domingo, outubro 05, 2025

Evocar António José de Almeida neste 115º aniversário da Implantação da República


Hoje, 115º aniversário da Implantação da República em Portugal, dia em que o nosso concelho evoca o seu ilustre conterrâneo que foi uma das mais importantes personalidades da política portuguesa da época, transcrevemos, de seguida, o texto integral do artigo publicado na Ilustração Portuguesa, que apesar de extenso, merece ser aqui recordado, não só, mas também como documento histórico.

 A 31 de Outubro de 1937, era inaugurado o monumento a António José de Almeida, em Lisboa (oito anos após a sua morte), um projecto do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro e do escultor Leopoldo de Almeida. Durante o Estado Novo (1933-1974), o monumento acabaria por se transformar num local de romaria da oposição ao regime, em datas simbólicas como o 5 de Outubro. 

Glorificação de um Caudilho: 

a inauguração do monumento a António José de Almeida

Revista Ilustração Portuguesa, º 286, Novembro de 1937

"Ninguém, entre os caudilhos da República, igualou António José de Almeida como condutor de multidões. Não era só o seu verbo inspirado, a sua palavra flamejante, a sua dominadora voz, que abalava, comovia, arrastava; era toda a sua presença — a sua figura insinuantíssima, os seus olhos espelhando entusiasmo, o ímpeto do seu vigoroso arcabouço, avançando no tablado como num arraial de combate, o ritmo ondulante do seu gesto largo, a vibração ardente, mediânica, de todo o seu ser — impressionando, comunicando ao auditório essa sugestão formidável que acorda as almas, num frémito de acção, num uníssono de entusiasmo. 

República! Esta palavra, nos seus lábios, tinha a magia das revelações religiosas, e, ora soava como uma prece, ora como um cântico, ora como um dies irae; evocava o fragor dos ingentes prélios, a fúria das imprecações, o desespero dos naufrágios, a miséria, a opressão, a iniquidade, concentrando o tumultuar da revolta, o clarão da vitória e o clamor da alvorada! 

República! Vocábulo omnimodo  que, à luz esplendorosa da sua alma, ao sopro do seu génio, se tornava alado, erguendo ao infinito todas as nobres aspirações, todas as ânsias de resgate, todos os sonhos de grandeza patriótica, todas as reivindicações de Justiça, todas as rútilas evidências da Verdade! 

República! E todos os corações pulsavam, apressadamente batiam, como se o mundo estremecesse num Tabor de transfiguração, ao assombro de cataclismos!... 

Guerra Junqueiro dizia-me: — António José de Almeida é como uma força da Natureza! 

De facto, ver este homem na tribuna era assistir a um deflagrar de tempestade. 

Tormenta caliginosa, apocalíptica, trespassada de relâmpagos, sulcada de raios! 

Ao estrondear da sua eloquência, desmoronavam-se todos os obstáculos: aluíam as muralhas seculares de preconceitos; ardiam as árvores do mal, milenárias; fundiam-se as cadeias de todas as servidões; e todas as imundícies dos Leviathans sociais se sumiam, arrastadas à voragem como por um dilúvio. 

Mas, ao fim, era como se arfasse o Mar; uma doce brisa passava, um arco-íris de esperança subia... O sol brilhava! 

E o sol era o seu coração! 

Como Jeová brandira os fuzilantes feixes da sua eléctrica cólera; espalhara, vingadoramente, a devastação, mas - o juízo implacável findo, jugulado o inimigo, impotente o mal - uma onda de piedade se levantava na sua alma. Submergia-se em infinita misericórdia o seu sagrado furor dc justiça. 

Assim Jeová se humaniza, e Cristo surge! 

Eterno símbolo das almas fortes esta dualidade psicológica, que, a nossos olhos mortais, tão sublime se revela que, para a encarnar, os homens criaram os Deuses. 

Esta dualidade explica o político que foi António José de Almeida. 

A trajectória da sua acção dir-se-ia pontuada de hesitações. Algumas das suas atitudes desconcertaram os seus maiores amigos, os seus mais fervorosos admiradores. Como quando à peroração célebre: "Se vos pedirem água, dêem-lhes água-raz; se vos pedirem pão, dêem-lhes balas!, referindo-se àqueles portugueses que além fronteiras, se armam para invadir Portugal, sucede, apenas vencidos, um frenesi de perdão, uma obsediante clemência tal, que a sua vida vem a correr risco como a dum traidor. 

Ainda que cometesse então um erro de visão política, nunca foi mais bela a sua figura de lutador.

 Ele foi sempre tão inquebrantável no ódio como no amor, pois que o seu ódio e o seu amor não eram mais do que aspectos, só aparentemente contraditórios, da sua magnanimidade, duas faces da sua sempre ansiosa fraternidade, do seu sonho imperecível de igualdade, da sua aspiração indómita de liberdade! 

Qual foi a hora mais alta da sua vida Política? — pergunta-se. 

Horas altas na sua vida contam-se muitas, tantas viveu em nobilíssimo combate em exaltação de civismo - a sua devoção patriótica não esmorecendo até ao último alento, e a sua bondade acrisolando-se até limites sobre-humanos, na dor, nos flagícios, na provação incomparável dos últimos anos para todos nós tão entenebrecidos. 

Mas o momento mais solene da sua vida foi, sem dúvida, o da União Sagrada. 

Para ela trouxe, em holocausto, votivamente, como no altar da Pátria, tudo o que podia dar à Nação, bem mais do que podia exigir-se a um cidadão, mesmo em tal hora, e ainda quando o cidadão fosse de tão singular envergadura. Ele trouxe-lhe o sacrifício da sua posição de chefe de partido - nos seus olhos turbando-se o olhar inquieto dos seus correligionários dedicadíssimos, que tinham para ele a cruel censura de abandono; — arrostou com a maledicência infamante, que interpretaria a sua extrema abnegação, como vil cobiça do poder, e calcou aos pés, humilde, estoicamente, todo o seu orgulho de homem. 

Sem esta inultrapassável prova, sem esta decisão suprema. a intervenção militar de Portugal na Grande Guerra seria impossível — os nossos destinos históricos irremediavelmente comprometidos. 

Estamos salvos! — E o grande Junqueiro, proclamando-o, tinha lágrimas de alegria heróica. 

E estávamos — apesar de tudo…

Desviemo-nos do espectáculo tremendo do fim do ano de 1917. Apaziguemos a melancólica tristeza que causa o horror da guerra civil, volvendo ainda à luminosa vida de António José de Almeida. 

                                                              *

                                                          *     *

O "ultimatum” de 1890 desperta Portugal dum leal marasmo. Todo o país reage à afronta; a Nação vive! 

É nesse momento que António José de Almeida surge para a acção política. 

Entre tantos moços cujo talento e hombridade avultam até à consagração pública — como Afonso Costa, João de Menezes, Augusto Barreto, Silvestre e Paulo Falcão, Barbosa de Andrade,  Arnaldo Bigotte, Fernando de Brederode, Malva do Vale — António José de Almeida impõe-se como um verdadeiro chefe. 

Não era o seu talento só que destacava; desde logo a perfeita unidade da sua vida mental e moral se afirmava, prestigiosamente. 

Havia nele mais que a força de pensamento; a absoluta sinceridade da sua fé firmava o seu fervor de apostolado. 

Desde o inicio, a sua eloquência é magnética; o seu verbo flui, alteroso, envolvente, subjugante. Não convence somente; funde espírito e coração, alicia, invade, possui. 

Há quem, cortejando a popularidade, demande situações vantajosas, estabeleça influência, crie renome de que aproveitar, ponha a render os belos gestos. 

António José de Almeida não reserva nada para si, para a sua vaidade, para o seu interesse; este apóstolo e caudilho vai pelo seu caminho pregando a verdade, espalhando o bem, afirmando a coragem, combatendo e cantando, como uma torrente benéfica, sempre a acudir à sede de justiça, sem pedir salário. 

Nem sente a sua grandeza... Ela é tão do seu natural! 

A sua mocidade é um bloco de amor —de bondade, de energia, de civismo, de abnegação— toda nimbada dum clarão astral. 

Uma cabala de lentes exclui-o do professorado universitário, a que ascenderia pelas suas classificações, bem ganhas. Num relâmpago de cólera, liquida o incidente pessoal, como se fora, na sua carreira, um simples episódio sem importância; mas porque a miséria de tais lentes tenha, socialmente, um significado alarmante, no seu livro "Desafronta”, marca-os a fogo, como réprobos. Não sem inscrever, a bronze e oiro — este homem é sempre o mesmo! — como incentivo e exemplo, os nomes de três verdadeiros mestres e indefectíveis Daniel de Matos, Refoios e João Jacinto, que, ligados ao seu nome imperecível, quero hoje recordar aqui, saudosamente.

Nesse livro há um capítulo consagrado à revolta de 31 de Janeiro, no qual brilham páginas de uma magnífica e perturbante beleza. 

É isto por 1895: a derrota do Porto e a morte de José Falcão dir-se-ia terem apagado todos os estímulos de acção republicana. 

E António José de Almeida, vai aquecer o seu coração ao sol dos trópicos —concentrar luz e calor com que converta, mais tarde, em labareda, o arrefecido resquido do Ideal. 

Quanto ele moureja! E a sua bondade, a sua inteligência e o seu carácter são uma constelação, perante a qual desmaia o Cruzeiro do Sul! 

Através de longos dias de labor estrénuo, de cansados dias de exílio escaldante. António José de Almeida sente como uma imposição do Destino: - implantar a República em Portugal! 

E quando nove anos depois, desembarca em Lisboa, quais são as suas primeiras palavras? 

— Pois vamos lá então fazer a República! 

A sua voz soa como um clarim de batalha. Chama a todos, acorda a todos, sacode-os, põe-nos de pé, condu-los à fileira e leva-os atrás de si! 

E cabouca, e procura o fixe, enche de alicerces, de dedicações, de inauditos sacrifícios, e passa dias e noites, meses e anos, trabalhando, no afã ciclópico! 

Enfim - em 5 de Outubro de 1910 a República é proclamada. 

Na história contemporânea não há nada que exceda ao arranque de coragem e generosidade, este  assombroso sucesso. 

Em 5 de Outubro é todo o povo português que aclama a República. Mas dos milhões de homens que conta a Grei, quantos não deixariam de tomar por visionário este homem simples. despretensioso,  pobre, quando, ao desembarcar S. Tomé, proclamara: - Pois vamos lá então fazer a República!? 

A muitos portugueses enche de glória esse imorredoiro 5 de Outubro."

LOPES D’OLIVEIRA






1 comentário:

  1. Excelente! Conhecer a história da implementação da República e quem a "iniciou" - um PENACOVENSE.

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