscoa. Era também no domingo dessa semana (dia esse designado por Domingo de Ramos), que as gentes das aldeias se juntavam na Igreja da Freguesia, para assistir à missa e benzer os seus ramos (feitos de louro, oliveira e alecrim). Nesse dia, ao almoço, comia-se a tradicional sopa de grão de bico com carne do palaio, chouriça e presunto… Verduras?! Nem falar nisso… Não se podia comer. Também dizia o ditado que “Quem come verdura no Domingo de Ramos, como moscas todo o ano”… E mais valia prevenir, que nestas coisas nunca se sabe…
- Olha, eu na quarta-feira tenho de ir à horta, buscar couves para os animais. Eu na quinta-feira não ponho lá os pés, não… - continuou a vizinha. – Sabes bem o que diziam os antigos: que Jesus se ia esconder no horto na quinta-feira, antes de ser preso. Olha que tu não te esqueças de lá não ir também.
- Pois, tens razão. E, nem na quinta-feira de tarde e nem na sexta-feira até ao meio dia, não se faz nada. Só as coisas mais necessárias… Porque sabes que esta semana é a maior, tem nove dias, como se costuma dizer. – tagarelava Felismina, ainda na rua, com a sua vizinha.
- E ouve lá, ó Felismina, tu já tens as abróteas e o feno, para pôr à porta?
- As abróteas já tenho, já. Mas o feno só costumo ir buscar no sábado de manhã.
Antigamente, as ruas das aldeias eram todas cobertas de mato, para as pessoas calcarem, quando por lá passavam. Esse mato seria, pois, para fazer o estrume que servia de fertilizante para as terras. No Domingo de Páscoa, de manhã, era tradição cobrir-se todo esse mato com abróteas e feno, sendo que cada pessoa cobria junto à sua porta. Além desta tradição, muitas outras existiam no período entre o Carnaval e a Páscoa, por exemplo, todas as sextas-feiras se fazia jejum de carne e, nesse período, não havia bailes, nem músicas. A Quaresma era, portanto, um momento de tristeza e de respeito.
- Eu no sábado de manhã vou cozer os meus folares. – continuava a vizinha, dando seguimento à conversa. – Vê se não te esqueces de ir à capela às 10h da manhã, para cantar Aleluia a Jesus ressuscitado. – disse, relembrando uma outra tradição, pois existia a crença de que Jesus teria ressuscitado no sábado às 10h da manhã. E era também por isso que se tocavam os sinos e se lançavam foguetes.
Passado o Sábado de Aleluia, chegava o tão aguardando dia: o Domingo de Páscoa. O mais festivo do ano. As mesas das salas eram decoradas com as tais toalhas branquinhas, cheias de rendas e bordados… Além disso, sob as mesas, era colocado um pires com uma laranja e, no cimo desta, espetava-se o dinheiro que era dado como “folar” ao Senhor Padre, que o recolhia na Visita Pascal. Ao almoço, comia-se um belo arroz de cabidela, feito com um galo, ou galinha, criado durante o ano especialmente para tal. No final da refeição, vestiam-se os melhores fatos e juntava-se toda a aldeia na capela, para novamente cantar Aleluia, iniciando a Visita Pascal. Depois, lá seguiam de casa em casa para beijar a Cruz, bebendo também as suas pingas e comendo uma fatia de pão doce, e os afilhados entusiasmados lá iam a casa das madrinhas e padrinhos para buscar o seu folar (um pão com dois ovos).
E era assim que terminava essa época tão festiva, com a aldeia toda em união!...

Mariana Assunção