terça-feira, maio 25, 2021

Invasões Francesas no concelho de Penacova: o outro lado da História


A exaltação da vitória anglo-lusa na Batalha do Buçaco não pode, no nosso entender, atirar para o esquecimento os horrores sofridos pelo povo anónimo das povoações do nosso concelho em 1810 e 1811. Povo alheio aos interesses militares e políticos, povo que foi, pura e simplesmente, vítima de assassinatos, violações, atrocidades, roubos… e viu destruídas  pelo furor das chamas muitas das suas casas, muitas das suas aldeias até.

Só no concelho de Penacova (território actual) foram cerca de 60 pessoas assassinadas, entre elas uma criança, e perto de 80 casas incendiadas, não contando com a destruição total de 6 aldeias e das “casas principais”, não contabilizadas, de Oliveira do Cunhedo. Atingidas pelo fogo posto também 2 igrejas, 1 capela e 1 residência paroquial.

Os relatos[1] que cada paróquia - dos então arciprestados de Sinde, Arganil e Mortágua - fez no rescaldo da incursão dos franceses, principalmente no primeiro trimestre de 1911, dão-nos uma ténue imagem do que realmente aconteceu.

A freguesia mais atingida em termos de vítimas pessoais foi sem dúvida Farinha Podre: assassinados 16 homens e 9 mulheres. O mapa elaborado pelo pároco regista mesmo os locais e por vezes os nomes. Na Sede da freguesia pereceram 3 homens e 3 mulheres, em Hombres 5 homens e 3 mulheres, em Laborins 2 homens, no Carvalhal, na Cruz do Soito e no Silveirinho 1 homem em cada uma das terras. Calcula-se que muitas outras pessoas terão acabado por morrer na sequência dos maus tratos sofridos. Também a destruição de 30 casas incendiadas nos dão uma ideia da violência e do terror espalhado na actual freguesia de S. Pedro de Alva.

Na freguesia de S. Paio de Farinha Podre assassinaram 1 criança, contabilizando-se no total 3 indivíduos do sexo masculino  e três do sexo feminino. Além de 8 casas incendiadas também a Igreja sofreu igual ofensa. Nesta, roubaram imagens e objectos de culto.

Todo o concelho sofreu de um modo ou de outro. Apenas a freguesia de Sazes terá tido a sorte de passar à margem destas desgraças. Refere o relato do arcipreste que “nesta freguesia não entraram franceses alguns.”

A freguesia de Carvalho foi outra das que sofreram duros revezes. Não tanto em mortes mas sim em destruição. Morreu 1 indivíduo do sexo masculino e é  importante recordar que as aldeias de Seixo, Soalhal, Pendurada, Lourinhal e Cerquedo foram totalmente incendiadas. Quanto a roubos o relatório traduz a situação em poucas palavras dizendo que “tudo se foi”.

Por falar em aldeias incendiadas passemos à freguesia de Penacova. A aldeia do Felgar foi também completamente destruído pelo fogo. Foi esta zona da freguesia (Felgar, Travasso, Sanguinho, Ferradosa, Hospital, Balteiro e Ribas) a mais atingida pelos invasores, registando-se “pesados roubos” de gado, porcos, fruta e alfaias religiosas. Das capelas do Travasso e da Riba de Cima levaram o cálice e “todos os ornamentos”. No que toca a mortes há a referência a 5 homens e 3 mulheres.

Passando a Lorvão, há o registo do assassinato de 4 homens e a ocorrência de inúmeros “roubos sacrílegos”. Nas capelas do Roxo e do Caneiro foram roubados cálices, patenas, paramentos e óleos.

Figueira de Lorvão “foi menos atacada”… No entanto, mataram António Francisco e F. Henriques dos Santos e ainda Ana Marques, de 45 anos, moradora em Alagoa.

Em Paradela assassinaram Manuel Carvalinho e Isabel Henriques, ambos na casa dos 80 anos. Na Sobreira foi um homem de 40 anos: António Silveira e ainda uma mulher de 50 anos, viúva, Isabel Lemos. As violações foram outro dos dramas vividos, quer nesta freguesia, quer em todas as zonas atingidas. Nesta freguesia queimaram a residência paroquial “com tudo o que tinha dentro” e 16 casas tiveram igual destino. Roubaram “todo o grão, vinho e azeite”, hortas e gado. Destruíram  searas e vinhas. Na Igreja “escavacaram” o trono, o altar-mor e o sacrário. Queimaram todos os livros de Assentos, Pastorais e outros documentos.

Oliveira do Cunhedo e Travanca foram “visitadas” pelos  franceses em Setembro de 1810, nas vésperas da batalha do Buçaco, e em Março de 1811 quando retiravam pela margem esquerda do Mondego.

Em Oliveira assassinaram 3 homens e 1 mulher e incendiaram as “casas principais” da localidade. Roubaram casas, “grãos”, gado e a Igreja.

Na freguesia vizinha de Travanca, mataram 3 homens, sendo um deles Manuel Rodrigues, sapateiro de Lagares, com mais de 80 anos. Outro foi vítima de cutiladas. Uma mulher casada foi presa, acabando os soldados de Napoleão por “a deixar”…provavelmente violada como tantas outras. Queimaram 7 das melhores casas e roubaram tudo o que apanharam na residência paroquial. Na Igreja, que foi assaltada por duas vezes, “arrancaram a pedra de Ara”, destruíram o sacrário e relíquias e até os galões dos paramentos levaram.

Em Friúmes assassinaram 6 homens e 4 mulheres. Luís António levou um tiro na cara e João Reis foi enforcado na Igreja, escapando por milagre. Incendiadas 15 casas, queimada a Igreja e a capela do Espírito Santo em Vale do Tronco (que acabou por ser demolida). Roubaram 600 cabeças de gado, 800 alqueires de milho, 10 pipas de vinho e 60 alqueires de azeite.

Milhares de páginas se escreveram nestes 200 anos passados sobre a chamada Guerra Peninsular. E quem se lembra das “vítimas mais humildes e ignoradas”, das “populações civis espoliadas, cruelmente martirizadas e assassinadas”? – perguntamos também, subscrevendo  as palavras de Maria Antónia Lopes, da Faculdade de Letras e Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra.



[1] Relatórios elaborados pelos párocos e arciprestes da diocese de Coimbra, dando conta dos “Estragos, incêndios e mortes causados pelo exército na invasão de 1810-1811”.


sábado, abril 10, 2021

Francisco Rodrigues Lobo e Penacova, nos 400 anos da sua morte

 

ESTÁTUA DE FRANCISCO RODRIGUES LOBO, EM LEIRIA

Assinalam-se em 2021 os 400 anos da morte do poeta Francisco Rodrigues Lobo (1574-1621), que foi um dos grandes escritores portugueses. Nasceu em Leiria e aí viveu, com ligeiros intervalos, para fazer a sua  formação em Leis, na Universidade de Coimbra, que concluiu em 1602. Aquela cidade está a assinalar a efeméride.

A sua vida não terá sido fácil e está revestida de algum mistério. Um traço característico da sua obra é esconder-se por detrás dos pastores que são os seus protagonistas, nas suas três obras principais: “A Primavera”, “O pastor peregrino” e “O desenganado”. Escreveu também “Corte na Aldeia”. Na sua poesia, Rodrigues Lobo evoca  os rios Lis e o Lena, os seus campos e vales. Tudo aí é utópico, como é próprio da literatura bucólica. 

Era Cristão Novo, o que gerava a desconfiança da Inquisição. O seu irmão, já depois da morte dele, foi objeto de um processo daquela. Lobo cresceu sob a protecção dos Marqueses de Vila Real, que tinham Paço em Leiria. No entanto, caiu, a dado momento, em desgraça junto do herdeiro da casa, que era D. Miguel de Meneses.

E é aqui que entra a relação com Penacova.

Não se sabe se a  perseguição terá sido por ser cristão novo, se teria a ver com uma “estranha” relação de amizade com D. Juliana de Lara, irmã de D. Miguel: “Relação que se manteve enquanto o poeta estudou em Coimbra, pois que a visitou mais de uma vez no palácio de Penacova, do Conde de Odemira, com quem, entretanto ela tinha casado. E dedicou-lhe uma das suas obras. Esta relação poderá ter estado na origem dos problemas.

Atente-se que no texto bucólico “A Primavera” (1601), há uma passagem que fala desta vila e arredores.

Por onde entre penedos e aspereza passa o Mondego … rompendo os montes seus... Corre por entre as serras furioso, perto donde o rio Alva se derrama...

Se alevanta uma pena graciosa... uma profunda cova se descobre…

“A Primavera” divide-se em três partes: Vales e montes entre Lis e o Lena, Campos de Mondego e Praias do Tejo. Cada parte corresponde à caracterização e representação de três espaços marcados pelo protagonista, nas passagens a três momentos que o destino lhe vai ordenando.

“Nesta obra existem espaços em que o texto enraíza uma realidade geográfica, porém também há espaços situados fora da realidade, num universo fascinante e sobrenatural (…) No episódio de Penacova o espaço aparece descrito com realismo e o elemento temporal é distante da realidade histórica devido a transformação das personagens reais e seres mitológicos (…) A ruptura de laços que ligariam a história narrativa ao tempo histórico é mais uma característica da construção da narrativa da novela pastoril."[1]

Francisco Rodrigues Lobo morreu perto de Santarém, num naufrágio no Tejo, quando regressava de uma viagem a Lisboa no ano de 1621.







[1] (1) Cf. estudo de Sirlene de Lima Corrêa Cristófano, mestre em Literatura, Culturais e Interartes, pela Faculdade de Letras Universidade do Porto – FLUP (2009).

Locuções populares (VIII): Tudo como dantes no quartel general d' Abrantes


"Tudo como dantes no quartel general de Abrantes" significa que não há nada de novo, que continua tudo na mesma.

A expressão parece ter origem  nos  acontecimentos ocorridos durante a primeira invasão francesa.

Napoleão decretou o ‘Bloqueio Continental’, isto é, o encerramento dos portos da Europa continental ao comércio com a Inglaterra. Como Portugal não cumpriu este bloqueio Napoleão decidiu invadir Portugal.

A 17 de Novembro de 1807 o exército francês entrou em Portugal pelo vale do Tejo, que era o caminho mais curto para chegar a Lisboa. Nevava nas serras espanholas e chovia muito nas Beiras, provocando cheias nos rios, dificultando a travessia dos cursos de água pelas tropas e, principalmente, pelos canhões.

Só a 23 de novembro de 1807 é que a vanguarda do exército francês entrou na vila de Abrantes, de forma dispersa, desordenada, com os militares famintos, rotos, sem poder sequer utilizar as munições, que estavam molhadas. Junot chegou no dia seguinte, e aí instalou o seu quartel-general para que as forças pudessem retemperar forças e para aguardar por grande quantidade de militares que se tinham atrasado

A vila permaneceu sob ocupação francesa durante muito tempo. Quando se perguntava como iam as coisas, que notícias havia da situação no país, a resposta era: Tudo como dantes no quartel d'Abrantes’.

Fonte: Repositório do Conhecimento Inútil

quinta-feira, março 25, 2021

Locuções populares (VII): Ficar a ver navios

 


Como sabemos, a expressão significa  não conseguir o que se deseja, ficar decepcionado. Também se diz por vezes “ficar a chuchar no dedo”...

A origem mais provável desta locução terá a ver com a primeira invasão francesa e a chegada de Junot a Lisboa, quando a família real fugia para o Brasil.

Em 20 de Novembro de 1807 as tropas francesas, reforçadas por forças espanholas, comandadas por  Junot, invadiram Portugal, entrando pela Beira Baixa.

O principal objectivo de Junot era chegar a Lisboa e prender a família real. Entretanto, a corte e a nobreza preparou-se à pressa para sair do país. Cinquenta navios transportando 15 000 pessoas juntamente com jóias, móveis, livros, e outras bens, saíram a 27 de Novembro rumo ao Brasil.

Junot chegou a Lisboa no dia 30. Já só conseguiu deter 3 navios porque  os restantes já iam demasiado longe… E assim, “ficou a ver navios”…

Há uma outra versão que relaciona a origem da locução com o desastre de Alcácer Quibir. Havia pessoas que durante muito tempo,  dos lugares mais altos da cidade de Lisboa, olhavam os navios que chegavam ao Tejo, à espera que de um deles surgisse o Rei D. Sebastião.

 

quinta-feira, março 18, 2021

Lorvão vai ter unidade hoteleira


Vai hoje ser assinado o contrato de concessão do Mosteiro do Lorvão para instalação de uma unidade hoteleira. A reabilitação e exploração do Mosteiro foi adjudicada à empresa Soft Time, de Luís Sérgio Aleixo Pita.

Saiba + sobre a Soft Time:
e sobre a notícia:

Depois de tanto impasse, oxalá seja desta que que aquele majestoso espaço "REVIVA" efectivamente, para bem do nosso concelho e da nossa região.

domingo, março 14, 2021

Lenda de Penacova



Foi um dia o Mondego

Todo jovem, todo ledo

A Coimbra a estudar.

Levou os livros no intento

De passar bem o seu tempo

Se tivesse de parar.



Longa via já andada

Toda a roupa ensopada

No suor do corpo seu

Ali, na falda da serra

Deitou os livros em terra

E à fadiga se rendeu.



Lá do Céu meigo luar

Já cuidava em pratear

As negras cristas dos montes,

E o Mondego já tremia

Do medo que então sentia

Do rumor surdo, das fontes.



Temeroso ajoelhou

E de mãos postas rezou

Ao Senhor de quanto havia,

Que do Céu prestes mandasse

Um Anjo que lhe falasse

E fizesse companhia.



E o Senhor atento ouvia

E depois pena sentia

Do seu amargo penar…

Seu pedido despachou

E um anjo, prestes mandou

Num raio do seu lar.



E nessa noite distante

Jovem Mondego estudante

Dormindo naquela cova

Dos livros fez livraria

Da pena fez alegria

Da Cova fez Penacova



E o anjo da caridade,

Todo amor, todo bondade,

todo puro e sem labéu

Em sua visão infinda

Achou a terra tão linda

Que não mais voltou ao Céu



E quando um beijo de amor

Quis dar ao seu protector

No momento de partir

O anjo tornou-se astro

E sobe ao monte do Castro

E a meio pôs-se a sorrir



Não posso subir ao Monte

Para pôr na tua fronte

O meu beijo apaixonado?!

Ficarei aqui, ao fundo

Enquanto o mundo for mundo

Dizendo muito obrigado!



E a promessa do Mondego

Todo jovem todo ledo

Foi promessa de valor.

Sabe a gente velha e nova

Que o rio de Penacova

Nunca mais se fez Doutor!



P.e Agostinho

In Notícias de Penacova ,1950



Locuções populares (VI): Estar nas suas sete quintas


Significa estar satisfeito, contente, feliz.

Os nossos reis detinham, no concelho do Seixal, sete quintas onde o rei e o seu séquito gostavam de passar longas temporadas.

Então, nesses tempos, quando se perguntava pelo rei, dizia-se que estava nas suas sete quintas.

No Dicionário de Caldas Aulete, “Estar nas suas sete quintas” significa estar muito contente. Para Cândido de Figueiredo “Estar nas suas sete quintas" seria estar como se quer, perfeitamente à vontade.

Em relação a muitas locuções, há dúvidas, indefinições e discussões sobre as suas origens. Com esta expressão que, como vimos, tem fundamentação histórica profusa, tal não se verifica.

Essas quintas situavam-se na margem sul do Tejo, quase em frente a Lisboa, e a sua história é bem conhecida: Alfeite, Romeira, Piedade, Outeiro, Quintinha, Antelmo e Bomba.

quarta-feira, março 10, 2021

Locuções populares (V): Emprenhar pelos ouvidos

 


A expressão é muitas vezes usada com o significado de dar importância a rumores, dar ouvido a intrigas, a mexericos.

Na origem desta expressão está, evidentemente, a alusão ao processo de gravidez da virgem Maria.

É no Evangelho de S. Lucas que se refere o episódio do anjo quando anunciou a concepção de Maria. Com efeito, aí se afirma que foi pelos ouvidos que as palavras do Arcanjo Gabriel foram ela recebidas. 

A importância do ouvido como local de estabelecimento da alma e do espírito humano foi reconhecida desde a Grécia antiga tendo essa ideia subsistido durante séculos no imaginário das populações.

Nesses tempos recuados, acreditava-se que a mulher podia realmente engravidar sem ter relações sexuais, isto é, ‘sine decubito’. Tal poderia acontecer por várias formas, principalmente por sonhos e consumo de determinados alimentos.

Os inumeráveis casos de gravidez ‘sine concubito’ motivaram debates judiciais na Idade Média e os tribunais davam muitas vezes razão às mulheres dos cruzados que combatiam na Terra Santa, acreditando que estas podiam ser fecundadas à distância e em sonhos!

Fonte: Repositório do conhecimento inútil, op.cit.

sábado, fevereiro 27, 2021

Locuções populares (IV): "Mal e porcamente"

 


Esta expressão significa “de modo muito imperfeito”, “muito mal”, “de forma desleixada”, apressada e mesmo até atabalhoada.

Pensa-se que a origem esteja na corruptela de «mal e parcamente» que teria o sentido de “fez mal e, ainda por cima, pouco”. Sendo assim, a expressão original corresponderia a alguma coisa mal feita e com poucos recursos

Como vimos, a expressão ‘mal e porcamente’ era, originalmente, “mal e parcamente”. “Parco” vem do latim “parcus” com o significado de pouco abundante, poupado, pequeno… Como o termo “parco” não é habitualmente utilizado na linguagem popular, a expressão sofreu uma corruptela, sendo “parcamente” trocado por “porcamente”, palavra bastante conhecida e com sonoridade semelhante.

Fonte: Repositório do Conhecimento Inútil, op.cit.

domingo, fevereiro 21, 2021

Lorvão: páginas cinzentas da sua história


Escreveu Hipólito Raposo (1885-1953):

“As monjas para quem Alexandre Herculano pediu esmola, já não existem. Infinita crueldade seria que a morte as não tivesse poupado ao destino de ver as celas da penitência convertidas em lares onde duas dúzias de famílias foram procurar uma ilusão de abrigo.

Agora, aqueles que no amor ou curiosidade das coisas mortas, se aventuram a transpor os montes que muralham o vale até ao céu, sombriamente, impressiona-os de surpresa a majestade do edifício que o roçar dos séculos tornou venerando.

A cúpula rebrilhante ergue-se no ar sereno, e quando o sol volta, deixa projectar na encosta, a sombra alongada por sobre a ramaria verde-negra dos pinheirais. E toda a face do mosteiro tem no aspecto contrafeito uma opulência decaída, aquela melancólica saudade dos solares de província, abandonados para sempre à vida simples dos abegões.

No Páteo relvoso em que virgens em flor apeando das liteiras no braço dos pais, voltavam os olhos chorosos para dizer adeus ao mundo, vendo apenas ao alto um recorte de céu azul, nesse Páteo dançam agora as moças aos domingos, danças profanas que ultrajam a santidade do lugar e escandalizariam as freiras como um pecado vivo.

Lá dentro, guarda o órgão um silêncio doloroso: das harmonias que derramavam clarões de divindade na alma das noviças, só as paredes e os altares vibram, como outrora na solenidade fúnebre das profissões.

Virgens imateriais quase, erguem na sombra os vultos brancos, entre círios que rodeiam o sacrifício da carne estéril, a chorar pela Vida para gloria de Deus. Toda a visão se ilumina, revive o velho Cenóbio a sua grandeza, cheira a incenso, vozes esvoaçara aflitivamente pelas naves, como suspiros de saudades do céu ...

Em túmulos de prata, dormem há séculos duas filhas de Sancho I e pasma a gente de ver que lhes tenham respeitado a paz, ao lado de oleografias e alfaias milagrosamente salvas à mesma cobiça sacrílega que desnudou a igreja e o convento.

Olhando ao fundo o coro, sumptuoso lavor, luz fria entristecendo a face das coisas e como uma súplica sem esperança, alevanta-se o vulto anguloso da estante do ofício, suportando ainda o velho antifonário coberto de poeira sagrada.

Mal resistindo à deterioração de toda a hora, o cadeirado glorioso alonga a todo o comprimento a graça das decorações, todas animadas da celeste espiritualidade que resplandecem cada figura tutelar.

Pelas altas arcarias, emparedadas aqui e além de fragmentos de capiteis e colunas, vai-se escoando o fumo dos lares que tendo bafejado torpemente os azulejos dos corredores, anda a denegrir os ornatos do coro, da mais preciosa talha de este país, porque o Governo para cobrir o deficit e matar a dívida, arrendou a míseros paliteiros, por uma centena de mil réis, as celas das freiras de Lorvão.

Se cada convento em Portugal é uma página de vergonha para a história contemporânea, creio que em nenhum haverá tão numerosos exemplos de ladroagem e desleixo como neste que tendo sido poupado pelo vandalismo francês, é destruído e roubado em proveito dos liberais do presente e em nome do interesse público.

Aqui, no alto da cúpula, a vista sobe a encosta, pela extensão da verdura até ao céu, torna a descer o declive e pára no fundo do vale, nas trepadeiras e heras da cerca, enlaçando ruínas musgosas, entre silvas e alecrim, a romper vigorosamente dos entulhos onde erram perfumes de cravos do outono e cintilações de azulejos migados ao sol.

Dos três claustros, ainda de pé, alguns arcos, alternando com fustes brancos de colunas mutiladas e inertes. Debaixo das arcarias abatidas movem-se crianças famintas, olhos vermelhos do fumo, fugindo das celas para a agonia dos corredores onde o ar é opaco e a friagem passa rudemente, ululando rumores de morte, sem a resistência das portas já moídas do temporal.

Mulheres de andrajos cruzam-se na faina, outras espreitam dos buracos e encontram ainda um sorriso de motejo pelos que lhes devassam o martírio que nem o sacrifício da Arte lhes abranda a existência, ao menos.

Nas ruas, mocinhas de rosto seráfico e olhar tímido, paradas de curiosidade, duvidam que alguém possa ter interesse em peregrinar àquela ruinaria com que entestam a toda a hora, desde que nasceram.

E assim, entre o desdém de um povo que desejaria aniquilar um monumento que lhes humilha a pobreza dos casebres e o fisco faminto, amolecendo mais a indiferença de um Conselho de Monumentos Nacionais, é que se extinguirá até aos alicerces, o que ainda resta do mais histórico mosteiro de Portugal.

Velhas Crónicas falam gravemente de estes frades da cogula negra, cultivadores de terras bravias nos primeiros séculos, em doações alargadas mais tarde e mantidas pelos próprios moiros já dominando em Coimbra, até que em tempo de cristãos eles cederam casa e senhorio à virtude das netas do primeiro Rei de Portugal.

Toda a tragédia das Rainhas Teresa e Sancha, com a dedicação de nobres damas que nos votos acompanharam o infortúnio daquela - eu a revivo entre matagais agrestes lá no fundo da Idade Média portuguesa, o irmão feroz usurpando-lhes os castelos e a triste Infanta Beringela, deserdada, na Dinamarca cinzenta, chorando com saudades do sol e da terra que perdera.

Casa de penitência agora, viveiro de bastardos, quatro séculos depois, no governo de Filipa d'Eça, quando as monjas ricas e protegidas, resistiam com tantos abusos pelo prestígio da sua beleza, ao intuito reformador de D. João III.

Sob estes claustros se exaltou o misticismo de Joana de Albuquerque, discípula de Santa Teresa, que na alucinação histérica de cada hora, tinha colóquios de amor com Jesus, de novo ressuscitado para a sua paixão ardente, com beijos, ciúmes e amuos, como no mais trivial namoro português, segundo a sua própria narrativa.

O Mosteiro de Lorvão - “antre serras onde o sol não era visto” - a saudade de Crisfal o rememora a todo o coração enamorado; as lembranças tristes das freiras que resolviam morrer à fome para não quebrarem a clausura, a mendigar nos caminhos, hão de sepultar-se nas últimas ruinas que impressionando-nos com respeito, ainda mais nos indignam pelo testemunho de uma execranda malvadez."

In Livro de Horas de Hipólito Raposo. Coimbra. França Amado Editor. 1913

[José Hipólito Vaz Raposo (São Vicente da Beira, 13 de Fevereiro de 1885 — Lisboa, 26 de Agosto de 1953), mais conhecido por Hipólito Raposo, foi um advogado, escritor, historiador e político monárquico, que se notabilizou como um dos mais destacados dirigentes do Integralismo Lusitano.]