A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
Acredito
ser interessante, nesse cantinho das “Cartas Brasileiras" , falar sobre a primeira
carta enviada do Brasil a Portugal. Datada no dia 1 de maio de 1500, escrita
em Seguro (Bahia- Brasil), por Pero Vaz de Caminha, escrivão de Pedro Alvares
Cabral, na viagem que resultou no “descobrimento" do Brasil, que comunica ao Rei
D.Manuel o “achado”. O documento histórico está guardado no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo (Lisboa). Para que chegasse às mãos do Rei, uma das naus da esquadra,
a capitaneada por Gaspar de Lemos, teve que retornar a Portugal.
Transcrita por
especialistas, para que possamos entendê-la,
ela assim se inicia:
“Snõr: Posto que o
Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa
Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se
achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como
eu melhor puder, ainda que para o bem contar e falar o saiba pior que todos
fazer...”
A partida de Belém (Portugal),
escreve: “como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do
dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto
da Grã-Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de
três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou
menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S.
Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira,
ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo
forte nem contrário para que tal acontecesse...E assim seguimos nosso caminho,
por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram
21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os
pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra...Neste dia, a horas de véspera,
houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e
doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos:
ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a
Terra da Vera Cruz”.
Assim descreveu sobre os homens
que aqui encontraram: “Eram pardos,
todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam
arcos com suas setas. Vinham todos rijos... Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os pousaram...A feição deles é serem pardos, maneira
de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem
nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso
têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo
furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma
mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço
e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os
molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus são
corredios, andavam tosquiados, rapados até por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de
cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui
basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas...
Acenderam-se tochas. Entraram. Mas
não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um
deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra
e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou
para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o
castiçal como se lá também houvesse prata...
Trouxeram-lhes vinho numa taça;
mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais...
...Ao domingo de Pascoela pela
manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu... E ali
com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique,
em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e
sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida
por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o Capitão a bandeira de
Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do
Evangelho...Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas
como eles...suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que
nisso não havia nenhuma vergonha.
Andamos por aí vendo a ribeira, a
qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito
altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
À segunda-feira, depois de comer,
saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos
como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco
afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e
folgavam...E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles
verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a
Vossa Alteza...
À terça-feira, depois de comer,
fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de
sessenta ou setenta sem arcos e sem nada...Depois acudiram muitos, que seriam
bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns
nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis...
À quarta-feira não fomos em terra,
porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer
levar às naus isso que cada uma podia levar...E assim não houve mais este dia
que para escrever seja...
À quinta-feira, derradeiro de
abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água...Parece-me
gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo
cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença...
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e
os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza,
se hão de fazer cristãos... Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar
a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com
pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há
aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra animal
que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui
há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam...
...E
nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E,
se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo
dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que, assim
neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for,
Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer
singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro...
Beijo
as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha
de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
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