08 fevereiro, 2019

A Lenda dos Três Rios









Muitas das compilações existentes sobre lendas portuguesas a referem, atribuindo-a à tradição oral da zona de Pombeiro da Beira, mas muito raramente é feita referência à versão do Visconde Sanches de Frias na monografia sobre aquela localidade publicada em 1896.


“Mondego, Alva e Zêzere, nascidos da mesma mãe, serpeando pelas vertentes da serra da Estrela, em santa irmandade, amigos e camaradas, viviam tranquilos e alegres, mirando-se cada qual na limpidez das suas águas, e escondendo-se nas gargantas, furnas e sorvedoiros da gigantesca serra. Umas tardes, já quase à boca da noite, envolveram-se em azeda conversa, porque se arrogaram valentias, ao que parece prometeram romper as prisões, que os detinham, trovejaram rivalidades, e acabaram por desafiar-se para uma corrida vertiginosa, cuja meta seria o corpo enormíssimo do mar. O primeiro, que lá esbarrasse...
- Qual dos três saberia melhormente o caminho? — Qual desenvolveria maior tafularia e força? — Quem seria o primeiro a oferecer as suas águas dulcíssimas às salsas águas do mar?
Era o que ia ver-se.
O Mondego, astuto, forte e madrugador, levantou-se cedo, e começou a correr brandamente, para não fazer barulho e não levantar suspeitas, é de crer, desde as vizinhanças da Guarda nos territórios de Celorico, Gouveia, Manteigas, Canas de Senhorim, e dirigiu se, depois de se ter robustecido com a ajuda de colegas, que vieram cumprimentá-lo, à Raiva, na direcção de Coimbra, depois de ter atravessado ofegante as duas Beiras. O Zêzere, que também estava alerta, entrou de mover-se ao mesmo tempo que o Mondego, ocultando-se até certa distância nas anfractuosidades do seu leito penhascoso; foi direito propriamente a Manteigas, onde perdeu de vista o colega, passou também nos terrenos da Guarda, correu para o Fundão, desnorteou, obliquando para Pedrogão Grande; e finalmente, depois de ter atravessado três províncias, deu consigo em Constância, na Estremadura, abraçando-se ao Tejo, a que ofereceu as suas águas, já cansado de caminhar umas 40 léguas e desesperançado de alcançar o mar.

O Alva, dorminhoco e poeta, embora esses atributos não sejam sinónimos, entreteve-se a contemplar as estrelas, mais do que era prudente, adormeceu confiado no seu génio insofrido e nervoso; e, quando despontou, alto dia, estremunhado, em sobressalto, avistou os colegas a correr sobre distâncias a perder de vista. Um desastre, não havia que ver! uma imprevidência, que era forçoso remediar. O Alva atirou consigo de roldão pelos campos fora, rasgou furiosamente montanhas e rochedos, galgou despenhadeiros, bradou vingança temerosa, rugiu ; e, quando julgou que estava a dois passos do triunfo, foi esbarrar com o seu principal antagonista, o Mondego, que lá ia, havia horas, campos de Coimbra fora, em cata da Figueira, onde se lançaria jubiloso no seio volumoso do Oceano, ao ganhar a porfiada contenda.
O Alva esbravejou, como atleta sanhudo, atirou-se ao adversário, a ver se o lançava fora do leito, espumou de raiva; mas... o outro, que deslizava sereno e forte, riu-se, e engoliu-o de um trago.
Ao lugar da contenda e foz do Alva chamou-se propositadamente Raiva, em memória da sua atitude raivosa e do caso tremebundo.”
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FRIAS, David Correia Sanches de; VASCONCELOS, Carolina Michaelis de; VASCONCELOS, Joaquim de - Pombeiro da Beira: memória histórica, descritiva e crítica. Lisboa: Tip.de João Romano Torres, 1896


23 janeiro, 2019

Memórias da Beira Serra: gravuras do boletim “A Acção Regional” 1931-1934




De 1931 a 1934 publicou-se em Lisboa um boletim trimestral que tinha como título “A Acção Regional”. Dirigido por José Maria Dias Ferrão, assumia-se como órgão do Grémio Regionalista da Comarca de Arganil. Esta publicação teve a particularidade de apresentar um número significativo de fotografias de lugares e de actividades das gentes da região da Beira Serra com destaque para Arganil mas, abrangendo também Tábua, Vila Nova de Poiares, Pampilhosa da Serra, Oliveira do Hospital e Penacova.  
Seleccionámos algumas delas. Muitas dizem respeito à freguesia de S. Pedro de Alva. Destacaríamos a que retrata o Vimieiro e a que regista uma festa da catequese naquela vila. Também as do Preventório de Penacova (boletim de Outubro de 1934) se revestem de algum interesse. Todas as restantes apresentam também uma ou outra particularidade que, no nosso entender, justifica o seu resgate e a nossa análise e apreciação crítica.

































18 janeiro, 2019

Quando na Raiva se juntavam trinta e seis barcas serranas e duzentos carros de bois ...

Pintura de Joana Santana
Em 1954, no jornal “Notícias de Penacova”, o Padre Manuel Marques (que assinava Manuel do Freixo) publicou na crónica “Casos & Coisas” um artigo sobre o Porto da Raiva

Referindo-se aos tempos áureos deste “notável entreposto”, recorda-nos que “ali chegavam os carros de bois carregadinhos de milho da Beira" , milho que ali se vendia "todas as quintas-feiras, num mercado que esses carros abasteciam juntamente com compridas comboiadas de barcos de feijão, sal, fazendas, mercearias” e outros produtos.

Nesses tempos [até finais do século XIX] “todo o concelho de Penacova afluía ao mercado da Raiva, principalmente para a compra de cereais” e os armazéns, já em 1954 em ruínas, “enchiam-se de tudo o que crescia dum mercado e que esperava ali o mercado da semana seguinte.”

CAPELA DE NOSSA SENHORA DA BOA VIAGEM (2019)
Refere o Padre Manuel Marques que “no dizer dos velhos” com quem conversou, chegavam a juntar-se ali “duzentos carros de bois e trinta e seis barcas grandes carregadas de sal e outros produtos”.

Curiosa é também a origem da Capela da Boa Viagem. Escreve aquele cronista: “Quando lá em cima, junto da capelinha da Senhora da Boa Viagem olhei para o rio, e quando da estrada, para cá da Raiva, disse o meu adeus à branca ermidinha da Senhora, compreendi então a razão por que os barqueiros da há cem ou duzentos anos ali foram construir aquele padrão da sua fé cristã, expressão da sua devoção a Nossa Senhora da Boa Viagem, fora do lugar, na encosta do monte: era pela mesma razão por que os barqueiros da freguesia de Penacova, queriam, por mais tempo, contemplar e saudar de longe, a Senhora da Guia como um farol a brilhar no Monte do Castelo, do Castelo de Penacova.”

Notícias de Penacova (1954)

PORTO DA RAIVA (2019)
PORTO DA RAIVA NA ACTUALIDADE
Foto:
 http://estradanacional2chavesfaro.blogspot.com/2012/02/en-2-1-etapa-chaves-peso-da-regua.html