13 setembro, 2024

Invasões Francesas: para lá do "espectáculo da batalha", o horrível sofrimento do povo anónimo das nossas terras

Na diocese de Coimbra, em 290 paróquias, apenas em 26 delas não terão entrado os franceses, principalmente aquando da retirada em Março de 1811. Os cálculos das mortes estão subestimados, mas, no mínimo, três mil pessoas foram assassinadas e em consequência da epidemia que se seguiu teriam morrido também 35 mil habitantes da nossa diocese. 

Veja-se com atenção o quadro que elaborámos, demonstrativo das mortes, pilhagens e destruição no concelho de Penacova com base nos relatórios paroquiais que consultámos no Arquivo da Universidade de Coimbra: 

Afirma a historiadora Maria Antónia Lopes, historiadora e professora na Universidade de Coimbra, que “nunca mais a população portuguesa voltou a sofrer tanto como na terceira invasão francesa” – 

Em Maio de 2021 esta investigadora concedeu ao Diário de Notícias uma entrevista que sintetiza esta tragédia da nossa história. Passaremos a transcrevê-la:


 Nunca mais a população portuguesa voltou a sofrer tanto como na terceira invasão francesa” – afirma a historiadora Maria Antónia Lopes

ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Diário de Notícias Terça-feira 4/5/2021 15

Das três invasões ordenadas por Napoleão a Portugal, a terceira, em 1810-1811, comandada pelo marechal Massena, é tida como a mais terrível para os portugueses. O que a distingue das anteriores?

Foi, sem dúvida, a mais terrível pelo número de assassínios, violações e maus-tratos infligidos à população civil, destruição de campos agrícolas e aldeias, pilhagem sistemática das cidades e vilas, fugas em pânico de multidões.

O que a distingue? A política de terra queimada ordenada pelos ingleses: evacuação total das povoações com destruição de searas, moinhos e tudo o que não pudesse ser transportado, para vencer os invasores pela fome. Agora imagine-se a violência de um exército esfomeado, a deitar mão a tudo o que pode e a perseguir os/as camponeses/as que encontra para que revelem onde esconderam os víveres. Um médico de Leiria refere-se ao “horroroso quadro, quando voltei para este desgraçado território: aldeias desertas, todo o território inculto, uma solidão espantosa, não aparecendo nem quadrúpedes nem voláteis, casas incendiadas ou derrotadas, imundícies amontoadas, vivos agonizantes, esqueletos ambulantes formavam então um espetáculo estranho, pavoroso e mortificante”. Seguiu-se a epidemia e os preços dos géneros dispararam. Só muito lentamente a situação se normalizou. Nunca mais a população civil portuguesa voltou a sofrer assim. Por isso as invasões persistem na memória popular. Cresci [no norte da Beira Alta] a ouvir contar histórias “dos franceses”. A dimensão da tragédia que se viveu em toda a região centro não tem sido devidamente realçada pela historiografia.

A região de Coimbra, e o centro do país em geral, foi a mais afetada pela guerra, mas não a cidade, certo?

Em 1 de outubro de 1810, quando os franceses entraram em Coimbra depois da batalha do Buçaco, encontraram a cidade deserta, evacuada por ordem de Wellesley. Foi saqueada pelas tropas invasoras durante três dias, até ser reconquistada pelas milícias comandadas pelo coronel Trant. Só a universidade escapou parcialmente, protegida pelos cuidados dos oficiais portugueses que integravam o exército napoleónico. Nem as residências mais humildes foram poupadas. Às pilhagens dos franceses seguiram-se as do povo que voltara e as dos refugiados. Em inícios de 1811 viveu-se na cidade um cenário dantesco. Os habitantes de Miranda do Corvo, Lousã e vizinhanças até ao rio Alva haviam sido obrigados a retirar para norte do Mondego e acorreram a Coimbra. Os dirigentes da Misericórdia registam em ata tratar-se de “uma calamidade incomparável, de que não há memória nos séculos passados”. Em dezembro de 1811, o provisor da diocese de Coimbra afirma que a miséria é geral pois em “290 paróquias, apenas contará 26 delas onde não entrasse o inimigo”. Segundo os seus cálculos, morreram às mãos dos soldados 3 mil pessoas e em consequência da epidemia que se seguiu teriam falecido, no mínimo, 35 mil habitantes da diocese. Os cálculos das mortes estão subestimados. Já contabilizei 3305 civis assassinados, representando as mulheres quase 30%, e as fontes estão incompletas. Também não estará muito empolado o número de mortos por doença. Na Figueira da Foz, onde não houve assassínios porque os invasores não passaram por aí, terão sucumbido na epidemia umas 4 mil pessoas, entre naturais e refugiadas. Contudo, a julgar pela distribuição dos auxílios em 1811, a devastação foi muito maior nos atuais distritos de Guarda, Leiria, Santarém e Cas-telo Branco. O assunto carece de investigação.

A violência pior contra civis aconteceu durante a invasão ou já aquando da retirada, quando as forças luso-britânicas do general Wellesley, futuro duque de Wellington, se mostraram superiores às francesas?

A violência contra os civis aconteceu desde o início, agudizou-se quando os franceses estiveram imobilizados nas linhas de Torres Vedras e ainda mais na retirada, a partir de março de 1811. Durante a permanência nas Linhas de Torres, a pilhagem foi organizada pelas chefias em larga escala e em zonas distantes. Quando retiraram, desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, os soldados intensificaram as atrocidades. A 19 e 20 de março, sem encontrarem nada para comer, espalhavam-se por Pinhanços, Sandomil, Penalva do Castelo, Celorico da Beira, Vila Cortês, Vinhó, Gouveia, Moimenta da Serra, etc.

Os chefes militares franceses mostraram-se incapazes de controlar assassínios, violações e pilhagens pelos soldados? Tentaram, pelo menos?

Nas memórias que conheço de antigos oficiais franceses não encontro essa preocupação. Omitem-se homicídios, torturas e violações. E estas aconteceram em massa. Quanto às pilhagens, eram imprescindíveis e podiam ser planificadas superiormente, como relata, por exemplo, o general Marbot. Mas os militares aliados também pilhavam. Segundo uma testemunha de Arganil, “por onde passou a tormenta nada absolutamente ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de hortaliças. E se alguma coisa escapou ao inimigo, o limpou a nossa tropa e assim mesmo os pobres soldados vão mortos de fome”.

É verdade que a destruição foi tanta que, no âmbito da estratégia geral de combate a Napoleão na Europa, a Grã-Bretanha teve de enviar ajuda humanitária para o seu aliado

Sim, a tragédia suscitou uma campanha de auxílio na Grã-Bretanha, onde o parlamento e a população arrecadaram mais de 60 milhões de réis destinados às vítimas portuguesas da terceira invasão. Para organizar a repartição das verbas, foi constituída uma comissão central em Lisboa, a Junta dos Socorros da Subscrição Britânica, dirigida pelo cônsul inglês. O donativo foi distribuído pela população miserável (dinheiro e pano para roupa), por lavradores para sementeiras e por instituições de assistência.

A imagem de Napoleão foi manchada irremediavelmente no imaginário popular, apesar de alguns nas elites defenderem as suas ideias, depois desta terceira invasão?

Sem dúvida, era inevitável. Surgem por todo o lado folhetos que o diabolizam e isso foi alimentado e aproveitado pelas forças políticas conservadoras. Mas parte das elites estava conquistada pelas ideias políticas liberais, que eram também, não esqueçamos, as dos aliados ingleses.

O povo sentia-se abandonado pela família real, que a primeira invasão napoleónica, em 1807, tinha levado a embarcar para o Brasil?

A avaliar pelos relatos das testemunhas e as petições das vítimas, não era assunto que as preocupasse. Referiam-se à tragédia sem invocar as causas da invasão nem cenários que a tivessem impedido. Era como se de um terramoto se tratasse, sem outros responsáveis que não a própria catástrofe. 

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Penacova vai, mais uma vez, recriar alguns episódios da Guerra Peninsular ocorridos às nossas portas. Que além do enaltecimento da vitória anglo-lusa no Bussaco, nos lembremos também do "desgraçado" povo humilde do nosso concelho, dos familiares remotos de muitos de nós que foram assassinados, que viram as suas casas incendiadas, que ficaram sem os seus escassos víveres, que viram o património religioso roubado e profanado...


07 setembro, 2024

𝐍𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐡𝐢𝐬𝐭ó𝐫𝐢𝐜𝐚𝐬 𝐞 𝐞𝐭𝐧𝐨𝐠𝐫á𝐟𝐢𝐜𝐚𝐬 𝐬𝐨𝐛𝐫𝐞 𝐨 𝕄𝕠𝕟𝕥'𝔸𝕝𝕥𝕠 (3)



Texto do Professor Nelson Correia Borges (1977)

Vai longe já o colorido pitoresco de outrora das romarias da região. Às carroças e carros de bois enfeitados com verdura e fitas sucedeu o automóvel trivial; os altifalantes, berrando aos quatro ventos o último êxito da pop music, expulsaram as loas à santinha e os cantares regionais acompanhados pelo “ferum-ferum” da viola toeira. Coisas irreversíveis da nossa civilização. Já Gil Vicente se queixava em 1519:

“Em Portugal vi eu já
Em cada casa pandeiro,
E gaita em cada palheiro;
E de vinte anos a cá
Não há gaita nem gaiteiro.”

E também, anais recentemente (1902), exclamava Trindade Coelho: “Agora parece que vai aquilo tudo por água abaixo Deram as tricanas em meter na dança coisas de sala, marcadas em francês»

Ora, das romarias da região, uma das mais !concorridas era a da Senhora do Mont' Alto de Penacova. Povoavam-se as veredas das encostas no dia 8 ide Setembro, também conhecido por Dia das Sete Senhoras. Ao terreiro da capela afluía de todos os lados uma multidão de romeiros, ansiosos por cultuar a Mãe de Deus e também por conviver na mais sã alegria e descansar das lides da custosa lavoura ou dos palitos.

Entoavam-se loas ingénuas e dançava-se o vira. ou o malhão, ou escutava-se o desafio dos mais afamados cantadores.

Ainda andam na outiva algumas quadras alusivas. Em Lorvão recolhemos as que a seguir se arquivam.

A primeira tem o sabor das coisas reencontradas, depois de há muito perdidas :

A Senhora do Mont’Alto
Anda no monte sem roca,
Para acabar uma meada
Falta-lhe uma maçaroca.

As coisas simples do seu viver são transportadas pelo povo para o objecto da sua poesia, não sem um certo optimismo que parece também ter-se evolado na azáfama da vida moderna. Repare-se na carinhosa intimidade que se desprende dos seguintes versos:

A Senhora do Mont'Alto
Lá vai pelo monte acima,
Leva a cestinha no braço
Parra fazer a vindima.

A Senhora do Mont'Alto
Mandou-me agora chamar,
Que tem o seu manto roto,
Quer que eu lho vá remendar!

Se em Setembro é mês de vindimas, também é mudança de ritmo de vida quotidiana: começa o serão e acaba a sesta. A isso alude com um certo chiste a seguinte quadra:

Senhora do Mont'Alto
Eu não volto à vossa festa
Que me tirais a merenda
E mai-la hora da sesta!

Quadras como estas haverá muitas mais. Valia a pena anotá-las todas para um cancioneiro. São tesouros de arte popular e expoentes de uma cultura que aos poucos se vai perdendo. (...)

Nos carreiros dos montes cresce hoje a erva e o mato, mas a Senhora do Mont'Alto, apesar de toda a agitada vida moderna, avessa a sacrifícios, ainda tem os seus romeiros fiéis, por isso...continuaremos.

Correia Borges
NP 16 DE SETEMBRO DE 1977

05 setembro, 2024

𝐍𝐨𝐭𝐚𝐬 𝐡𝐢𝐬𝐭ó𝐫𝐢𝐜𝐚𝐬 𝐞 𝐞𝐭𝐧𝐨𝐠𝐫á𝐟𝐢𝐜𝐚𝐬 𝐬𝐨𝐛𝐫𝐞 𝐨 𝕄𝕠𝕟𝕥'𝔸𝕝𝕥𝕠 (2)


TEXTO DE NELSON CORREIA BORGES (1977)

O Mont'Alto avulta na paisagem, a norte da vila de Penacova, como formidável mole naturalmente defensável, ideal para a instalação de um castro em tempos proto-históricos, mas relegado para plano secundário devido ao alto valor estratégico do local onde depois se ergueu o castelo roqueiro, sobre o Mondego.

As ribeiras de Penacova e de Selga delimitam as suas vertentes escarpadas, onde trepam carreiros milenários que conduzem ao santuário, trilhados quase apenas pelos romeiros da Senhora. O acesso é, no entanto, também possível a carros, não sem algumas dificuldades, utilizando a estrada que conduz do Casal à Chã; a partir daí o caminho é florestal.

Cobre as encostas denso manto de pinheiros, eucaliptos e acácias, afogando a capelinha, ocultando-a às vistas das gentes da vila e roubando até, lá no cimo do monte, um dos maiores prazeres que se pode ter quando se lhe alcança o deliciar-se a gente com a dilatada paisagem circundante.

Poder-se-ia admirar, cá mais em baixo, o rio, a ponte, a vila, as várzeas e as povoações reclinadas nas encostas. Assim, restam-nos algumas frestas do Mondego, por entre as ramagens, umas quantas oliveiras no terreiro em volta da capela, um altaneiro cedro do Buçaco e uma figueira mirrada e, claro, a capelinha da Senhora do Mont'Alto.

A capelinha é um encanto, com aquela dignidade sóbria que só as ermidinhas portuguesas têm. A construção é seiscentista, muito simples. O corpo da capela tem um espaço interior de 8,13 x 4,75 m e a capela mór 3,3 x 3,03 m. A sacristia, pequena, encosta-se à ilharga esquerda da capela-mór. Rasgam-se na capela duas portas de verga curva, uma lateral e a outra axial, sob o alpendre, ladeado por duas janelas gradeadas, para espreitar o orago.

A obra não devia ter ficado um primor de segurança, pois toda a capela se encontra travejada e pos-teriormente foram feitos lateralmente à frente dois muros a servir de contrafortes. Enfim, construção modesta, feita pelo povo e onde os senhores e donatários da vila não deviam ter metido prego nem estopa.

Em toda a volta da capelinha e alpendre há um banco corrido, de pedra e cimento, para os romeiros se sentarem a saborear os seus farnéis. O alpendre que mais encanto dá à paisagem fica em frente da porta principal, definindo um espaço interior de 5,7 x 4,4 m. Tem seis colunas toscanas com 1,85 m de altura suportando o telhado de forma piramidal. Estas assentam por seu turno num pequeno muro com 0,8 m de altura.

Ontem como hoje, os visitantes continuam a comprazer-se em deixar o seu escrito pelos locais por onde passam, comportamento que, com mais ou menos vandalismo ou oportunidade, requer uma explicação psicológica que não está ao nosso alcance. Abundam aqui as inscrições nas colunas e nos muros. Cerca de 15.000 anos antes de Cristo já o homem pintava e imprimia a sua mão em grutas, como a de Cargas, nos Altos Pirinéus. Pois aqui viemos também encontrar no solo do alpendre três pares de mãos impressas no cimento enquanto fresco. «Nada de novo sob o sol».

Outras inscrições no mesmo local dão-nos conta de obras de conservação levadas a cabo em 1958 e 1964.

Correia Borges
NP 14/10/77