quarta-feira, outubro 05, 2016

O 5 de Outubro de 1976 em Penacova: sons, imagens e textos que quatro décadas não apagaram

OUÇA EM 
https://www.youtube.com/watch?v=mt-lf3UKW60

Celebravam-se então 66 anos da Implantação da República. No dia 5 de Outubro de 1976 Penacova prestava homenagem a António José de Almeida inaugurando no centro da vila um busto daquele estadista natural de Penacova.
 
Logo pela manhã, uma salva de 21 morteiros anunciou “o dia festivo que se ia viver” - escreveu o Notícias de Penacova. Às nove e meia teve lugar uma romagem ao Cemitério da Eirinha, em homenagem aos republicanos cujos restos mortais ali repousam. Pelas 12 horas, nos Paços do Concelho, foi içada a bandeira nacional com guarda de honra dos Bombeiros Voluntários. O Gestor Municipal, José Alberto Rodrigues Costa, numa breve alocução, sublinhou o significado do 5 de Outubro e recordou o modo como foi aclamada a República em Penacova. A parte da tarde viria a ser preenchida com o principal ponto do programa: a homenagem a António José de Almeida.


Edição de 9 de Outubro de 1976
do Notícias de Penacova

A vila estava em festa. Música executada pelas Filarmónicas do concelho: dos Bombeiros, Boa Vontade Lorvanense e Casa do Povo de São Pedro de Alva. Estralejar de foguetes no ar. Satisfação “resplandecendo nos rostos do povo (...) porque desde há muito tempo que este dia não era festejado com alegria, já que, durante quase meio século, o 5 de Outubro marcava uma data de oposição a um governo rejeitado pela maioria, oposição essa que veio a ter o seu terminus na madrugada de 25 de Abril de 1974” - escreveu aquele periódico local, rematando - “agora sim, agora o 5 de Outubro é dia festivo para o Povo que quer ser Livre.”
 
Pelas 16 horas procedeu-se ao descerramento do Busto (da autoria do escultor José Maria Cabral Antunes) que se encontrava coberto com a ”genuína” bandeira verde-rubra que foi içada na Rotunda no dia da Revolução vitoriosa.
 
O Governador Civil de Coimbra, Fernando Vale (que havia tomado posse na véspera) abriu a sessão, fazendo um breve referência à figura de António José de Almeida e ao alto significado daquele acto.

Seguiu-se Romero de Magalhães, Secretário de Estado da Orientação Pedagógica, em representação do Governo. Em breves, "mas vigorosas palavras", não só se referiu à justíssima homenagem como ainda à figura de António José de Almeida, terminando por lembrar o verdadeiro significado do que é a Liberdade e a República.


Romero de Magalhães no uso da palavra,
vendo-se também na foto Fernando Vale


Intervenção de José Alberto Costa, Gestor Municipal
(Arquivo pessoal de J.A.Costa)

Usou depois da palavra o Gestor municipal, José Alberto Costa, que “em seu nome pessoal e do povo do concelho deu as boas vindas a todos quantos quiseram honrar com a sua presença tão solene homenagem”. Seguiu-se a intervenção de Eduardo Ralha. Diz o Notícias de Penacova, cujas páginas temos vindo a seguir de perto – “Este orador, com aquela clarividência que lhe é peculiar, vivendo intensamente o momento nacional que foi o 5 de Outubro de 1910” fez uma explanação longa sobre o assunto e destacou o facto da personalidade de António José de Almeida “não ser apenas motivo de honra e legítimo orgulho para o concelho, mas também porque se trata mesmo de uma gloria nacional.” Terminou dizendo: “Quando assim se der sentido à trilogia: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, seremos dignos continuadores da geração de António José de Almeida e estaremos então a prestar-lhe a mais significativa das homenagens”.



Seguiu-se a intervenção do genro do homenageado, Júlio Abreu, que em representação dos familiares agradeceu “comovidamente” a homenagem que se estava a prestar e fez uma “breve resenha do que foi a vida e obra António José de Almeida, essa figura nacional que desde os seus tempos de estudante se deu de alma e coração à causa republicana, à democracia e à elevação do bom nome da Pátria Portuguesa.” Estava também presente a filha do homenageado, Maria Teresa de Almeida Queiroga de Abreu.
 
A finalizar, o Chefe da Secretaria da Câmara procedeu à leitura do Auto, lavrado em livro especial e que, no final, foi assinado pelas entidades presentes e pelo povo que o quis fazer. Foram ainda lidas algumas mensagens de "familiares ausentes e de um republicano", após o que foi guardado um minuto de silêncio por todos quantos lutaram para que a República Portuguesa fosse uma realidade viva.



“Estava assim terminada uma das mais brilhantes cerimónias realizadas no concelho” – conclui o jornal – “que desta forma prestou homenagem a um dos seus filhos que soube honrar a sua terra e Portugal.”


domingo, outubro 02, 2016

Sazes: no 118º ano de existência, Irmandade do S.S. e N.S. do Rosário afirma vitalidade



O Bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, esteve hoje em Sazes. Inaugurou as obras de restauro e ampliação da Casa Paroquial, culminando assim, dum modo solene, o meritório trabalho do Conselho Económico da Paróquia, reconhecido que é também o empenhamento de toda a freguesia.
A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Rosário esteve igualmente em destaque, dado que foi benzido o novo estandarte desta secular instituição que tem como membros da Mesa, Horácio Neves (Juíz), Sílvio Costa (Tesoureiro) e Inácio Ferreira (Escrivão).

Alvará de 1898, publicado no caderno
 que em 1907 divulgou
 o Compromisso da Irmandade
Recordemos um pouco do percurso desta Irmandade:
Até 1898 existiam em Sazes duas Irmandades: a do Santíssimo Sacramento e a de Nossa Senhora do Rosário. Nesse ano, fundiram-se e o respectivo Compromisso (Estatutos) foi aprovado pelo Governo Civil de Coimbra em 13 de Julho daquele ano.
Existem referências (anotações constantes dos Orçamentos que se encontram no Arquivo da Universidade de Coimbra) que atestam que a Irmandade de N.S. do Rosário se regia por Estatutos aprovados pelo Ordinário (Bispo) em 1799 (provisão de 8 de Junho). Quanto à Irmandade do S.S. não dispomos dessa informação. No entanto, Vitor Simões Alves, historiador, natural de Sazes,  refere na Bibliografia de um  seu trabalho sobre esta freguesia (cuja leitura recomendamos) a existência de Estatutos da Confraria do Santíssimo com data de 1750 e também da Confraria de N. Sª do Rosário com data de 1699. Seja como for, a sua antiguidade é um facto.
Com o advento da República, esta Irmandade, erecta em 1898,  viu-se obrigada a reformular os seus estatutos. Curiosamente o alvará que aprova esse aditamento está assinado por um penacovense, na altura (1915) Governador Civil, o Juíz de Direito, Luís Duarte Sereno. Não dispomos desses estatutos, mas tudo leva a supor que vêm na sequência da Lei de Separação e das convulsões político-religiosas que se viveram em Portugal.
Vejamos um pouco da história geral das Irmandades em Portugal:
Foi no Concílio de Trento (1545-1563) que foram definidas as competências das confrarias, que entretanto se estavam a difundir pelo mundo católico. O culto eucarístico, foi então incrementado com a reforma católica deste concílio Tridentino, influenciando a expansão das




confrarias do Santíssimo Sacramento.O modelo, aprovado pelo Papa Paulo III em 1537, promovia o culto eucarístico, zelo pelos sacrários, visita aos enfermos, acompanhamento do sagrado Viático, realização da festa em honra do Santíssimo, celebração de missas por intenção dos irmãos, fomento da oração diária. Entretanto existiam já outras Irmandades: das Almas, de Nossa Senhora do Rosário…
Com o advento da Época Moderna, o poder real começou  a exercer um maior controlo sobre as irmandades: aprovando os seus estatutos e fiscalizando as suas contas; estas instituições dependiam ainda de autorização superior para o pedido de empréstimos ou aceitação de legados pios.
 Após a mudança política em Portugal operada com a revolução liberal, a autoridade da coroa sobre as irmandades continuou a ser exercida praticamente nos mesmos termos.
Com a implantação da República, as irmandades sentiram dificuldades em assegurar o seu dinamismo e a situação política vivida, condicionou fortemente a ação pastoral do clero e dos fiéis. O novo regime avançou com o plano de substituir as Irmandades por associações cultuais, cujos preceitos organizativos eram impostos pelo poder político. No mínimo, a esses novos poderes ficaram, diríamos, completamente submetidas.
Algumas harmonizaram os estatutos, ao abrigo do artigo 17º da Lei da Separação, transformando-se em associações cultuais. Outras reformaram os seus compromissos ao abrigo do artigo 38º da mesma lei.  Entretanto, com o esbater dos anos e com as alterações políticas, ainda ao longo da I República, a situação tendeu a normalizar-se.
Oportunamente voltaremos ao assunto para desenvolver mais alguns pontos do historial e da orgânica desta Irmandade do Santíssimo e Nossa Senhora do Rosário de Sazes: pessoas, orçamentos da segunda metade do século XIX, normas do Compromisso, e outros pormenores.

Estatutos de 1898, impressos
 num pequeno livro com data de 1907

Diploma em formato A3 

terça-feira, setembro 27, 2016

AINDA A 3ª INVASÃO FRANCESA: o sofrimento das populações nas proximidades de Arganil

Em complemento dos textos que publicámos recentemente sobre algumas das repercussões da 3ª invasão francesa no concelho de Penacova, apresentamos hoje o relato de um padre de Arganil que nos dá uma imagem do terror que se viveu na Beira Serra. Arganil, Poiares, Góis, Lousã foram concelhos muito martirizados. Entre nós, e como já vimos, foram também as freguesias do Alto Concelho, mais próximas daquelas zonas, que mais sofreram, bem como as aldeias da freguesia de Penacova vizinhas de Poiares. 
Que seja do nosso conhecimento ainda não existe nenhum estudo sobre o concelho de Penacova. Os nossos apontamentos resultaram da consulta dos relatos feitos pela mão dos  párocos e/ou arciprestes, em 1811, e  que se encontram disponíveis no Arquivo da Universidade. Sobre a região que vai de Pombal até Gouveia, já se debruçou a historiadora da Universidade de Coimbra, Maria Antónia Lopes.  É desta investigadora o texto que passamos a transcrever:
Mapa publicado no estudo citado de Maria Antónia Lopes

“Em Março de 1811 os Franceses iniciaram a retirada. Desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, levaram as atrocidades ao último grau, apanhando as populações em fuga, a quem torturavam e matavam para lhes extorquir víveres. Coimbra foi poupada, pois Massena não conseguiu entrar na cidade. Conduziu então os seus homens para Espanha pela margem sul do rio Mondego, onde a carnificina prosseguiu. (…) Por esta altura, a 23 de Março de 1811, o padre Manuel Gomes Nogueira, em carta ao seu irmão José Acúrsio das Neves, relata-lhe o que tinham sofrido na zona de Arganil às mãos dos invasores. A citação é longa, mas justifica-se:

Os primeiros que nos acometeram, foi em 14 de Fevereiro, aparecendo de repente em Góis uma divisão [...] e somente junto da vila se deu notícia deles, e se não fosse um homem que os viu entravam sem serem vistos.
No pequeno espaço que mediou até eles se apresentarem defronte da terra, se ajuntaram algumas espingardas que de dentro da vila fizeram fogo para além da ponte e eles se retiraram e deixaram 7 ou 8 bois que os de Góis lhes tomaram e logo puseram a salvo para a freguesia de Cadafaz. Mas os malditos se foram unir com outros que tinham ficado mais atrasados, entraram na vila e fizeram as barbaridades do costume [...].
 No dia 17 do mesmo Fevereiro estiveram também a pontos de entrar em Arganil, sem serem pressentidos, pois tendo-se retirado a 15 de Góis para Serpins, com imensos gados e roubos de Góis, Várzea [de Góis, actual Vila Nova do Ceira] e toda a Serra de Santa Quitéria, estava Arganil mais sossegada, mas no dito dia 17, que era domingo, de manhã ao sair da primeira missa, chegou a noticia de que já vinham na Ribeira da Aveia (vê agora o perigo que houve, se entravam enquanto se estava à primeira missa). Ninguém se persuadia de tal por ser voz só de um homem, mas veio segundo, que confirmou o primeiro, e então se pôs tudo em reboliço e fugida, e eles entraram de repente, como galgos atrás da gente, e imediatamente subiram ao Casal [da] Nogueira e se espalharam pelos montes, vales, pinhais, mataram 5 pessoas e feriram muitas [...].
 Estiveram neste dia em Arganil somente 2 para 3 horas; passaram a Celavisa, onde mataram e fizeram o mesmo que em Arganil [...].
No dia 12 de Março tornaram a entrar os Franceses em Arganil. No dia 14 subiram à serra no lugar da Aveleira [...] onde apanharam muitos gados, vieram sobre Adela e fizeram cerco a toda a ribeira de Celavisa, onde não ficou moita que não fosse mexida […].
Estiveram sempre passando Franceses todos os dias seguintes, ora mais ora menos, até que no dia 17 foi a maior enchente de cavalaria e infantaria, e então foi a destruição de Arganil. Mataram 10 pessoas que ainda apanharam”. [...]
“No dia 19 logo de manhã me constou aqui da chegada das nossas tropas [...]. Desci logo à vila [Arganil] e fui dos primeiros que lá entrámos depois dos Franceses. Corri as casas dos nossos amigos e as igrejas todas e causava horror ver semelhante confusão: as portas quebradas, as casas não pareciam senão uma confusão, trastes despedaçados, tudo revolto, nada em seu lugar, as lojas cavadas, quantos esconderijos se tinham feito para cada um refugiar o que podia, tudo descoberto, pelas ruas louças quebradas, animais mortos, uns inteiros, outros em pedaços, de outros só as entranhas com fétido por toda a parte.
Parti logo para o Sarzedo e por toda a estrada abaixo eram os mesmos vestígios de animais mortos” [... Em] Sarzedo fizeram muita carnagem, porque os habitantes como lá não tinham ido Franceses não se acautelaram a si nem aos seus gados; e, portanto, perderam tudo e morreu muita gente: o número não o posso ainda dizer, mas consta-me que morreram famílias inteiras”. “
... Agora o que mais deve lamentar-se é a fome, porque não só os pobres, mas também os ricos não têm coisa alguma que comam, porque por onde passou a tormenta nada absolutamente ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de hortaliças. E se alguma coisa escapou ao inimigo, o limpou a nossa tropa e assim mesmo os pobres soldados vão mortos de fome.”

FONTE: Maria Antónia Lopes, Sofrimentos das populações na terceira invasão francesa. De Gouveia a Pombal *    (Publicado como capítulo in O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III - 2010-2011), Lisboa/Parede, Exército Português/Tribuna da História, 2011, pp. 299-323). 


sábado, setembro 24, 2016

A 3ª INVASÃO NO CONCELHO DE PENACOVA (III):o sofrimento das populações massacradas, aterrorizadas e espoliadas

Temos vindo a fazer referência aos relatórios elaborados pelos párocos e arciprestes da diocese de Coimbra,[(I) e (II)] dando conta dos “Estragos, incêndios e mortes causados pelo exército na invasão de 1810- 1811”, documentos que se encontram no Arquivo da Universidade de Coimbra.
Recorde-se que, na época, as paróquias que hoje pertencem ao concelho de Penacova estavam integradas nos arciprestados de Sinde, Arganil e Mortágua. Analisámos já as freguesias de Farinha Podre, S. Paio de Farinha Podre e Travanca de Farinha Podre. Vamos agora fazer alusão às freguesias de Oliveira do Cunhedo, Paradela, Friúmes, Penacova, Lorvão, Sazes, Carvalho e Figueira de Lorvão.

Em Oliveira, o Padre Miguel Rodrigues Marques da Silva refere que a incursão dos invasores, ocorreu tal como em Travanca, por duas vezes:  em Setembro de 1810 e em Março de 1811. O relato é sucinto mas ficamos a saber que também aqui houve mortes: 3 homens e 1 mulher. “Roubaram quanto acharam” na igreja, nas capelas e nas casas da freguesia: alfaias religiosas, roupas, gado, “grãos”… As casas principais foram incendiadas. Estima-se que os prejuízos ao nível da freguesia foram de 30 000 cruzados.
Em Paradela, os estragos na igreja foram significativos. Destruíram e roubaram paramentos, “quebraram a cabeça ao Menino da N. Sª do Rosário” e “escavacaram o Trono, o Altar-Mor e o Sacrário”. A residência paroquial e anexos foram queimados “com quanto tinha dentro delas”- escreve  o Cura José Joaquim de Oliveira e Silva. Na sede da freguesia queimaram 16 casas, na Cortiça 4 e uma na Sobreira. O fogo consumiu também “oliveiras e castanheiros, pipas, dornas, balceiros, arcas, mesas, tamboretes, cadeiras e todos os mais trastes”. Queimaram ainda, todos os livros de Assentos, Pastorais e outros documentos.
Roubaram “todo o grão, vinho e azeite”, roupas e hortas. “Estragaram as vinhas e searas de trigo, centeio e cevada”. Também “levaram a maior parte dos gados, quando já iam de fugida”.
Os prejuízos foram estimados em 100 000 cruzados.
Assassinaram, em Paradela, Manuel Carvalhinho, com cerca de 80 anos, e também Isabel Henriques, com a mesma idade. Na Sobreira mataram António Silveira com 40 anos e ainda Isabel de Lemos, viúva, com 50 anos. Ainda apanharam algumas mulheres “que logo lhes escaparam “ mas presume-se que todas aquelas “que tiveram a desgraça de cair nas mãos do inimigo” tenham sido violadas.
Na freguesia vizinha de Friúmes a “Relação dos Stragos dos Inmigos” foi elaborada pelo pároco José da Silva Pereira em 24 de Julho de 1811.
Foram cerca de 15 as casas incendiadas. Segue-se a enumeração dos nomes dos proprietários. Queimadas também a Igreja e a Capela do Espírito Santo de Vale do Tronco, que acabou por ser demolida. Da Igreja roubaram paramentos e o “Cálix” da Confraria, bem como “a sua patena”.
Os “indivíduos açacinados pelo Inmigo” foram 10: 6 homens e 4 mulheres. Os nomes estão lá. Outros escaparam por pouco: Luís António levou um tiro na cara e João dos Reis “foi enforcado na Igreja, escapando milagrosamente à morte.” 
Os roubos foram inumeráveis: 600 cabeças de gado, 800 alqueires de milho, trigo, centeio e feijão. Cerca de 10 pipas de vinho e 60 alqueires de azeite.
Os elementos sobre a freguesia de Penacova constam de um o caderno que contém 19 folhas. É também neste documento, compilado na Mealhada pelo respectivo arcipreste Padre Joaquim Lebre Teixeira, que encontramos os dados relativos  às freguesias de Lorvão, Sazes, Carvalho e Figueira de Lorvão.
Nem toda a freguesia de Penacova foi atingida: Felgar, Travasso, Sanguinho, Ferradosa, Hospital, Balteiro, Riba de Baixo e Riba de Cima foram alguns dos lugares mais afectados. O Felgar terá mesmo sido completamente incendiado.
Os roubos foram pesados. Gado, porcos, fruta. Na capela do Travasso “furtaram o cálice e todos os ornamentos”, bem como na capela de Riba de Cima. Referem-se 8 mortos: cinco homens e três mulheres.
Relativamente a Lorvão o texto é curto. Fala-se em 4 homens assassinados. Os roubos não terão sido muitos e foram principalmente “roubos sacrílegos”. Refere-se o Roxo e o Caneiro onde foram roubados paramentos, cálices, patenas e óleos.
Sazes foi a única freguesia onde não se registaram ocorrências. O arcipreste de Mortágua limitou-se a escrever: “Nesta freguesia não entraram franceses alguns.”
Figueira de Lorvão também “foi menos atacada”. Apesar disso, mataram 2 homens e 1 mulher, mais precisamente, António Francisco e F. Henriques dos Santos. Ana Marques de Alagoa com 45 anos também foi assassinada.
Já em Carvalho o panorama é o oposto: “Esta freguesia foi totalmente destruída em razão do ataque do Bussaco principalmente aqueles lugares mais próximos da montanha do Bussaco em que estava acampada a ala segunda do exército continuamente batalhando.”
Refere-se a morte de um homem de 50 anos.  Recorde-se que estamos a falar da população civil, muitas vezes velha e doente,  que foi atacada fora do contexto de combate. Quanto a roubos “tudo se foi”- escreve o relator. Seixo, Soalhal, Pendurada, Lourinhal e Cerquedo foram completamente incendiados.
Almaça não pertence nem nunca pertenceu ao concelho de Penacova. No entanto, dado que foi um dos locais em que - na fase da retirada dos franceses -  se refugiram algumas populações da margem esquerda achamos pertinente frisar que o relatório final, redigido pelo Bispado de Coimbra, em Dezembro de 1811, refere isso mesmo: “ Em Almassa, onde o povo d’alli, e o das vizinhanças se acoutou, reputando-se n’hum lugar d’asylo, por muito cercado de serranias e matos e desafrontado de estradas, foi todo saqueado”. O relato do arcipreste confirma que “roubaram totalmente” esta freguesia e acrescenta que mataram 1 homem de idade de trinta anos, que roubaram a âmbula dos Santos Óleos, lançando tudo por terra e que “levaram o livro das Posturas”.
“À fome e aos assassínios, e acompanhando as vagas de desalojados e de órfãos, sucederam-se as epidemias. Regressadas a suas casas, as populações encontraram a destruição e os campos estéreis. A escassez de géneros tornou-se aflitiva e os preços dispararam. Só muito lentamente a situação se normalizou.” – escreveu Maria Antónia Lopes na obra O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III - 2010-2011).
É a mesma investigadora que acrescenta que “nunca a população civil portuguesa vivera um período tão trágico. Nunca mais, felizmente, o voltou a viver. Por isso, as invasões francesas, absolutamente traumáticas, persistem na memória popular." Em Penacova a exaltação da vitória conseguida na Batalha do Bussaco poderá ofuscar, naturalmente (?), o sofrimento das "vítimas mais humildes e ignoradas." Fica o nosso contributo para que isso não aconteça.







A TERCEIRA INVASÃO FRANCESA NAS TERRAS DE FARINHA PODRE (II)


Depois de termos referido com algum pormenor aquilo que se passou em Farinha Podre (actual S. Pedro de Alva) e em S. Paio de Farinha Podre (actual S. Paio do Mondego), damos agora continuidade a este assunto, trazendo à memória dos leitores as horas trágicas que também a freguesia de Travanca de Farinha Podre viveu, em parte há precisamente 205 anos feitos hoje, e depois, pela segunda vez, no início da Primavera seguinte.

De acordo com o relato do Prior António Paulino Coelho de Mesquita, datado de 13 de Abril de 1811,  os franceses entraram duas vezes em Travanca: nas vésperas da Batalha do Bussaco (Setembro de 1810) e em Março de 1811.
Da primeira vez, entraram na igreja, “arrancaram as pedras de Ara, quebraram uma, lançaram todas as demais pelo pavimento, assim como todas as toalhas e paramentos”. Nas capelas não entraram. Nas casas poucos estragos e roubos fizeram: apenas alguns sacos de grão. No entanto, é referida a morte de dois homens. Um seria de Venda Nova de Cima (freguesia de Farinha Podre) e “outro não se sabe de onde”.
Em Março, entre 16 e 18, também assaltaram a igreja, tirando galões a todas as vestimentas e capas. Além disso tiraram as relíquias a uma pedra de Ara, “arrombaram o sacrário pela parte de trás e tiraram o forro e cortinas”.
Nos anexos da igreja “arrombaram a porta do armazém de azeite donde tiraram algum”. Na residência paroquial “quebraram e roubaram tudo o que apanharam”. Na freguesia queimaram sete das melhores “moradas de casa”, com prejuízos de “mais de vinte mil cruzados”.
Em Lagares mataram Manuel Rodrigues, casado, “sapateiro”, já passado dos 80 anos. Um outro foi vítima de várias cutiladas. Aprisionaram uma mulher casada “a qual deixaram”. Na tabela feita pelo Arcipreste de Sinde lá aparece registada na coluna das mulheres violadas”... 

sexta-feira, setembro 23, 2016

A TERCEIRA INVASÃO FRANCESA NAS TERRAS DE FARINHA PODRE (I)

Conta-se em S. Pedro de Alva que apenas um “coxo” pereceu às mãos dos Franceses aquando da 3ª Invasão. Todos os habitantes se teriam refugiado nas terras da margem direita do Mondego, deixando as casas vazias e os valores bem escondidos. Também se diz que só uma habitação foi incendiada na sede de freguesia.
No entanto, a fazer fé no relatório que o Arcipreste de Sinde redigiu em 9 de Maio de 1811 (em cumprimento do Aviso Régio de 25 de Março), na freguesia de Farinha Podre não foi assassinada apenas uma pessoa, mas vinte e cinco: 16 homens e 9 mulheres. Também as casas destruídas pelo fogo foram mais do que uma: em toda a freguesia terão sido trinta.



Temos à nossa frente uma cópia da relação “ou mapa fiel e resumido”, elaborado por aquele padre, que também era pároco de Midões, com vários quadros e colunas, mencionando os estragos, os incêndios, os mortos, o número de mulheres violadas… Dados que foram recolhidos nas 20 freguesias do arciprestado (do qual faziam também parte Paradela, Farinha Podre, Oliveira do Cunhedo, Travanca de Farinha Podre e S. Paio de Farinha Podre).
Em Farinha Podre sabemos, inclusivamente, o nome das pessoas assassinadas. Na sede da freguesia foram assassinados 3 homens e 3 mulheres e queimadas 11 casas.  Em Hombres, 5 homens e 3 mulheres e 10 casas destruídas.  Em Laborins, 2 homens mortos. No Carvalhal, 1 homem. Na Parada, 2 homens e 1 mulher. Em Vale da Vinha, 1 mulher. Na Ribeira, 2 homens. Na Cruz do Soito, 1 homem. No Silveirinho, 1 mulher. No cômputo dos 25 mortos nesta freguesia não se incluem os que acabaram por morrer mais tarde em virtude dos maus tratos sofridos.
Imaginem-se as horas de angústia e de terror em S. Pedro, em S. Paio e em toda esta região. Não temos a indicação das datas em que ocorreram estes trágicos acontecimentos mas estamos em crer que a maior parte deles se verificaram já nos inícios de 1811 quando as tropas francesas, uma vez travadas nas Linhas de Torres, batiam em retirada pela margem esquerda do Mondego, ao contrário do que haviam feito em Setembro de 1810. No entanto, sabemos que os franceses andaram por Travanca nas vésperas da batalha do Bussaco, entre os dias 22 e 24 de Setembro. Voltariam depois entre 16 e 18 de Março.
Em S. Paio de Farinha Podre, o pároco José Maria Sobral Coelho e Sampaio registou, muito resumidamente, “as atrocidades que fizeram os franceses”. O documento tem a data de 24 de Abril de 1811. Incendiaram a igreja, roubaram e destruíram alfaias litúrgicas, imagens e outros objectos de culto. Queimaram oito casas e assassinaram 3 indivíduos do sexo masculino (entre os quais uma criança) e 3 mulheres. Ao contrário do relatório de Farinha Podre, aqui não são referidos os nomes das vítimas.
É a historiadora Maria Antónia Lopes que nos recorda que na diocese de Coimbra só em cerca de 10% das paróquias não entrou “o inimigo”. Calcula-se que morreram violentamente às mãos dos soldados franceses perto de 3 000 pessoas e muitos dos que escaparam foram vítimas da miséria, da fome e da doença.
Toda a região da Beira Serra foi duramente afectada naquela Primavera de 1811.  É paradigmático um dos episódios que o pároco de Arganil descreve, referindo-se à morte de um colega de 76 anos: “depois de ser atormentado cruelmente no campo, aonde foi achado, daí foi trazido com uma corda ao pescoço para sua casa, aonde depois de lhe[s] ter dado todo o dinheiro que tinha escondido em várias partes, o mataram à espada e baioneta, castrando-o sobre a cama e levando em um barrete eclesiástico as suas partes pudendas”.
Oportunamente - com base nos estudos da investigadora Maria Antónia Lopes - daremos conta de mais pormenores da carta que a 23 de Março de 1811 o padre Manuel Gomes Nogueira dirigiu a seu irmão José Acúrsio das Neves. Também num próximo artigo faremos referência – no dizer do Arcipreste de Sinde - aos “crimes e atrocidades cometidas” nas restantes freguesias que hoje fazem parte do concelho de Penacova “por estes monstros da imoralidade, da impiedade e da desumanidade, autorizados e comandados por chefes incapazes de pelejar com honra e capazes de fazer guerra só à fraqueza”.






terça-feira, setembro 13, 2016

Notas para a história do monte da Srª da Guia

Capela da Srª da Guia - gravura de 1908

“Ainda se vislumbram, posto que com alguma dificuldade, os vestígios do antigo castelo que possuía [Penacova] cujo lugar era num elevado oiteiro que lhe fica ao fundo e que hoje é coroado com uma, ainda que pequena, contudo sumptuosa, capela dedicada à Senhora da Guia donde não somente é dominada a vila, mas se goza de vista encantadora do tortuoso Mondego, com mais de uma légua de distância. É este um dos lugares mais concorridos, com parcialidade, na estação do estio, depois que a sua superfície foi ricamente aplanada graças ao zelo e patriotismo de alguns ilustres cavalheiros que este ano deram complemento a esta empresa de reconhecida necessidade.” – escrevia Alves Mendes em 1857.
É também este penacovense, na altura seminarista (seria ordenado em 1861) que nas suas crónicas “Umas Férias em Penacova” recorda o projecto (nunca concluído) de se construir uma capela dedicada a S. Pedro naquele local:    
“Um penacovense ido para o Brasil foi em extremo favorecido pela fortuna e por sua morte deixou avultada quantia para, na sua pátria, ser construído um templo a S. Pedro, a quem consagrava especial devoção.
Foi esta entregue ao pároco da vila, D. João da Cunha Souto Maior, natural de Lisboa e parente em grau não remoto do notável D. Frei Gaspar Salazar Moscoso a cujo cuidado estavam entregues os senhores de Palhavã e reformador dos Crúzios.
Escolhido pelo sobredito Prior a alta eminência do castelo para semelhante edificação, lhe deu princípio com tão largas dimensões, que prometia aos tempos futuros um edifício monumental. Não sucedeu, porém, assim: os trabalhos afinharam e a obra não passou de quatro paredes.
Monte da Srª da Guia
numa fotografia dos inícios do século XX
Era Souto Maior duma ardentíssima caridade. Todos os seus bens foram dados aos pobres e tal era a sua afabilidade que extremosamente se tornou querido e de todos estimado: não tinha um só inimigo! Numa palavra aquele para quem o Criador foi tão pródigo no aumento de riquezas acabou a vida na mais lastimosa miséria, sustentado à custa de alguns penacovenses.
Longo e ate impróprio seria o relatar aqui da sua biografia. Basta que digamos que com admiração dele se conta – que era tal a sua caridade que chegou a dar a própria camisa!!!
Desta forma consumiu o virtuoso Prior a conta aplicada para aquela obra devota, ficando em simples começo, até que em 1783 o Dr. Tomás Patrício dos Santos edificou entre duas gigantescas muralhas da antiga era, a rica e elegante capela que dedicou à Senhora da Guia.”

Setembro de 1857


António Alves Mendes da Silva Ribeiro

sábado, setembro 10, 2016

Pisão: vestígios de um quotidiano perdido na voracidade do tempo

Fotografia de Varela Pècurto (início da década de 80 do séc. XX)

O Pisão de Lorvão constitui um  interessante conjunto arquitectónico rural. Possui um Lagar de Azeite com duas varas. Uma delas é em pinheiro manso e será ainda do “tempo das Freiras” e a outra, colocada em 1945, resultou de um  eucalipto cortado na propriedade agro-florestal com 10 hectares.  Este lagar terá funcionado pela  última vez há cerca de trinta e cinco anos.
Inclui também dois Moinhos de Água, um de rodízio e outro uma azenha. São visíveis ainda as ruínas de um Forno de Cal e de uma Casa de Tipologia Rural.
Em 2010 foi  classificado como Conjunto de Interesse Público (CIP). No preâmbulo da Portaria n.º 637/2010, DR, 2.ª série, n.º 164, de 24 de Agosto refere-se que “este conjunto apresenta uma notável coesão, unidade e integração no sítio e na paisagem, que se encontra preservada.”
Aí é salientado também “o particular significado a nível histórico-social e etno-tecnológico local deste conjunto.” Em 2010, e segundo se refere na citada Portaria, o Lagar de Azeite “possui ainda todo o equipamento essencial a um lagar de varas, sendo um exemplar tipológico que se salienta pela sua originalidade e escassez”.
O site da Direcção- Geral do Património Cultural contempla também o Lagar do Pisão. E diz-se aí o seguinte: “De entre a multiplicidade de edifícios erguidos ao longo dos tempos, sobressai(…) o Mosteiro de Lorvão. Mas destacam-se, de igual modo, outras estruturas, as quais, embora despojadas da monumentalidade que lhe é característica, nem por isso são menos importantes para o conhecimento do ser e do sentir das gentes locais, materializados em vestígios de um quotidiano já esbatido perante a voracidade do tempo e, sobretudo, evolução tecnológica.
Este  "conjunto arquitectónico” teve obviamente estreitas  relações com o Mosteiro:  “Uma cercania que não era, de facto, fortuita, pois, apesar de evocativos de um tempo moldado pelas exigências de uma vida dependente da agricultura, os engenhos utilizados destinavam-se, na sua expressiva maioria, a suprir algumas das necessidades diárias dos residentes no Mosteiro.”

A par da cal produzia-se azeite de alta qualidade num lagar de varas, e ainda linho pisoado. Daí virá o nome "Pisão" dado a este local.



+ foto AQUI

Alves Mendes: um ilustre [quase] desconhecido na terra que o viu nascer


Alves Mendes é tido por muitos como uma “figura eminente das letras portuguesas”. No entanto, este penacovense continua a ser um “ilustre desconhecido” na terra que o viu nascer. Dele se sabe o nome e pouco mais. Um exemplo? O site da Câmara tem um espaço designado por “Gente com História”. Sobre Alves Mendes nem uma palavra!  
À sua “pátria”, onde tinha casa e propriedades, vinha com bastante frequência convivendo abertamente com os seus amigos e conterrâneos como atestam inúmeros testemunhos escritos de pessoas que com ele conviveram. 
Em 1902, a 4 de Janeiro, a Câmara de Penacova, presidida pelo Dr. Daniel da Silva, prestou-lhe homenagem, atribuindo o seu nome à artéria que ia “da casa de José Leitão até à da D. Maria Altina”. A “Rua Arcediago Alves Mendes” ainda hoje existe. Não teve, felizmente,  o azar do Dr. Paiva Pita, que não se sabe porquê viu desaparecer da toponímia da vila o seu nome. O mesmo aconteceu ao Largo Dr. Joaquim Correia que também “saiu do mapa”.
Existem muitos  escritos sobre Alves Mendes (note-se que em qualquer boa enciclopédia em formato papel consta a sua biografia). Transcrevemos do jornal Voz Portucalense o artigo “Alves Mendes e a Capela das Almas” assinado por Alexandrino Brochado e que traça uma síntese biográfica deste penacovense ilustre:

 “Alves Mendes é uma figura eminente das letras portuguesas. Nasceu em Penacova e morreu em 4 de Julho de 1904, no Porto. Está sepultado no cemitério do Prado do Repouso.
Formado em Teologia, foi cónego da Sé do Porto e professor do Seminário Maior desta cidade. A sua fama de orador sagrado firmou-se principalmente desde que, em Lisboa pronunciou a oração fúnebre de Alexandre Herculano, por ocasião da transladação dos restos mortais do grande historiador para os Jerónimos. Pregou depois em idênticas solenidades, comemorando a morte de vultos insignes como Fontes Pereira de Melo e Barros Gomes. Uma das suas orações mais notáveis foi pronunciada no Mosteiro da Batalha, quando para ali se fez a transladação dos restos mortais do príncipe de Avis. 

Além dos discursos Alves Mendes publicou um livro de viagens, "Itália", que originou uma polémica, tendo sido acusado de plagiário de E. Castelar, escritor espanhol que publicou "Recuerdos de Itália". Em discussão acesa com Almeida Silvano sobre filosofia tomista, escreveu: "Um Quadrúpede à Desfilada" e "Tomista ou Tolista", obras que, no género, são verdadeiramente notáveis pelo vigor e sarcasmo da linguagem. Além de orador sagrado, Alves Mendes foi um burilador de frases e um joalheiro de linguagem. Basta atentar nas frases escritas no seu túmulo, no Cemitério do Repouso. 

Pois este escritor notável está duplamente ligado à Rua de Santa Catarina: pelo casamento de Camilo aqui realizado e porque desempenhou o lugar de Provedor da Irmandade das Almas, erecta na Capela das Almas, da mesma rua. Lê-se no Livro das Actas da Capela das Almas que "No dia 8 de Maio de 1899, pelas oito horas da noite, foi eleito Provedor o Doutor Cónego Alves Mendes". Em 21 de Maio de 1900 volta a ser eleito para o triénio de 1900-1902, o Cónego António Alves Mendes da Silva Ribeiro, Arcediago d'Oliveira (a primeira vez que aparece este título honorífico). Em 2 de Maio de 1903, o Cónego Doutor Alves Mendes, Arcediago d'Oliveira, é reeleito, pela última vez, Provedor da Irmandade das Almas. E a partir deste momento não aparece mais qualquer alusão ao notável orador sacro que faleceu em 4 de Julho de 1904. 
Pareceu-nos que uma referência a este escritor e orador sacro, célebre no seu tempo, não ficaria mal, já que o tempo vai diluindo a memória de todos, mesmo dos vultos mais eminentes. O tempo atreve-se a tudo.”

quinta-feira, setembro 08, 2016

A Senhora do Mont'Alto e as Pedras Milagrosas

Capela do Mont'Alto - Penacova
[PenacovaOnline_2016]
Houve mesmo quem defendesse que o feriado municipal deveria ser no dia 8 de Setembro dada a importância que a romaria do Mont'Alto assume para as gentes de Penacova. Tal pretensão não vingou mas isso não impede que muitos continuem a subir o monte sobranceiro à vila,  onde apesar de escondida pela invasão dos eucaliptos se encontra a muito antiga capela que acolhe a imagem de Nossa Senhora da Natividade.
Muitos autores têm vindo, ao longo dos tempos, a escrever sobre este santuário mariano. Em 1711, Frei Agostinho de Santa Maria e, mais perto de nós, o Professor Nelson Correia Borges. Do livro Coimbra e Região (Novos Guias de Portugal, da Editorial Presença):

“A capelinha é um encanto na sua singeleza de ermidinha bem portuguesa. Antecede-a um alpendre de seis colunas toscanas do século XVII e em toda a volta tem um banco corrido, para os romeiros se sentarem a saborear os farnéis.” 

De acordo com as informações paroquiais de 1721, nesse tempo «os moradores da Vila de Botão e os de S. João de Figueira vinham todos os anos em procissão à Senhora do Mont’Alto em cumprimento de um voto antiquíssimo, trazendo as suas ofertas em tabuleiros à cabeça de donzelas."

Diz-nos ainda este historiador penacovense que, nos referidos documentos de 1721, podemos ler o seguinte:

  “ao pé do monte, contam os naturais, nascem umas pedras redondas como seixos, as quais partidas, se lhe acha dentro outra pedrinha do tamanho e redondeza de uma noz, que com pouca violência se desfaz em pó, e este aplicado à enfermidade da asma é singular remédio e tanto que por singular é único de muitas partes deste Reino são procuradas, e como se fossem milagrosas saram os asmáticos e ficam de novo livres." 

Como se aplicava o pó não o diz o Padre informador…mas quem subir ao santuário pelos caminhos tortuosos pode encontrar ainda alguns dos tais seixos…” - escrevia Nelson Correia Borges em 1987 na referida obra, acrescentando:

“Hoje a festa continua a realizar-se (…) mas os romeiros já não vêm de longe, nem cantam no terreiro da capela as modas de outros tempos:


A Senhora do Mont’Alto
Mandou-me agora chamar.
Que tinha o seu manto roto,
Quer que eu lho vá remendar!

A senhora do Mont’Alto
Lá vai pelo monte acima,
Leva a cestinha no braço
Para fazer a vindima.

Ó Senhora do Mont’Alto,
eu não volto à vossa festa,
Que me tirais a merenda
E mai-la hora da sesta!



terça-feira, agosto 30, 2016

Umas Férias em Penacova (IV): o Castelo, a Srª da Guia, o Palácio Ducal e o casamento de Vasco da Gama nesta vila...

“Umas Férias em Penacova” – assim se intitulou um conjunto de crónicas que Alves Mendes publicou no Verão de 1857. No texto de hoje, somos confrontados com alguns dados históricos [recordados no jornal O Conimbricense há 160 anos] relativos a Penacova, alguns deles provavelmente desconhecidos da maioria dos penacovenses e perdidos na memória dos tempos… 

"Entretenhamo-nos por um pouco com dar a nossos leitores ainda que a largos traços uma notícia exacta de minha veneranda pátria.
A sua posição no cimo de um monte escarpado cujas costas se acham povoadas de gigantescas e copadas oliveiras, é sem dúvida de um aspecto admirável e penetrante, e o seu clima belo e excelente torna de duplo merecimento esta vila de remota antiguidade.
(…) Sobranceira a esta vila se acha o Monte Alto, que dela rouba o nome e que pelo airoso esmalte das árvores que o ornam acabam de completar este Éden terreal. Existem nesta vila os Paços do Duque de Cadaval, que em tempos antigos pertenciam aos Condes de Odemira, que deles eram donatários. Este excelente edifício tinha uma espaçosa capela onde com toda a devoção outrora se prestava culto à divindade e em que se veneravam ricas imagens, das quais hoje algumas pertencem à Paroquial e outras a pessoas devotas, que as souberam alcançar. Acha-se hoje plenamente arruinada, conservando-se apenas o altar-mor e as paredes colossais que ainda disputam aos séculos a sua duração e servindo o pavimento para usos profanos!
Ainda se discriminam, posto que com alguma dificuldade, os vestígios do antigo castelo que possuía, cujo lugar era num elevado oiteiro que lhe fica ao fundo, e que hoje é coroado com uma, ainda que pequena, contudo sumptuosa, capela dedicada à Senhora da Guia, donde não somente é dominada a vila, mas se goza da vista encantadora do tortuoso Mondego em mais de uma légua de distância. (…)
Tem Penacova uma igreja paroquial cuja padroeira é N. S. da Assumpção: é ela duma arquitectura simples, porém majestosa. (…) entre as muitas e milagrosas imagens deste templo é notavelmente conhecida a do Senhor dos Passos, que antigamente pertencia aos Paços do Duque de Cadaval.
(…) Também Penacova se vangloria de terem entrado no número dos seus Vereadores, D. Vasco da Gama com seu irmão Paulo da Gama, como muito bem se colige de suas assinaturas que hoje existem nos antigos documentos da Câmara. Quer enfim a tradição ensinar, que o célebre descobridor das Índias contraira nesta vila o seu casamento!
De resto nada há digno de menção."

Penacova, 2 de Setembro de 1857

António Alves Mendes da Silva Ribeiro
__________

Em notas de rodapé, Alves Mendes desenvolve neste texto a origem etimológica do topónimo Penacova. A propósito da capela da Srª da Guia fala da intenção que terá havido em tempos de se construir ali um templo dedicado a S. Pedro a expensas de um penacovense emigrado no Brasil. Avultada quantia terá mesmo sido entregue ao prior D. João da Cunha Souto Maior mas este acabou por apenas construir as paredes, tendo gasto o restante em obras de caridade. Só em 1783 o Pároco, Tomás Patrício dos Santos, decidiu construir no local um espaço mais modesto,  a capela da Sª da Guia de que hoje apenas resta a fachada.
A referência ao casamento de Vasco da Gama tem algum fundamento. É que, Catarina de Ataíde, sua mulher, era de facto filha de António de Ataíde, Senhor de Penacova

sábado, agosto 20, 2016

Umas Férias em Penacova (III): as grutas da Riba de Cima

Temos vindo a publicar excertos de um conjunto de crónicas que em 1857 Alves Mendes publicou no jornal O Conimbricense. Já em Outubro de 2013, neste blogue, fizemos referência a um desses textos que relata a visita a umas grutas existentes a cerca de uma légua da vila. Apesar de, na altura, Alves Mendes andar apenas pelos vinte anos, a leitura dos seus escritos,  -neste caso, “Umas Férias em Penacova” - não deixa de nos surpreender. Magníficas descrições do ambiente natural de Penacova, profundas reflexões sobre a Vida e o Universo, apontamentos históricos sobre locais emblemáticos da vila, o palácio dos Duques de Cadaval, a capela de S. Pedro que nunca foi concluída dando lugar em 1783 à da Sra da Guia, o presumível casamento de Vasco da Gama nesta vila… um nunca mais acabar de curiosas e pertinentes revelações. De tudo isso iremos dando conta. Falaremos, por exemplo,  da estreita relação de Alves Mendes com Camilo Castelo Branco, na fase final da vida daquele escritor...
Por hoje convidamos os leitores a revisitar as “galerias subterrâneas”  da Riba de Cima.


VIsta da Riba de Cima (Penacova Online, 2013)
(...) Longos anos havia que com grande pasmo e admiração ouvia falar numas galerias subterrâneas a uma légua em distância de minha pátria (estão junto à Riba de Cima, lugar que ainda fica nos limites da freguesia de Penacova) sem que o desejo me excitasse a verificar a verdade de tão apregoada narração. Tinha por fabulosa esta crença a que via pasmosamente entregue o vulgo ignorante, escutando friamente novas bocas que centenares de vezes repetiam o mesmo conto, até que por fim, tamanha foi a impressão em mim causada pelo seu entusiasmo, que me resolvi ir visitar esta localidade.
Dispostos alguns companheiros (o Reverendo José d’Almeida Coimbra e Lemos e os Srs. Francisco José Mendes e António Pimentel de Sande) que me seguissem, convencionamos ser a visita da manhã, devendo partir logo ao romper da aurora para fugirmos aos ardores da crescença do dia.
Assim foi. Já o sol esplêndido e radioso se erguia majestosamente no horizonte e o frio orvalho tinha desaparecido da verdejante folhagem das plantas, quando nos achávamos a pequena distância do sítio que demandáramos. A estrada, apesar de escabrosa e áspera e sepultada no fundo de duas altas montanhas, era contudo menos penosa pelo contínuo refresco das árvores que a copavam e pela agradável melodia das aves que por todo a parte nos seguiam.
Tudo nos sensibilizava, tudo nos comovia, tudo nos extasiava: a preciosidade que procurávamos tinha escapado da nossa lembrança com a presença deleitosa do delicioso vale que trilhávamos. Por fim acabou e só ao longe divisávamos sumidamente uma colina de encantadora posição. Diante de nós se desenrolava uma planície descoberta e ilimitada onde os raios do sol dardejavam fortemente sobre nossas cabeças; porém o seu calor era modificado pela fresca brisa que suavemente enxugava o suor que nos regava as frontes.
Caminhámos, caminhámos por esta viçosa chã, até que avizinhámos um formoso oiteirinho juncado de verdes arbustos. Era o termo da nossa viagem e o lugar da nossa pretensão. Trepámos então por uma pequena vereda que, segundo o conselho de um venerando que encontrámos, nos dava direcção para a entrada do subterrâneo.
Na verdade, assim sucedeu: em breve deparámos com uma profunda cova, cercada por um lado duma agigantada penedia, que no sopé apresentava uma abertura pouco mais de dois palmos de largura e em direcção perpendicular. Eis aí a entrada das galerias (se assim dizê-lo posso) – exclamaram os companheiros. Eu tomado de susto hesitei logo em atravessar tão estreita garganta e estive quase prestes a abandoná-los, que impacientes me excitavam a empreender semelhante passagem.
No meio destes colóquios, que de nada aproveitavam, um deles se levanta com um semblante grave e corajoso e em tom alto e expressivo assim fala: Ânimo! Ânimo!... Ao ouvir estas palavras doces e penetrantes, em mim se produziu nova alegria e novo brio: minha juventude e minhas forças não me permitiram fraqueza: desapareceu de repente aquele receio que me ouriçava os cabelos e coalhava o sangue nas veias, e levantando-me com coragem e valor me arremeço impetuosamente à boca da profunda caverna e comigo os meus companheiros.
Com efeito depois de uma longa e aturada dificuldade com que tivemos de lutar passando através da rocha por uma cavidade que a custo nos podia abranger, chegámos à majestosa entrada do subterrâneo. A espessa escuridão que continuadamente aí reina, era aumentada com a rápida passagem que fizemos da claridade do dia. Foi-nos então forçoso o recorrer à luz de algumas velas que com antecedência havíamos levado. Apenas estas horrorosas trevas foram substituídas pelo clarão sepulcral de nossos círios, oh! que belo contraste era ver uma espaçosa sala eternamente habitada por um jamais interrompido silêncio!
Depois dos primeiros lances de olhos sobre tão mágica e curiosa cena, entregues às mais fortes comoções nos dirigíamos como magneticamente atraídos a uma pequena altura levantada no meio deste aposento, para daí com mais exactidão e liberdade contemplarmos a magnífica abóbada, que à luz ainda que pálida de nossas velas, soltava sobre todo o pavimento um tão forte clarão, que como os raios abrasadores do meio-dia deslumbrava fortemente a nossa vista. Era na realidade aquele um dos melhores momentos que havíamos passado no mundo! O pasmo em que estávamos não nos podia deixar com precisão fazer o analítico exame que mais impressionaria o nosso entusiasmo. Conservávamo-nos hirtos e calados, e só os olhos correndo velozes por todo o recinto, mutuamente indicavam o prazer interno de cada um.
Pelo meio de tão precioso esmalte passam alguns veios de pedra de cor diversa da do assento e que com toda a graça e simetria dividem em gomos a vasta extensão da abóbada e que estão por tal modo brincados com lavores, que mais parecem ter merecido a atenção do delicado cinzel do escultor.Fomos então pouco a pouco caminhando junto das soberbas colunas embutidas nas pedras laterais que sustentam a grandiosa massa da abóbada, e fazendo uns aos outros reflexões sobre tão rara obra da natureza. A parte superior da sala,(se assim se pode chamar) que com as paredes colaterais perfazem uma só pedra, é dum assento geralmente branco como o puro cristal. Por toda a superfície da abóbada se acham em certa e determinada distância acanudados fios, nascentes da mesma pedra, no meio das quais aparecem delicadas estrelinhas, que com as sumidades cheias de água de que se conjectura serem formados, apresentavam aos raios flagrantes de nossas luzes uma vista maravilhosa.
Já nas paredes laterais se não divisa o mesmo bordado da coberta superior, mas (coisa pasmosa!) embutidos por entre as colunas, donde nascem as inarcadas fachas de pedra, que simetricamente dispostas dividem toda a extensa cobertura, se encontram formados pela natureza diversos lavores em grandes e pequenas pedras, que tem semelhança com alguns dos membros humanos! Eu mesmo toquei com meus dedos uma cara e um braço – que pela sua exactidão me causaram o maior espanto!
Mas ainda isto não é tudo: de espaço a espaço saem alguns bocados de uma pedra que sem ofenderem a perspectiva geral, nem tão pouco encobrirem o delicado da renda derramada por toda a superfície donde estão aderentes, dão pelo contrário ao observador um considerável aspecto; e ainda mais excitam a atenção pela rara saliência de tangerem com qualquer movimento, e apresentarem um timbre como o do mais fino metal!
Desprendidos os olhos de tão cuidadoso exame, com que minuciosamente analisávamos cada uma das particularidades encontradas num sítio eternamente deserto e desamparado, de repente vimos dois arcos de elegante delicadeza formados de pedra lavada e transparente, nos dois lados da parede e em oposta posição. Moveu-nos logo a curiosidade de os demandarmos, a fim de examinarmos se por ventura dariam comunicação para algum vácuo, em que tivéssemos de admirar o mesmo embelezamento do da sala em que estávamos.
Com efeito não nos desmentiram. Depois que entramos aquele, cuja perspectiva vasta e altíssima perfazia o adorno mais rico e sublime, e que se achava logo imediato à nossa direita, não sabíamos em que fitar a atenção: ela não ficou logo cativa na contemplação daquele todo, mas errante por aqui e ali era já empregada  na variedade das brilhantes cores, já no maravilhoso efeito que faziam as diversas rendas engraçadamente estendidas nas paredes e abóbadas. Ainda ali havia a descortinar um horizonte mais vasto do que o do grandioso painel que acabávamos de visitar.
A acção da natureza excitada pouco a pouco pela mão do tempo, tinha feito diluir o exterior da lisa pedra que servia de remate àquela abóbada, e assim os raios do sol dando de encontro com a pedra fina e transparente, introduziam dentro um clarão basso e sepulcral, que reflectindo misteriosamente sobre todo o aposento, tornava aos olhos do expectador os objectos quase distintos.
Enfim, aí se encontrava a mesma sublime simplicidade que vínhamos de observar e nem a pedra é de diferente natureza, mas em tudo idêntica, apresentando assim os mesmos primores de ornato. O outro conduzia a um esquisito vácuo, onde apenas se encontra uma pedra encostada, e como que servindo de sustentáculo a uma colossal penedia que sobre ela repousava; mas que apenas mostrava um grosseiro adorno.
A beleza porém de tão magnífico subterrâneo está de dia para dia em considerável diminuição, devida sem dúvida à dolorosa incúria e desleixo em que se acha.
Lamento com amargor as grandes mutilações que aí se acham, determinadamente feitas, e que desfiguram essencialmente uma obra tão rara na natureza. Por toda a parte se vêem rendas de pedra quebradas violentamente a martelo, e colunas de que só restam simples fragmentos que ainda indicam a sua primitiva elegância. Quanto se aproveitaria com a proibição de semelhante abuso!
Tal é a traços largos a descrição do subterrâneo que tão vivamente impressionava os ânimos dos povos circunvizinhos, descrição que a nós não pertencia, mas a pena que mais enérgica do que a nossa a fizesse com mais graça e extensão, e que só a triste recordação de até hoje jazer no esquecimento nos comoveu apresentá-la."
Penacova, 17 de Setembro de 1857
António Alves Mendes da Silva Ribeiro