Temos vindo a publicar excertos
de um conjunto de crónicas que em 1857 Alves Mendes publicou no jornal O Conimbricense. Já em Outubro de 2013,
neste blogue, fizemos referência a um desses textos que relata a visita a umas
grutas existentes a cerca de uma légua da vila. Apesar de, na altura, Alves
Mendes andar apenas pelos vinte anos, a leitura dos seus escritos, -neste caso, “Umas Férias
em Penacova” - não deixa de nos surpreender. Magníficas descrições do ambiente
natural de Penacova, profundas reflexões sobre a Vida e o Universo,
apontamentos históricos sobre locais emblemáticos da vila, o palácio dos Duques
de Cadaval, a capela de S. Pedro que nunca foi concluída dando lugar em 1783 à
da Sra da Guia, o presumível casamento de Vasco da Gama nesta vila… um nunca mais
acabar de curiosas e pertinentes revelações. De tudo isso iremos dando conta. Falaremos, por exemplo, da estreita relação de Alves Mendes com Camilo Castelo Branco, na fase final da vida daquele escritor...
Por hoje convidamos os leitores a revisitar as “galerias subterrâneas” da
Riba de Cima.
|
VIsta da Riba de Cima (Penacova Online, 2013) |
(...) Longos anos havia que com
grande pasmo e admiração ouvia falar numas galerias subterrâneas a uma légua em
distância de minha pátria (estão junto à Riba de Cima, lugar que ainda fica nos
limites da freguesia de Penacova) sem que o desejo me excitasse a verificar a
verdade de tão apregoada narração. Tinha por fabulosa esta crença a que via
pasmosamente entregue o vulgo ignorante, escutando friamente novas bocas que
centenares de vezes repetiam o mesmo conto, até que por fim, tamanha foi a
impressão em mim causada pelo seu entusiasmo, que me resolvi ir visitar esta
localidade.
Dispostos alguns companheiros (o
Reverendo José d’Almeida Coimbra e Lemos e os Srs. Francisco José Mendes e
António Pimentel de Sande) que me seguissem, convencionamos ser a visita da
manhã, devendo partir logo ao romper da aurora para fugirmos aos ardores da
crescença do dia.
Assim foi. Já o sol esplêndido e
radioso se erguia majestosamente no horizonte e o frio orvalho tinha
desaparecido da verdejante folhagem das plantas, quando nos achávamos a pequena
distância do sítio que demandáramos. A estrada, apesar de escabrosa e áspera e
sepultada no fundo de duas altas montanhas, era contudo menos penosa pelo
contínuo refresco das árvores que a copavam e pela agradável melodia das aves
que por todo a parte nos seguiam.
Tudo nos sensibilizava, tudo nos
comovia, tudo nos extasiava: a preciosidade que procurávamos tinha escapado da
nossa lembrança com a presença deleitosa do delicioso vale que trilhávamos. Por
fim acabou e só ao longe divisávamos sumidamente uma colina de encantadora
posição. Diante de nós se desenrolava uma planície descoberta e ilimitada onde
os raios do sol dardejavam fortemente sobre nossas cabeças; porém o seu calor
era modificado pela fresca brisa que suavemente enxugava o suor que nos regava
as frontes.
Caminhámos, caminhámos por esta
viçosa chã, até que avizinhámos um formoso oiteirinho juncado de verdes
arbustos. Era o termo da nossa viagem e o lugar da nossa pretensão. Trepámos
então por uma pequena vereda que, segundo o conselho de um venerando que
encontrámos, nos dava direcção para a entrada do subterrâneo.
Na verdade, assim sucedeu: em
breve deparámos com uma profunda cova, cercada por um lado duma agigantada
penedia, que no sopé apresentava uma abertura pouco mais de dois palmos de
largura e em direcção perpendicular. Eis aí a entrada das galerias (se assim
dizê-lo posso) – exclamaram os companheiros. Eu tomado de susto hesitei logo em
atravessar tão estreita garganta e estive quase prestes a abandoná-los, que
impacientes me excitavam a empreender semelhante passagem.
No meio destes colóquios, que de
nada aproveitavam, um deles se levanta com um semblante grave e corajoso e em
tom alto e expressivo assim fala: Ânimo! Ânimo!... Ao ouvir estas palavras
doces e penetrantes, em mim se produziu nova alegria e novo brio: minha
juventude e minhas forças não me permitiram fraqueza: desapareceu de repente
aquele receio que me ouriçava os cabelos e coalhava o sangue nas veias, e
levantando-me com coragem e valor me arremeço impetuosamente à boca da profunda
caverna e comigo os meus companheiros.
Com efeito depois de uma longa e
aturada dificuldade com que tivemos de lutar passando através da rocha por uma
cavidade que a custo nos podia abranger, chegámos à majestosa entrada do
subterrâneo. A espessa escuridão que continuadamente aí reina, era aumentada
com a rápida passagem que fizemos da claridade do dia. Foi-nos então forçoso o
recorrer à luz de algumas velas que com antecedência havíamos levado. Apenas
estas horrorosas trevas foram substituídas pelo clarão sepulcral de nossos
círios, oh! que belo contraste era ver uma espaçosa sala eternamente habitada
por um jamais interrompido silêncio!
Depois dos primeiros lances de
olhos sobre tão mágica e curiosa cena, entregues às mais fortes comoções nos
dirigíamos como magneticamente atraídos a uma pequena altura levantada no meio
deste aposento, para daí com mais exactidão e liberdade contemplarmos a
magnífica abóbada, que à luz ainda que pálida de nossas velas, soltava sobre
todo o pavimento um tão forte clarão, que como os raios abrasadores do meio-dia
deslumbrava fortemente a nossa vista. Era na realidade aquele um dos melhores
momentos que havíamos passado no mundo! O pasmo em que estávamos não nos podia
deixar com precisão fazer o analítico exame que mais impressionaria o nosso
entusiasmo. Conservávamo-nos hirtos e calados, e só os olhos correndo velozes
por todo o recinto, mutuamente indicavam o prazer interno de cada um.
Pelo meio de tão precioso esmalte
passam alguns veios de pedra de cor diversa da do assento e que com toda a
graça e simetria dividem em gomos a vasta extensão da abóbada e que estão por
tal modo brincados com lavores, que mais parecem ter merecido a atenção do
delicado cinzel do escultor.Fomos então pouco a pouco
caminhando junto das soberbas colunas embutidas nas pedras laterais que
sustentam a grandiosa massa da abóbada, e fazendo uns aos outros reflexões
sobre tão rara obra da natureza. A parte superior da sala,(se assim se pode
chamar) que com as paredes colaterais perfazem uma só pedra, é dum assento
geralmente branco como o puro cristal. Por toda a superfície da abóbada se
acham em certa e determinada distância acanudados fios, nascentes da mesma
pedra, no meio das quais aparecem delicadas estrelinhas, que com as sumidades
cheias de água de que se conjectura serem formados, apresentavam aos raios
flagrantes de nossas luzes uma vista maravilhosa.
Já nas paredes laterais se não
divisa o mesmo bordado da coberta superior, mas (coisa pasmosa!) embutidos por
entre as colunas, donde nascem as inarcadas fachas de pedra, que simetricamente
dispostas dividem toda a extensa cobertura, se encontram formados pela natureza
diversos lavores em grandes e pequenas pedras, que tem semelhança com alguns
dos membros humanos! Eu mesmo toquei com meus dedos uma cara e
um braço – que pela sua exactidão me causaram o maior espanto!
Mas ainda isto não é tudo: de
espaço a espaço saem alguns bocados de uma pedra que sem ofenderem a
perspectiva geral, nem tão pouco encobrirem o delicado da renda derramada por
toda a superfície donde estão aderentes, dão pelo contrário ao observador um
considerável aspecto; e ainda mais excitam a atenção pela rara saliência de
tangerem com qualquer movimento, e apresentarem um timbre como o do mais fino
metal!
Desprendidos os olhos de tão
cuidadoso exame, com que minuciosamente analisávamos cada uma das
particularidades encontradas num sítio eternamente deserto e desamparado, de
repente vimos dois arcos de elegante delicadeza formados de pedra lavada e
transparente, nos dois lados da parede e em oposta posição. Moveu-nos logo a
curiosidade de os demandarmos, a fim de examinarmos se por ventura dariam
comunicação para algum vácuo, em que tivéssemos de admirar o mesmo
embelezamento do da sala em que estávamos.
Com efeito não nos desmentiram.
Depois que entramos aquele, cuja perspectiva vasta e altíssima perfazia o
adorno mais rico e sublime, e que se achava logo imediato à nossa direita, não
sabíamos em que fitar a atenção: ela não ficou logo cativa na contemplação
daquele todo, mas errante por aqui e ali era já empregada na
variedade das brilhantes cores, já no maravilhoso efeito que faziam as diversas
rendas engraçadamente estendidas nas paredes e abóbadas. Ainda ali havia a
descortinar um horizonte mais vasto do que o do grandioso painel que acabávamos
de visitar.
A acção da natureza excitada
pouco a pouco pela mão do tempo, tinha feito diluir o exterior da lisa pedra
que servia de remate àquela abóbada, e assim os raios do sol dando de encontro
com a pedra fina e transparente, introduziam dentro um clarão basso e
sepulcral, que reflectindo misteriosamente sobre todo o aposento, tornava aos
olhos do expectador os objectos quase distintos.
Enfim, aí se encontrava a mesma
sublime simplicidade que vínhamos de observar e nem a pedra é de diferente
natureza, mas em tudo idêntica, apresentando assim os mesmos primores de
ornato. O outro conduzia a um esquisito vácuo, onde apenas se encontra uma
pedra encostada, e como que servindo de sustentáculo a uma colossal penedia que
sobre ela repousava; mas que apenas mostrava um grosseiro adorno.
A beleza porém de tão magnífico
subterrâneo está de dia para dia em considerável diminuição, devida sem dúvida
à dolorosa incúria e desleixo em que se acha.
Lamento com amargor as grandes
mutilações que aí se acham, determinadamente feitas, e que desfiguram
essencialmente uma obra tão rara na natureza. Por toda a parte se vêem rendas
de pedra quebradas violentamente a martelo, e colunas de que só restam simples
fragmentos que ainda indicam a sua primitiva elegância. Quanto se aproveitaria
com a proibição de semelhante abuso!
Tal é a traços largos a descrição
do subterrâneo que tão vivamente impressionava os ânimos dos povos
circunvizinhos, descrição que a nós não pertencia, mas a pena que mais enérgica
do que a nossa a fizesse com mais graça e extensão, e que só a triste
recordação de até hoje jazer no esquecimento nos comoveu apresentá-la."
Penacova, 17 de Setembro de 1857
António Alves Mendes da Silva
Ribeiro