Escreveu Hipólito Raposo (1885-1953):
“As monjas para quem Alexandre
Herculano pediu esmola, já não existem. Infinita crueldade seria que a morte as
não tivesse poupado ao destino de ver as celas da penitência convertidas em
lares onde duas dúzias de famílias foram procurar uma ilusão de abrigo.
Agora, aqueles que no amor ou
curiosidade das coisas mortas, se aventuram a transpor os montes que muralham o
vale até ao céu, sombriamente, impressiona-os de surpresa a majestade do edifício
que o roçar dos séculos tornou venerando.
A cúpula rebrilhante ergue-se no
ar sereno, e quando o sol volta, deixa projectar na encosta, a sombra alongada
por sobre a ramaria verde-negra dos pinheirais. E toda a face do mosteiro tem
no aspecto contrafeito uma opulência decaída, aquela melancólica saudade dos
solares de província, abandonados para sempre à vida simples dos abegões.
No Páteo relvoso em que virgens
em flor apeando das liteiras no braço dos pais, voltavam os olhos chorosos para
dizer adeus ao mundo, vendo apenas ao alto um recorte de céu azul, nesse Páteo dançam
agora as moças aos domingos, danças profanas que ultrajam a santidade do lugar
e escandalizariam as freiras como um pecado vivo.
Lá dentro, guarda o órgão um silêncio
doloroso: das harmonias que derramavam clarões de divindade na alma das
noviças, só as paredes e os altares vibram, como outrora na solenidade fúnebre
das profissões.
Virgens imateriais quase, erguem
na sombra os vultos brancos, entre círios que rodeiam o sacrifício da carne
estéril, a chorar pela Vida para gloria de Deus. Toda a visão se ilumina, revive
o velho Cenóbio a sua grandeza, cheira a incenso, vozes esvoaçara aflitivamente
pelas naves, como suspiros de saudades do céu ...
Em túmulos de prata, dormem há
séculos duas filhas de Sancho I e pasma a gente de ver que lhes tenham
respeitado a paz, ao lado de oleografias e alfaias milagrosamente salvas à
mesma cobiça sacrílega que desnudou a igreja e o convento.
Olhando ao fundo o coro, sumptuoso
lavor, luz fria entristecendo a face das coisas e como uma súplica sem
esperança, alevanta-se o vulto anguloso da estante do ofício, suportando ainda
o velho antifonário coberto de poeira sagrada.
Mal resistindo à deterioração de
toda a hora, o cadeirado glorioso alonga a todo o comprimento a graça das decorações,
todas animadas da celeste espiritualidade que resplandecem cada figura tutelar.
Pelas altas arcarias, emparedadas
aqui e além de fragmentos de capiteis e colunas, vai-se escoando o fumo dos
lares que tendo bafejado torpemente os azulejos dos corredores, anda a denegrir
os ornatos do coro, da mais preciosa talha de este país, porque o Governo para cobrir
o deficit e matar a dívida, arrendou a míseros paliteiros, por uma centena de
mil réis, as celas das freiras de Lorvão.
Se cada convento em Portugal é
uma página de vergonha para a história contemporânea, creio que em nenhum
haverá tão numerosos exemplos de ladroagem e desleixo como neste que tendo sido
poupado pelo vandalismo francês, é destruído e roubado em proveito dos liberais
do presente e em nome do interesse público.
Aqui, no alto da cúpula, a vista
sobe a encosta, pela extensão da verdura até ao céu, torna a descer o declive e
pára no fundo do vale, nas trepadeiras e heras da cerca, enlaçando ruínas
musgosas, entre silvas e alecrim, a romper vigorosamente dos entulhos onde erram
perfumes de cravos do outono e cintilações de azulejos migados ao sol.
Dos três claustros, ainda de pé,
alguns arcos, alternando com fustes brancos de colunas mutiladas e inertes. Debaixo
das arcarias abatidas movem-se crianças famintas, olhos vermelhos do fumo, fugindo
das celas para a agonia dos corredores onde o ar é opaco e a friagem passa rudemente,
ululando rumores de morte, sem a resistência das portas já moídas do temporal.
Mulheres de andrajos cruzam-se na
faina, outras espreitam dos buracos e encontram ainda um sorriso de motejo
pelos que lhes devassam o martírio que nem o sacrifício da Arte lhes abranda a
existência, ao menos.
Nas ruas, mocinhas de rosto
seráfico e olhar tímido, paradas de curiosidade, duvidam que alguém possa ter
interesse em peregrinar àquela ruinaria com que entestam a toda a hora, desde
que nasceram.
E assim, entre o desdém de um
povo que desejaria aniquilar um monumento que lhes humilha a pobreza dos
casebres e o fisco faminto, amolecendo mais a indiferença de um Conselho de
Monumentos Nacionais, é que se extinguirá até aos alicerces, o que ainda resta
do mais histórico mosteiro de Portugal.
Velhas Crónicas falam gravemente
de estes frades da cogula negra, cultivadores de terras bravias nos primeiros
séculos, em doações alargadas mais tarde e mantidas pelos próprios moiros já
dominando em Coimbra, até que em tempo de cristãos eles cederam casa e senhorio
à virtude das netas do primeiro Rei de Portugal.
Toda a tragédia das Rainhas
Teresa e Sancha, com a dedicação de nobres damas que nos votos acompanharam o
infortúnio daquela - eu a revivo entre matagais agrestes lá no fundo da Idade
Média portuguesa, o irmão feroz usurpando-lhes os castelos e a triste Infanta
Beringela, deserdada, na Dinamarca cinzenta, chorando com saudades do sol e da terra
que perdera.
Casa de penitência agora, viveiro
de bastardos, quatro séculos depois, no governo de Filipa d'Eça, quando as
monjas ricas e protegidas, resistiam com tantos abusos pelo prestígio da sua
beleza, ao intuito reformador de D. João III.
Sob estes claustros se exaltou o misticismo de Joana de
Albuquerque, discípula de Santa Teresa, que na alucinação histérica de cada hora,
tinha colóquios de amor com Jesus, de novo ressuscitado para a sua paixão
ardente, com beijos, ciúmes e amuos, como no mais trivial namoro português,
segundo a sua própria narrativa.
O Mosteiro de Lorvão - “antre serras onde o sol não era
visto” - a saudade de Crisfal o rememora a todo o coração enamorado; as
lembranças tristes das freiras que resolviam morrer à fome para não quebrarem a
clausura, a mendigar nos caminhos, hão de sepultar-se nas últimas ruinas que
impressionando-nos com respeito, ainda mais nos indignam pelo testemunho de uma
execranda malvadez."
In Livro de Horas de Hipólito Raposo. Coimbra. França Amado Editor. 1913
[José
Hipólito Vaz Raposo (São Vicente da Beira, 13 de Fevereiro de 1885 — Lisboa, 26 de Agosto de 1953), mais conhecido
por Hipólito Raposo, foi um advogado, escritor, historiador e político
monárquico, que se notabilizou como um dos mais destacados dirigentes do
Integralismo Lusitano.]