02 outubro, 2016

Sazes: no 118º ano de existência, Irmandade do S.S. e N.S. do Rosário afirma vitalidade



O Bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, esteve hoje em Sazes. Inaugurou as obras de restauro e ampliação da Casa Paroquial, culminando assim, dum modo solene, o meritório trabalho do Conselho Económico da Paróquia, reconhecido que é também o empenhamento de toda a freguesia.
A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Rosário esteve igualmente em destaque, dado que foi benzido o novo estandarte desta secular instituição que tem como membros da Mesa, Horácio Neves (Juíz), Sílvio Costa (Tesoureiro) e Inácio Ferreira (Escrivão).

Alvará de 1898, publicado no caderno
 que em 1907 divulgou
 o Compromisso da Irmandade
Recordemos um pouco do percurso desta Irmandade:
Até 1898 existiam em Sazes duas Irmandades: a do Santíssimo Sacramento e a de Nossa Senhora do Rosário. Nesse ano, fundiram-se e o respectivo Compromisso (Estatutos) foi aprovado pelo Governo Civil de Coimbra em 13 de Julho daquele ano.
Existem referências (anotações constantes dos Orçamentos que se encontram no Arquivo da Universidade de Coimbra) que atestam que a Irmandade de N.S. do Rosário se regia por Estatutos aprovados pelo Ordinário (Bispo) em 1799 (provisão de 8 de Junho). Quanto à Irmandade do S.S. não dispomos dessa informação. No entanto, Vitor Simões Alves, historiador, natural de Sazes,  refere na Bibliografia de um  seu trabalho sobre esta freguesia (cuja leitura recomendamos) a existência de Estatutos da Confraria do Santíssimo com data de 1750 e também da Confraria de N. Sª do Rosário com data de 1699. Seja como for, a sua antiguidade é um facto.
Com o advento da República, esta Irmandade, erecta em 1898,  viu-se obrigada a reformular os seus estatutos. Curiosamente o alvará que aprova esse aditamento está assinado por um penacovense, na altura (1915) Governador Civil, o Juíz de Direito, Luís Duarte Sereno. Não dispomos desses estatutos, mas tudo leva a supor que vêm na sequência da Lei de Separação e das convulsões político-religiosas que se viveram em Portugal.
Vejamos um pouco da história geral das Irmandades em Portugal:
Foi no Concílio de Trento (1545-1563) que foram definidas as competências das confrarias, que entretanto se estavam a difundir pelo mundo católico. O culto eucarístico, foi então incrementado com a reforma católica deste concílio Tridentino, influenciando a expansão das




confrarias do Santíssimo Sacramento.O modelo, aprovado pelo Papa Paulo III em 1537, promovia o culto eucarístico, zelo pelos sacrários, visita aos enfermos, acompanhamento do sagrado Viático, realização da festa em honra do Santíssimo, celebração de missas por intenção dos irmãos, fomento da oração diária. Entretanto existiam já outras Irmandades: das Almas, de Nossa Senhora do Rosário…
Com o advento da Época Moderna, o poder real começou  a exercer um maior controlo sobre as irmandades: aprovando os seus estatutos e fiscalizando as suas contas; estas instituições dependiam ainda de autorização superior para o pedido de empréstimos ou aceitação de legados pios.
 Após a mudança política em Portugal operada com a revolução liberal, a autoridade da coroa sobre as irmandades continuou a ser exercida praticamente nos mesmos termos.
Com a implantação da República, as irmandades sentiram dificuldades em assegurar o seu dinamismo e a situação política vivida, condicionou fortemente a ação pastoral do clero e dos fiéis. O novo regime avançou com o plano de substituir as Irmandades por associações cultuais, cujos preceitos organizativos eram impostos pelo poder político. No mínimo, a esses novos poderes ficaram, diríamos, completamente submetidas.
Algumas harmonizaram os estatutos, ao abrigo do artigo 17º da Lei da Separação, transformando-se em associações cultuais. Outras reformaram os seus compromissos ao abrigo do artigo 38º da mesma lei.  Entretanto, com o esbater dos anos e com as alterações políticas, ainda ao longo da I República, a situação tendeu a normalizar-se.
Oportunamente voltaremos ao assunto para desenvolver mais alguns pontos do historial e da orgânica desta Irmandade do Santíssimo e Nossa Senhora do Rosário de Sazes: pessoas, orçamentos da segunda metade do século XIX, normas do Compromisso, e outros pormenores.

Estatutos de 1898, impressos
 num pequeno livro com data de 1907

Diploma em formato A3 

27 setembro, 2016

AINDA A 3ª INVASÃO FRANCESA: o sofrimento das populações nas proximidades de Arganil

Em complemento dos textos que publicámos recentemente sobre algumas das repercussões da 3ª invasão francesa no concelho de Penacova, apresentamos hoje o relato de um padre de Arganil que nos dá uma imagem do terror que se viveu na Beira Serra. Arganil, Poiares, Góis, Lousã foram concelhos muito martirizados. Entre nós, e como já vimos, foram também as freguesias do Alto Concelho, mais próximas daquelas zonas, que mais sofreram, bem como as aldeias da freguesia de Penacova vizinhas de Poiares. 
Que seja do nosso conhecimento ainda não existe nenhum estudo sobre o concelho de Penacova. Os nossos apontamentos resultaram da consulta dos relatos feitos pela mão dos  párocos e/ou arciprestes, em 1811, e  que se encontram disponíveis no Arquivo da Universidade. Sobre a região que vai de Pombal até Gouveia, já se debruçou a historiadora da Universidade de Coimbra, Maria Antónia Lopes.  É desta investigadora o texto que passamos a transcrever:
Mapa publicado no estudo citado de Maria Antónia Lopes

“Em Março de 1811 os Franceses iniciaram a retirada. Desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, levaram as atrocidades ao último grau, apanhando as populações em fuga, a quem torturavam e matavam para lhes extorquir víveres. Coimbra foi poupada, pois Massena não conseguiu entrar na cidade. Conduziu então os seus homens para Espanha pela margem sul do rio Mondego, onde a carnificina prosseguiu. (…) Por esta altura, a 23 de Março de 1811, o padre Manuel Gomes Nogueira, em carta ao seu irmão José Acúrsio das Neves, relata-lhe o que tinham sofrido na zona de Arganil às mãos dos invasores. A citação é longa, mas justifica-se:

Os primeiros que nos acometeram, foi em 14 de Fevereiro, aparecendo de repente em Góis uma divisão [...] e somente junto da vila se deu notícia deles, e se não fosse um homem que os viu entravam sem serem vistos.
No pequeno espaço que mediou até eles se apresentarem defronte da terra, se ajuntaram algumas espingardas que de dentro da vila fizeram fogo para além da ponte e eles se retiraram e deixaram 7 ou 8 bois que os de Góis lhes tomaram e logo puseram a salvo para a freguesia de Cadafaz. Mas os malditos se foram unir com outros que tinham ficado mais atrasados, entraram na vila e fizeram as barbaridades do costume [...].
 No dia 17 do mesmo Fevereiro estiveram também a pontos de entrar em Arganil, sem serem pressentidos, pois tendo-se retirado a 15 de Góis para Serpins, com imensos gados e roubos de Góis, Várzea [de Góis, actual Vila Nova do Ceira] e toda a Serra de Santa Quitéria, estava Arganil mais sossegada, mas no dito dia 17, que era domingo, de manhã ao sair da primeira missa, chegou a noticia de que já vinham na Ribeira da Aveia (vê agora o perigo que houve, se entravam enquanto se estava à primeira missa). Ninguém se persuadia de tal por ser voz só de um homem, mas veio segundo, que confirmou o primeiro, e então se pôs tudo em reboliço e fugida, e eles entraram de repente, como galgos atrás da gente, e imediatamente subiram ao Casal [da] Nogueira e se espalharam pelos montes, vales, pinhais, mataram 5 pessoas e feriram muitas [...].
 Estiveram neste dia em Arganil somente 2 para 3 horas; passaram a Celavisa, onde mataram e fizeram o mesmo que em Arganil [...].
No dia 12 de Março tornaram a entrar os Franceses em Arganil. No dia 14 subiram à serra no lugar da Aveleira [...] onde apanharam muitos gados, vieram sobre Adela e fizeram cerco a toda a ribeira de Celavisa, onde não ficou moita que não fosse mexida […].
Estiveram sempre passando Franceses todos os dias seguintes, ora mais ora menos, até que no dia 17 foi a maior enchente de cavalaria e infantaria, e então foi a destruição de Arganil. Mataram 10 pessoas que ainda apanharam”. [...]
“No dia 19 logo de manhã me constou aqui da chegada das nossas tropas [...]. Desci logo à vila [Arganil] e fui dos primeiros que lá entrámos depois dos Franceses. Corri as casas dos nossos amigos e as igrejas todas e causava horror ver semelhante confusão: as portas quebradas, as casas não pareciam senão uma confusão, trastes despedaçados, tudo revolto, nada em seu lugar, as lojas cavadas, quantos esconderijos se tinham feito para cada um refugiar o que podia, tudo descoberto, pelas ruas louças quebradas, animais mortos, uns inteiros, outros em pedaços, de outros só as entranhas com fétido por toda a parte.
Parti logo para o Sarzedo e por toda a estrada abaixo eram os mesmos vestígios de animais mortos” [... Em] Sarzedo fizeram muita carnagem, porque os habitantes como lá não tinham ido Franceses não se acautelaram a si nem aos seus gados; e, portanto, perderam tudo e morreu muita gente: o número não o posso ainda dizer, mas consta-me que morreram famílias inteiras”. “
... Agora o que mais deve lamentar-se é a fome, porque não só os pobres, mas também os ricos não têm coisa alguma que comam, porque por onde passou a tormenta nada absolutamente ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de hortaliças. E se alguma coisa escapou ao inimigo, o limpou a nossa tropa e assim mesmo os pobres soldados vão mortos de fome.”

FONTE: Maria Antónia Lopes, Sofrimentos das populações na terceira invasão francesa. De Gouveia a Pombal *    (Publicado como capítulo in O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III - 2010-2011), Lisboa/Parede, Exército Português/Tribuna da História, 2011, pp. 299-323). 


24 setembro, 2016

A 3ª INVASÃO NO CONCELHO DE PENACOVA (III):o sofrimento das populações massacradas, aterrorizadas e espoliadas

Temos vindo a fazer referência aos relatórios elaborados pelos párocos e arciprestes da diocese de Coimbra,[(I) e (II)] dando conta dos “Estragos, incêndios e mortes causados pelo exército na invasão de 1810- 1811”, documentos que se encontram no Arquivo da Universidade de Coimbra.
Recorde-se que, na época, as paróquias que hoje pertencem ao concelho de Penacova estavam integradas nos arciprestados de Sinde, Arganil e Mortágua. Analisámos já as freguesias de Farinha Podre, S. Paio de Farinha Podre e Travanca de Farinha Podre. Vamos agora fazer alusão às freguesias de Oliveira do Cunhedo, Paradela, Friúmes, Penacova, Lorvão, Sazes, Carvalho e Figueira de Lorvão.

Em Oliveira, o Padre Miguel Rodrigues Marques da Silva refere que a incursão dos invasores, ocorreu tal como em Travanca, por duas vezes:  em Setembro de 1810 e em Março de 1811. O relato é sucinto mas ficamos a saber que também aqui houve mortes: 3 homens e 1 mulher. “Roubaram quanto acharam” na igreja, nas capelas e nas casas da freguesia: alfaias religiosas, roupas, gado, “grãos”… As casas principais foram incendiadas. Estima-se que os prejuízos ao nível da freguesia foram de 30 000 cruzados.
Em Paradela, os estragos na igreja foram significativos. Destruíram e roubaram paramentos, “quebraram a cabeça ao Menino da N. Sª do Rosário” e “escavacaram o Trono, o Altar-Mor e o Sacrário”. A residência paroquial e anexos foram queimados “com quanto tinha dentro delas”- escreve  o Cura José Joaquim de Oliveira e Silva. Na sede da freguesia queimaram 16 casas, na Cortiça 4 e uma na Sobreira. O fogo consumiu também “oliveiras e castanheiros, pipas, dornas, balceiros, arcas, mesas, tamboretes, cadeiras e todos os mais trastes”. Queimaram ainda, todos os livros de Assentos, Pastorais e outros documentos.
Roubaram “todo o grão, vinho e azeite”, roupas e hortas. “Estragaram as vinhas e searas de trigo, centeio e cevada”. Também “levaram a maior parte dos gados, quando já iam de fugida”.
Os prejuízos foram estimados em 100 000 cruzados.
Assassinaram, em Paradela, Manuel Carvalhinho, com cerca de 80 anos, e também Isabel Henriques, com a mesma idade. Na Sobreira mataram António Silveira com 40 anos e ainda Isabel de Lemos, viúva, com 50 anos. Ainda apanharam algumas mulheres “que logo lhes escaparam “ mas presume-se que todas aquelas “que tiveram a desgraça de cair nas mãos do inimigo” tenham sido violadas.
Na freguesia vizinha de Friúmes a “Relação dos Stragos dos Inmigos” foi elaborada pelo pároco José da Silva Pereira em 24 de Julho de 1811.
Foram cerca de 15 as casas incendiadas. Segue-se a enumeração dos nomes dos proprietários. Queimadas também a Igreja e a Capela do Espírito Santo de Vale do Tronco, que acabou por ser demolida. Da Igreja roubaram paramentos e o “Cálix” da Confraria, bem como “a sua patena”.
Os “indivíduos açacinados pelo Inmigo” foram 10: 6 homens e 4 mulheres. Os nomes estão lá. Outros escaparam por pouco: Luís António levou um tiro na cara e João dos Reis “foi enforcado na Igreja, escapando milagrosamente à morte.” 
Os roubos foram inumeráveis: 600 cabeças de gado, 800 alqueires de milho, trigo, centeio e feijão. Cerca de 10 pipas de vinho e 60 alqueires de azeite.
Os elementos sobre a freguesia de Penacova constam de um o caderno que contém 19 folhas. É também neste documento, compilado na Mealhada pelo respectivo arcipreste Padre Joaquim Lebre Teixeira, que encontramos os dados relativos  às freguesias de Lorvão, Sazes, Carvalho e Figueira de Lorvão.
Nem toda a freguesia de Penacova foi atingida: Felgar, Travasso, Sanguinho, Ferradosa, Hospital, Balteiro, Riba de Baixo e Riba de Cima foram alguns dos lugares mais afectados. O Felgar terá mesmo sido completamente incendiado.
Os roubos foram pesados. Gado, porcos, fruta. Na capela do Travasso “furtaram o cálice e todos os ornamentos”, bem como na capela de Riba de Cima. Referem-se 8 mortos: cinco homens e três mulheres.
Relativamente a Lorvão o texto é curto. Fala-se em 4 homens assassinados. Os roubos não terão sido muitos e foram principalmente “roubos sacrílegos”. Refere-se o Roxo e o Caneiro onde foram roubados paramentos, cálices, patenas e óleos.
Sazes foi a única freguesia onde não se registaram ocorrências. O arcipreste de Mortágua limitou-se a escrever: “Nesta freguesia não entraram franceses alguns.”
Figueira de Lorvão também “foi menos atacada”. Apesar disso, mataram 2 homens e 1 mulher, mais precisamente, António Francisco e F. Henriques dos Santos. Ana Marques de Alagoa com 45 anos também foi assassinada.
Já em Carvalho o panorama é o oposto: “Esta freguesia foi totalmente destruída em razão do ataque do Bussaco principalmente aqueles lugares mais próximos da montanha do Bussaco em que estava acampada a ala segunda do exército continuamente batalhando.”
Refere-se a morte de um homem de 50 anos.  Recorde-se que estamos a falar da população civil, muitas vezes velha e doente,  que foi atacada fora do contexto de combate. Quanto a roubos “tudo se foi”- escreve o relator. Seixo, Soalhal, Pendurada, Lourinhal e Cerquedo foram completamente incendiados.
Almaça não pertence nem nunca pertenceu ao concelho de Penacova. No entanto, dado que foi um dos locais em que - na fase da retirada dos franceses -  se refugiram algumas populações da margem esquerda achamos pertinente frisar que o relatório final, redigido pelo Bispado de Coimbra, em Dezembro de 1811, refere isso mesmo: “ Em Almassa, onde o povo d’alli, e o das vizinhanças se acoutou, reputando-se n’hum lugar d’asylo, por muito cercado de serranias e matos e desafrontado de estradas, foi todo saqueado”. O relato do arcipreste confirma que “roubaram totalmente” esta freguesia e acrescenta que mataram 1 homem de idade de trinta anos, que roubaram a âmbula dos Santos Óleos, lançando tudo por terra e que “levaram o livro das Posturas”.
“À fome e aos assassínios, e acompanhando as vagas de desalojados e de órfãos, sucederam-se as epidemias. Regressadas a suas casas, as populações encontraram a destruição e os campos estéreis. A escassez de géneros tornou-se aflitiva e os preços dispararam. Só muito lentamente a situação se normalizou.” – escreveu Maria Antónia Lopes na obra O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III - 2010-2011).
É a mesma investigadora que acrescenta que “nunca a população civil portuguesa vivera um período tão trágico. Nunca mais, felizmente, o voltou a viver. Por isso, as invasões francesas, absolutamente traumáticas, persistem na memória popular." Em Penacova a exaltação da vitória conseguida na Batalha do Bussaco poderá ofuscar, naturalmente (?), o sofrimento das "vítimas mais humildes e ignoradas." Fica o nosso contributo para que isso não aconteça.