17 julho, 2021

A actualidade de António José de Almeida em dia de Feriado Municipal


"Pelas nove horas da noite" do dia 17 de Julho de 1866 nascia em Vale da Vinha aquele que viria a ser uma das figuras mais importantes da cena política portuguesa da primeira metade do século XX. O Município de Penacova elegeu-o como figura primeira do concelho, adoptando como dia de Feriado Municipal precisamente a data do seu nascimento. Praticamente silenciado, em Penacova e no País, durante o período do Estado Novo, é de novo enaltecido com a alvorada do 25 de Abril de 1974. Foi assim que em 5 de Outubro daquele ano foi alvo de uma significativa homenagem na sede do concelho.

Na altura, o jornal Notícias de Penacova noticiou a cerimónia e publicou uma crónica de Urbano Duarte, padre, professor e jornalista, salientando a actualidade deste penacovense ilustre e dos valores que defendeu. Por se tratar de um texto um pouco diferente daqueles que habitualmente são citados, consideramos que se justifica a sua transcrição integral:

ANTÓNIO JOSÉ DE ALMEIDA SOB SILÊNCIO DE CEMITÉRIO


«Penacova sentiu-se agora com força bastante para celebrar o seu filho mais ilustre António José de Almeida.

Do seu nascimento em vale da Vinha, já lá vai o centenário e sobre a morte (1929) já pesam quatro décadas… Como se ele fosse um vulgar qualquer, metido sem voz nos poucos palmos da campa!

Se, neste cinco de Outubro, o povo de Penacova glorificar o seu nome galhardamente, a peito cheio, é porque algum feitiço terrificante e silenciador, de verdade acabou.

E em que consistia o maldito feitiço?

No facto de ele ter sido a voz mais belamente profética e romântica que trouxe ao País a República.

Infelizmente, por ignorância, por instalação e subserviência, durante excessivas dezenas de anos, deixaram-se crescer sucessivas gerações, adestradas em descrer e malsinar o ideal republicano que andou a luzir em todo o ser de António José de Almeida. Como se o ideal republicano de então consubstanciasse as desgraças da Pátria e da alma cristã do povo.

Os republicanos, ainda até há pouco tempo, passavam por gente suspeita, sem merecer confiança ao estado e a alguns católicos, porque sonhavam com a mudança do regime político totalitário, porque se arvoravam em defensores da liberdade de pensamento e de religião, porque defendiam a separação entre a Igreja e o Estado, porque exigiam maior justiça social. Aspirações estas que nenhum cristão devia deixar que lhe amortecessem no espírito já que são maravilhosa semente evangélica. E aí estão os documentos do último Concílio a colocar estas verdades como fundamentais ao cristianismo.

Bem sei que todas as lutas, mesmo as de maior pureza, trazem consigo o risco de algumas feridas. Não admira, por isso, que no meio da refrega política travada nos primeiros anos que precederam ou seguiram a instauração do regime republicano, se tenham aberto por algumas imprudências de parte a parte, chagas dolorosas, que o bom senso evitaria.

Mas até neste aspecto, António José de Almeida soube estar atento não só à alma popular como aos ditames do próprio coração: dos três partidos republicanos o seu era o mais moderado!

Que Penacova festeje então o maior dos seus filhos; a suavidade da terra  ficou-lhe no temperamento e no verbo arrebatado.

Político, médico, fundador de jornais, a sua obra continua viva e irreversível. Desde estudante a Presidente da República, foi homem de ideal, capaz de discordar, de atacar, de sofrer processos e prisões, sempre por um Portugal diferente e digno. Sem perder contacto com a aldeia e os vizinhos dedicou-se ao futuro de todos os nascidos na Pátria que estremecia. Com tal doação que morreu pobre!

Após tantos anos, António José de Almeida talvez pareça a alguns como ultrapassado: hoje há menos reptos líricos e outras palavras a traduzir novos ideais. O que, porém, não está ultrapassada é a sua estrutural e sinceríssima aspiração por um novo mundo onde reine a liberdade e a igualdade. O que não está ultrapassado é o exemplo  de ser um político que nunca pôs de lado o coração."

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Urbano Duarte, “António José de Almeida sob silêncio de cemitério”, artigo  publicado no Notícias de Penacova de 5 de Outubro de 1974.

Urbano Duarte, padre, professor e jornalista (1917-1980) Urbano Duarte foi uma das figuras mais marcantes de Coimbra na segunda metade do século XX.

 

 

 


30 junho, 2021

Locuções populares (IX): Coisas do Arco da Velha


Como sabemos, a expressão tem o significado de coisas inacreditáveis, absurdas, espantosas, inverosímeis, prodigiosas. 

No imaginário popular, e na linguagem coloquial, o arco-íris era designado por arco-da-velha. Só a população mais culta dizia arco-íris. 

O arco-íris (ou arco-da-velha) sempre esteve associado a fenómenos atmosféricos por vezes inusitados e, por associação, a acontecimentos extraordinários. Assim, é bem possível que esta associação se fosse progressivamente expandindo, acabando por se associar a ocorrências inacreditáveis. 

Porém, a expressão só terá começado a ser utilizada a partir do século XIX.

A designação de arco-da-velha está relacionada com o texto do Livro do Génesis: o "Arco" da "Velha Aliança" (Antigo Testamento). 

E disse Deus: Este é o sinal da aliança que ponho entre mim e vós, e entre toda a alma vivente, que está convosco, por gerações eternas .O meu arco tenho posto nas nuvens; este será por sinal da aliança entre mim e a terra. E acontecerá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, aparecerá o arco nas nuvens.

Então me lembrarei da minha aliança, que está entre mim e vós, e entre toda a alma vivente de toda a carne; e as águas não se tornarão mais em dilúvio para destruir toda a carne .E estará o arco nas nuvens, e eu o verei, para me lembrar da aliança eterna entre Deus e toda a alma vivente de toda a carne, que está sobre a terra. (Genesis 9:12-16)

Fonte: Repositório do conhecimento Inútil

 

25 maio, 2021

Invasões Francesas no concelho de Penacova: o outro lado da História


A exaltação da vitória anglo-lusa na Batalha do Buçaco não pode, no nosso entender, atirar para o esquecimento os horrores sofridos pelo povo anónimo das povoações do nosso concelho em 1810 e 1811. Povo alheio aos interesses militares e políticos, povo que foi, pura e simplesmente, vítima de assassinatos, violações, atrocidades, roubos… e viu destruídas  pelo furor das chamas muitas das suas casas, muitas das suas aldeias até.

Só no concelho de Penacova (território actual) foram cerca de 60 pessoas assassinadas, entre elas uma criança, e perto de 80 casas incendiadas, não contando com a destruição total de 6 aldeias e das “casas principais”, não contabilizadas, de Oliveira do Cunhedo. Atingidas pelo fogo posto também 2 igrejas, 1 capela e 1 residência paroquial.

Os relatos[1] que cada paróquia - dos então arciprestados de Sinde, Arganil e Mortágua - fez no rescaldo da incursão dos franceses, principalmente no primeiro trimestre de 1911, dão-nos uma ténue imagem do que realmente aconteceu.

A freguesia mais atingida em termos de vítimas pessoais foi sem dúvida Farinha Podre: assassinados 16 homens e 9 mulheres. O mapa elaborado pelo pároco regista mesmo os locais e por vezes os nomes. Na Sede da freguesia pereceram 3 homens e 3 mulheres, em Hombres 5 homens e 3 mulheres, em Laborins 2 homens, no Carvalhal, na Cruz do Soito e no Silveirinho 1 homem em cada uma das terras. Calcula-se que muitas outras pessoas terão acabado por morrer na sequência dos maus tratos sofridos. Também a destruição de 30 casas incendiadas nos dão uma ideia da violência e do terror espalhado na actual freguesia de S. Pedro de Alva.

Na freguesia de S. Paio de Farinha Podre assassinaram 1 criança, contabilizando-se no total 3 indivíduos do sexo masculino  e três do sexo feminino. Além de 8 casas incendiadas também a Igreja sofreu igual ofensa. Nesta, roubaram imagens e objectos de culto.

Todo o concelho sofreu de um modo ou de outro. Apenas a freguesia de Sazes terá tido a sorte de passar à margem destas desgraças. Refere o relato do arcipreste que “nesta freguesia não entraram franceses alguns.”

A freguesia de Carvalho foi outra das que sofreram duros revezes. Não tanto em mortes mas sim em destruição. Morreu 1 indivíduo do sexo masculino e é  importante recordar que as aldeias de Seixo, Soalhal, Pendurada, Lourinhal e Cerquedo foram totalmente incendiadas. Quanto a roubos o relatório traduz a situação em poucas palavras dizendo que “tudo se foi”.

Por falar em aldeias incendiadas passemos à freguesia de Penacova. A aldeia do Felgar foi também completamente destruído pelo fogo. Foi esta zona da freguesia (Felgar, Travasso, Sanguinho, Ferradosa, Hospital, Balteiro e Ribas) a mais atingida pelos invasores, registando-se “pesados roubos” de gado, porcos, fruta e alfaias religiosas. Das capelas do Travasso e da Riba de Cima levaram o cálice e “todos os ornamentos”. No que toca a mortes há a referência a 5 homens e 3 mulheres.

Passando a Lorvão, há o registo do assassinato de 4 homens e a ocorrência de inúmeros “roubos sacrílegos”. Nas capelas do Roxo e do Caneiro foram roubados cálices, patenas, paramentos e óleos.

Figueira de Lorvão “foi menos atacada”… No entanto, mataram António Francisco e F. Henriques dos Santos e ainda Ana Marques, de 45 anos, moradora em Alagoa.

Em Paradela assassinaram Manuel Carvalinho e Isabel Henriques, ambos na casa dos 80 anos. Na Sobreira foi um homem de 40 anos: António Silveira e ainda uma mulher de 50 anos, viúva, Isabel Lemos. As violações foram outro dos dramas vividos, quer nesta freguesia, quer em todas as zonas atingidas. Nesta freguesia queimaram a residência paroquial “com tudo o que tinha dentro” e 16 casas tiveram igual destino. Roubaram “todo o grão, vinho e azeite”, hortas e gado. Destruíram  searas e vinhas. Na Igreja “escavacaram” o trono, o altar-mor e o sacrário. Queimaram todos os livros de Assentos, Pastorais e outros documentos.

Oliveira do Cunhedo e Travanca foram “visitadas” pelos  franceses em Setembro de 1810, nas vésperas da batalha do Buçaco, e em Março de 1811 quando retiravam pela margem esquerda do Mondego.

Em Oliveira assassinaram 3 homens e 1 mulher e incendiaram as “casas principais” da localidade. Roubaram casas, “grãos”, gado e a Igreja.

Na freguesia vizinha de Travanca, mataram 3 homens, sendo um deles Manuel Rodrigues, sapateiro de Lagares, com mais de 80 anos. Outro foi vítima de cutiladas. Uma mulher casada foi presa, acabando os soldados de Napoleão por “a deixar”…provavelmente violada como tantas outras. Queimaram 7 das melhores casas e roubaram tudo o que apanharam na residência paroquial. Na Igreja, que foi assaltada por duas vezes, “arrancaram a pedra de Ara”, destruíram o sacrário e relíquias e até os galões dos paramentos levaram.

Em Friúmes assassinaram 6 homens e 4 mulheres. Luís António levou um tiro na cara e João Reis foi enforcado na Igreja, escapando por milagre. Incendiadas 15 casas, queimada a Igreja e a capela do Espírito Santo em Vale do Tronco (que acabou por ser demolida). Roubaram 600 cabeças de gado, 800 alqueires de milho, 10 pipas de vinho e 60 alqueires de azeite.

Milhares de páginas se escreveram nestes 200 anos passados sobre a chamada Guerra Peninsular. E quem se lembra das “vítimas mais humildes e ignoradas”, das “populações civis espoliadas, cruelmente martirizadas e assassinadas”? – perguntamos também, subscrevendo  as palavras de Maria Antónia Lopes, da Faculdade de Letras e Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra.



[1] Relatórios elaborados pelos párocos e arciprestes da diocese de Coimbra, dando conta dos “Estragos, incêndios e mortes causados pelo exército na invasão de 1810-1811”.