Publicámos há dias o excerto de uma
crónica de Alves Mendes onde este grande vulto da cultura nacional nos
falava de Penacova, da Quinta de Carrazedos e de todo o ambiente que a circunda.
O texto de hoje, mais centrado na reflexão
filosófica, confirma aquilo que dissemos na postagem anterior: a sua propensão
para o questionamento filosófico-teológico que viria a fazer dele um dos
maiores Oradores Sagrados, reconhecido pelas mais altas instâncias culturais,
literárias, políticas e sociais da segunda metade do século XIX. Um nome penacovense porventura muito mal
conhecido na sua própria pátria, termo que utilizava para se referir à sua
Penacova.
(…) Era numa dessas manhãs deestio,
quando a natureza, adornada de todos os seus esmaltes encantadores, convidou a
minha alma triste e melancólica à sua insondável contemplação.
Apenas o relógio da minha pátria
[Penacova] acabava de bater com som pousado as três da manhã, já um variado e
nobre canto do rouxinol ressoava majestosamente pela janela entreaberta do meu
quarto. Acordei a esta melodia e um invencível impulso me agitou a aplicar-lhe
mais de perto o ouvido. Oh! Misteriosa cena era a visão do firmamento! Já não
era o gorjeio do rouxinol que me prendia a atenção: cousa mais nobre e sublime
comovia o meu pensar.
Saio repentinamente e vou ver se, no
silêncio melancólico da aurora que ia despontando, encontro com que saciar um não sei quê de
prodigioso que me embriagava os seios indecifráveis da alma.
O ar estava límpido e sereno: as
estrelas raras e desmaiadas ainda esmaltavam o azul firmamento-e a lua quase a
esconder na imensa superfície do oceano acabava de lançar os seus pálidos raios
sobre as sombras da natureza. Toda enfim, toda essa fábrica grandiosa do
universo dava o meu espírito lugar para a meditação.
Deus! Grande Deus! (dizia eu a sós
comigo) concede-me que fite os olhos n’essa massa extraordinária, obra
admirável do teu poder!
Deixa-me percorrer com espanto por
todos esses mundos que giram no grande espaço! Deixa-me admirar a tua
omnipotência!...
Mas...não, não quero tanto...assaz me
contento com a terra que me sustenta! Essa só será objecto de meus pensamentos!
Terra, oh terra?! Mas que, nada fala!
Tudo é silêncio, tudo mistério!...cinco horas não tem passado depois que me
rodeavam tantos mortais, mas agora, agora nada vejo! Os vales, que me circundam
estão sepultados no sono da eternidade, e só serras e mais serras orlam com
toda a graça o oriente...
Então só eu vivo? Só eu existo?!...
Oh! sim eu! Quem sou eu! Mísero pó
animado! Ludíbrio de minhas próprias reflexões! Reflicto sobre mim e que acho?!
Acho sombras, acho sei que...Mas não, ainda outra vez, não sou eu só que povoo
o universo, não sou eu só que existo, não...não...Este silêncio acaba, esta
tranquilidade vai em pouco ter fim...os enfraquecidos membros do agrícola ainda
não estão alentados: mas que disse? Pois só o agrícola vive? Não, de certo,
não...
E o filósofo, o comerciante, e o...Ah!
a maior parte destes estão velando certamente... esta é a hora empregada pelo
sábio na meditação no seio do gabinete.... Oh! quantos, quantos estarão neste
momento decifrando problemas, aprofundando mistérios, e formulando leis capazes
de reger o mundo inteiro?! Quantos oh! Quantos se estarão entretendo à luz
moribunda do candeeiro em pensar talvez no mesmo, do que me ocupo? Quantos oh!
E quantos entregues a loucos divertimentos, a prazeres estúpidos e insípidos
estarão desprezando as graças do Eterno, ou, não direi tanto, um sono seguro e
tranquilo?!
Em fim é mundo! Tudo forma um
contraste...uns pensam, outros dormem, uns riem, outros choram, uns mendigam
outros enriquecem, uns se pervertem, outros louvam o criador...!
Então, uma vez só, para que vive o
homem? Para que vivo eu? Para que existe o universo?...
Ah! Meditação, meditação, e nunca acaba
a meditação...Existe o homem, existe o universo! Existe quem medite, existe em
que meditar... (…)
António Alves Mendes, 1857