quinta-feira, janeiro 20, 2022

Conto: A Bela Carvoeira

Administrada por Ulisses Baptista a página do facebook "CARVOEIRA TERRA AMIGA" tem vindo a publicar excelentes apontamentos sobre esta localidade da freguesia de Penacova. Com autorização do autor (como não poderia deixar de ser) publicamos o conto "BELA CARVOEIRA"



A BELA CARVOEIRA

(Conto)

Ulisses Baptista

- Acorda, homem! O teu irmão desespera. Há quanto tempo te chamo, António?
- Ó avó, perdoe-me! Há quanto tempo aqui estou assim?
- Não sei, filho. Essas reuniões com os homens da vila andam a fazer-te mal.
- Não é nada avó.
- Preciso de falar contigo, depois. É coisa séria. Ouviste?
- Está bem, pronto, já sei, avó.

António levantou a cabeça de cima da mesa. Estava a cabecear depois de ter permanecido num sono profundo. Perturbado, pela responsabilidade de ter de ir auxiliar o irmão, levantou-se num repente, pensando em como se havia deixado estar ali naquele propósito. Pegou um pedaço de pão de cima da mesa e saiu porta fora a correr em direção ao rio.
- Até mais, avó, falamos melhor quando regressar.
- Vai com Deus, meu filho. Deus vos abençoe!
Pedro Tomás tinha a barca atracada no Porto da Carvoeira. Trazia sal e pescado. Sardinha ainda fresca, em sal, e bacalhau salgado que chegara da Figueira da Foz. Pedro pediu às mulheres que se encontravam em terra para se aproximarem.
- Levem estas duas cestinhas, foi o que pude arranjar.
As mulheres obedeceram, aproximando-se.
- Homessa, o inverno irá ser duro! -disse a mais velha.
- O trigo é escasso e o vinho este ano é fraco. Chuva a mais, não ajuda a guardar nada. Digam ao António para vir, ele já cá deveria estar. A Foz do Alva espera-nos e temos ainda que carregar a barca. Amanhã partiremos cedo.
Pedro estava distraído a enrolar as cordas e dar alguma ordem ao convés quando António chegou. O barulho de passos próximos fez Pedro desviar a atenção.
- Pareces preocupado! Que te apoquenta? -dirigindo-se ao irmão recém chegado.
- Cansaço apenas. Preciso de um pouco de vinho.
Pedro tirou o espicho à pequena vasilha de madeira e serviu uma malga de vinho ao irmão.
- Não está muito fresco, mas bebe-se.
António provou o vinho fazendo uma careta:
- Podes beber o resto. Não quero mais.
- Não estou a reconhecer-te!
- Está quente, não gosto de vinho quente. Já é fraco. Espero que dure até termos vinho novo.
- Preocupa-me mais o pão. Há pouco centeio. O trigo já vem todo de fora, mas é muito caro no mercado. Não se pode comprar.
- Temos que seguir rio acima. Vamos falando enquanto navegamos. Temos muito que falar.
- É tudo cansaço, homem de Deus?
-Não, é fome, mesmo, e a cabeça tonta do que ouvi, mas preciso contar-te um segredo.
- Novidades? Nunca tiveste segredos comigo. Que segredo é esse?
-Temos agora 35 anos, fazemos diferença de 3 meses, mas nunca questionámos isso.
- Não. Realmente, algo não bate certo.
- Ontem tive uma conversa com a tua avó.
Pedro olhou de soslaio para António, nunca ouvira o irmão referir-se assim à avó de ambos.
- A minha avó e a tua, não?
- Que pensas sobre o nome do lugar?
- Está bem. Há aqui carvoeiros.
- Mas não são assim tantos, há outros ofícios. E os carvoeiros também são camponeses. -retorquiu António.
- Parecemos fidalgos a falar. Deixa-te dessas conversas.
- Bem, a verdade é que os fidalgos parecem gostar muito destas paragens. Eu não sou teu irmão. -disse António, bruscamente.
-Estás parvo. Que conversa é essa?
- É o segredo que te queria contar.
- De quem és filho, então?
- Sou filho de um fidalgo e de uma carvoeira, que, na verdade, nunca o foi.
- E quem te contou isso?
- A tua avó Ana, já te disse. Assim mo contou ela:
" A tua mãe era a mulher mais linda do povoado, morria de amores por um fidalgo que aqui costumava vir às terras de Penacova, mas que se perdia muito por aqui, porque, um dia, meteu os olhos em cima dela, e nunca mais descansou enquanto não a desencaminhou. Para falar a verdade ela também não descansou enquanto ele a não desencaminhou. D. Nuno Mendes Godinho era capitão de ordenanças da casa dos Ataídes, e desde 1421 que as terras de Penacova pertenciam a essa família dos Ataídes, uma gente abastada que também conspirou contra o rei D. João II. Como sabes, o senhor de Penacova é agora Afonso de Noronha, quarto Conde de Odemira, por se ter casado com D. Maria Ataíde, há uma meia dúzia de anos. Afonso de Noronha era filho de Sancho de Noronha, terceiro Conde de Odemira, amigo íntimo e parente de um navegador genovês que esteve a viver no reino alguns anos. O mesmo que dizem que descobriu as Índias Ocidentais. Muitos dessas famílias e de outras da nobreza fugiram para Castela e deram guarida ao dito navegador. Não sei como, este senhor que se encantou com a tua mãe, contava-lhe muitas destas coisas, em segredo. Ele dizia-lhe que temia pela morte, depois do rei D. João II ter descoberto que conspiravam contra ele. Poucos meses antes de tu nasceres, ele nunca mais cá apareceu. Ninguém sabe ao certo se ele foi preso, morto ou também fugiu para Castela. O que toda a gente sabe é que o rei D. João II teve sempre a nobreza debaixo de olho e nunca perdoou o que lhe fizeram, muito menos que os maiores nobres portugueses se tenham acolhido junto dos reis de Castela e tenham partilhado, com eles, os melhores conhecimentos e instrumentos de marear."
- António, isso parece uma história do arco-da-velha. Mas acredito na avó. Porque nunca ninguém nos falou nisso?
- Parece que tiveram medo das consequências. Tinham medo que pudéssemos sofrer represálias. Por isso, adotaram-me como se fosse da família, depois da minha mãe ter morrido quando me pariu.
- O rei D. João II foi um rei justo, todos sabemos. O povo e os mercadores costumam lembrar que só queria o bem da nação. Pena ter morrido novo. - disse Pedro a António.
- Sabes que não ligo muito a essas coisas, não sabes? Acho que nós só existimos para trabalhar para eles, é o que eu acho.
- Não achas também que estas terras que estão em baldio já deveriam estar preparadas para cultivo do tal milho grosso que veio das Índias?
- Acho que sim, e tenho feito pressão para isso junto dos representantes do concelho. Parece que na parte baixa do reino há já campos cheios deste novo cereal. - lembrou António.
- Pelo que se vê, pode ser uma boa ajuda para matar a fome ao povo e ao gado, e há mesmo quem use partes da planta para encher almofadas e colchões.
- Que é uma cultura mais rápida no desenlace, mas um pouco mais necessitada de acompanhamento, isso parece ser também verdade.
- O trabalho é o menos. Se houver o que comer, o povo trabalha. Estamos em Agosto, há carência de trigo, resta-nos, por agora, o centeio e a cevada. O carroceiro Manuel contou-me que há muita fome por lá para a terra dele.
- Por vezes, desespero, Pedro, a vontade que dá é abandonar as terras e ir trabalhar para a urbe. Os terrenos que estão à beira rio só têm servido para pastagens no Verão, por serem muito alagadiços no Inverno. As casas senhoriais continuam a chamar a si essas terras, e é preciso continuar as obras para impedir a passagem de tanta água e o assoreamento.
- Penso que nunca vamos poder usá-las para trigo ou centeio, mas podiam bem servir para o milho grosso. Dizem que esta cultura parece pedir, no tempo quente, muita água, especialmente nos anos mais agrestes.
- Espero que o concelho também se possa desenvolver mais a esse nível. Ainda assim, o esforço maior é sempre do povo. Somos nós que temos de trabalhar quase de graça para eles.
- Deixa-te de política, por agora, e conta lá o que disse mais a avó. Seja como for, não vou deixar de ser teu irmão só por causa disso.
- Nem eu, muito menos. A avó Ana é como se fosse nossa mãe. Ela conhece-nos tão bem. Quando me contou o início fiquei espantado. Aguarda para ouvires o resto:
"D. Nuno Mendes Godinho conheceu a tua mãe, ainda moça, e logo se encantou pela sua figura. Quando chegava perto do povoado, prendia o cavalo, junto à Ermida, num dos dois ciprestes; deixava que o cavalo matasse a sede no bebedouro de pedra e aguardava pela descida das lavadeiras. Quase sempre via a filha do carvoeiro, como era conhecida no povoado. Maria era bela como ele nunca vira beleza igual. Apesar de plebeia, sabia cuidar-se muito bem. Ao entardecer, já lusco fusco, gostava de sentir a água morna do Mondego, no tempo quente, a cair suavemente sobre si, o cabelo escuro, solto e molhado a delinear a curva dos seios, enquanto se aninhava, de cócaras, alagada de água até à cintura. Quase não havia dia que não cumprisse o seu ritual, que era também o ritual de muitas outras mulheres, embora não com a frequência que ela o fazia. Era recatada ao ponto de escolher sempre um local diferente para se furtar aos olhares curiosos, apesar dos mancebos se juntarem, à coca, atrás da vegetação.
Maria era bem torneada, duma elegância desconcertante; trigueira, habituada a ter o sol na pele, fruto do seu contacto com o campo e acostumada às lides domésticas, mas livre para decidir por si o que fazer. O mais triste é que, com ela, aconteceu o mesmo que acontecera à sua mãe, que também morrera quando a dera à luz. Parecia uma maldição. O marido permaneceu num luto amargo, durante mais de uma década, embora sempre preocupado de o esconder da filha, a bela Maria, uma encarnação da mulher, que fora a luz dos seus olhos. Era um pai amável, incapaz de lhe falar com modos graves, mas protetor, e até achava graça aos seus costumes. Chegou a dizer, algumas vezes, a quem lhe falava na filha, que era tão bela que temia um dia que fosse levada por um burguês ou um fidalgo.
E um dia aconteceu que se cruzaram com o olhar. Aqueles olhos amendoados enfeitiçaram o fidalgo. Ela pensava, em segredo, como seria se ele a levasse a cavalgar no seu cavalo; sempre sonhara na liberdade de percorrer os caminhos em torno do lugar, com os cabelos escuros e sedosos ao vento. Costumavam falar às escondidas, apesar de os olhares curiosos os surpreenderem muitas vezes. Eles disfarçavam sempre, e pensavam que ninguém sabia verdadeiramente que estavam enamorados. Um dia fez-lhe uma proposta. Ele sabia que era perigoso ser visto com uma plebeia, mas a sua beleza enlouquecia-o. Maria apaixonou-se pelo seu príncipe e ele chamava à sua donzela, «a bela carvoeira»:
- Queres andar comigo a cavalo? - perguntou D. Nuno a Maria.
- Não. Acho que não estou preparada, disse-lhe Maria com ar trocista.
- Porquê?
- Não sei. Tenho medo.
- Medo de quê, de mim?
- Não. Acho que não és capaz de me fazer mal. - desafiou, Maria, com um sorriso.
- Então, monta. És capaz?
Ela, com uma agilidade de o deixar de boca aberta, montou para o cavalo, atrás das costas de D. Nuno, e agarrou-se a ele com força.
- Estás preparado? Eu estou pronta.
- Segura-te bem!"
Pedro estava surpreendido ao ouvir o irmão contar-lhe o que a avó lhe contara a ele mesmo. Nunca imaginara que ele pudesse ter sangue nobre. A viagem rumo a cima, à Foz do Alva, correra sem sobressaltos. Tinham sido ajudados a descarregar o sal por dois homens do comprador. A barca vazia deslocava-se agora rio abaixo, com fluidez.
- Imaginas o que aconteceu a seguir, não imaginas? - perguntou António.
- A tua mãe casou às escondidas com o fidalgo.
- Achas isso possível? A vida esquentou para eles, mas não a esse ponto.
- Quanto tempo conseguiram viver aquela história de puro amor?
- A avó não sabe ao certo, mas ele engravidou-a pouco tempo depois do primeiro encontro a sério; ele gostava muito também era de conversar com ela, como me contou a avó:
" António, acredita que a tua mãe deve ter conversado muito com este fidalgo; para além de tudo o mais que eles fizeram, mal ou bem feito, eram verdadeiros confidentes um do outro. Ela contou-me estas coisas todas nos últimos meses de gravidez. Implorou-me que a ajudasse e que não deixasse que ninguém te tirasse, nem do ventre, nem depois de nasceres. Tinha escolhido o mesmo nome do pai para te dar quando nascesses. Só te não pusemos esse nome para te proteger.
Como já te disse, depois das conspirações contra D. João II , muitos dos nobres envolvidos, bem como os seus cúmplices, foram mortos ou presos, enquanto aqueles que escaparam procuravam refúgio em Sevilha, ao abrigo da corte castelhana.
A indústria naval precisava de muita madeira e muitas terras do reino estavam a ser exploradas para esse fim. As terras de Penacova tiveram a mesma sorte, e como sabes, ainda hoje é pior.
As cortes querem continuar a viver sempre de forma rica e faustosa, enquanto a população empobrece, com um Império para manter. Mas, como bem sabes, D. Manuel I passou a governar tentando percorrer o mesmo caminho trilhado pelo seu primo e cunhado, que tirara inúmeras regalias à nobreza. A morte de D. João II, em 1495, e a do seu filho Afonso, quatro anos antes, que seria o seu sucessor legítimo, foram vistas como suspeitas. D. Afonso teria sido um sério candidato a governar também a coroa de Castela, uma vez que aquela estava, na altura, a atravessar uma crise de sucessão, e o jovem príncipe havia casado com a herdeira do trono de Castela, D. Isabel.
Ao contrário de seu pai, D. Afonso V, D. João II exercera o seu reinado com pulso de ferro. D. Afonso V, concedera enormes regalias à alta nobreza, teve um reinado bastante longo em que a nobreza se sentiu adulada e privilegiada. Este rei governou alimentando sonhos de expansão, idolatrando e beneficiando também o alto clero. Parece ter ignorado que o mundo estava em mudança, sem dar grande valor ao desenvolvimento mercantil e à modernização que se fazia sentir e que estava a mudar o modo de vida e de pensar das pessoas. Para ele, o esforço feito pelos portugueses nas suas viagens marítimas só poderiam fazer sentido se se cumprissem as suas ilusões fabulosas. Por seu lado, o filho, D. João II, viera a governar de forma arguta e inteligente, pretendendo orientar o reino para a modernidade. Aqueles que não lhe quiseram seguir os passos foram avisados. Entre os seus mais diretos adversários estavam os membros das famílias nobres mais importantes do reino. Quando o rei descobriu a primeira conspiração, mandou cortar a cabeça ao duque de Bragança, cuja família era a mais interessada em tirar D. João II do trono. Na segunda conspiração, poucos meses depois, o principal mentor era o seu primo e cunhado, D. Diogo, duque de Viseu. D. João II queria que o reino se desenvolvesse e, para tal, era necessário conceder direitos aos representantes dos concelhos, sempre com a supervisão do poder central. Era necessário modernizar o reino e continuar a campanha de comercialização com outros povos longínquos, através das novas rotas comerciais marítimas. Quando D. Manuel I chegou ao poder, após a morte do cunhado e primo, embora tentasse continuar com algumas das políticas do anterior governante, apoiou o regresso da maioria dos nobres que tinham estado exilados, e restitui-lhes as terras e os títulos que haviam perdido. Foi um rei que continuou a apoiar a expansão marítima e concedeu forais novos a muitas cidades e vilas, entre as quais, Penacova, em 1514. Foi fruto disso que a região, especialmente nas zonas ribeirinhas, também se começou a desenvolver, tendo começado a ser edificadas obras de reabilitação dos terrenos marginais ao rio Mondego.
Tu nasceste em 1483 e o teu pai nunca mais foi visto por aqui. É natural que tenha sido apanhado pela argúcia de D. João II, e tenha levado por tabela. D. João II era um rei sem medo, que não teve qualquer problema em apunhalar com as próprias mãos o Duque de Viseu. Apesar de algumas das mais altas figuras da nobreza o terem traído, ele descobriu em pouco tempo quem o quis prejudicar porque tinha também homens fortes do lado dele. Na altura todo o reino soube do sucedido e a sua coragem e lealdade ao reino, bem como a sua responsabilidade, para com os seus súbditos, foram muito faladas.
O teu pai pôde muito bem ter sido apanhado nas malhas do poder de D. João II. Só Deus sabe o que ele também teria andado a tramar para isso ter acontecido. Ou até talvez ele possa ter sido vítima por estar do lado errado. Mas a tua mãe manteve sempre uma grande esperança nas promessas e nas palavras de D. Nuno. Ela era ainda jovem quando tu nasceste, tinha acabado de fazer 18 anos. Ele parecia uns anos mais velho. Talvez tivesse mais 10 anos do que ela, mas tinha uma figura imponente e elegante. Acho que ela se apaixonou por ele assim que o viu."
- É uma história triste, irmão! A tua mãe não teve grande sorte, mas viveu a vida intensamente.
- Concordo contigo. E o que tiramos da vida é mesmo isso, vivê-la intensamente.
- E nós? Vamos para Coimbra logo cedo?
- Acho que é melhor não deixar aqui a barca carregada muito tempo. Dormimos duas ou três horas e partimos.
António e Pedro haviam acabado de carregar a barca com a ajuda das mulheres que, durante o dia, tinham também estado a transportar lenha, à cabeça, para o Porto do rio, embora a maioria tivesse chegado de carro de bois. Era um trabalho árduo e esgotante.
Partiram pela madrugada, depois de terem dormido algumas horas na própria barca. Estava uma noite amena, mas com uma leve brisa de vento frio e inconstante, que criava arrepios ocasionais. Só ouviram os galos a cantar já ao passar a Rebordosa, ainda fazia muito escuro.
António ia ao leme quase sonolento, havia largos minutos que sentia uma força enorme a baixar-lhe as pálpebras.
O irmão gritou por ele no meio da escuridão da noite: - António, quero-te ao leme, irmão!
O murmúrio da água a correr foi a única resposta.
- ANTÓNIO, OLHA O LEME!
António não reagiu a tempo, o estrondo da barca, a partir-se em duas contra o penedo bicudo, fê-lo reagir automaticamente e ele sentiu os braços fortes de pedra a jogá-lo borda fora, enquanto embatia com estrondo com a cabeça na água fria, a dor aguda a fazê-lo acordar, definitivamente, ensopado em água.
- Então meu filho, estás melhor? - perguntou-lhe a avó, preocupada.
- Acho que as febres baixaram, mas dói-me a cabeça. Parece que levei um coice de uma mula.
- As cataplasmas de salgueiro devem ter-te feito bem. Espero que fiques bom depressa.
- E a Maria, avó, e o menino?
- Não te preocupes, meu filho, estão bem. É melhor não virem à tua beira. Ainda é cedo. Logo hão-de vir aqui perto da porta para te falar. O teu irmão é que passou há pouco, ainda gritou duas vezes por ti, dali da porta, mas estavas ainda a dormir e parecias bastante agitado, e eu disse-lhe que era melhor passar depois.
- Fez bem avó, tive um sonho terrível.
- Bem me pareceu, pelo tua aflição a respirar.
- Avó, é verdade que a nossa terra se chama assim por causa da minha mãe?
- É verdade, sim. A tua mãe era muito bela e o povo costumava dizer que vinha à terra da carvoeira. Daí passou a dizer apenas que vinha à carvoeira, e o hábito pegou.
- Então e os cravos nas lousas às janelas, não contribuíram para nada?
- Contribuíram para alindar a aldeia toda, porque a tua mãe era muito extremosa nesse gosto de ter sempre cravos bonitos. Foi ela que levou toda a gente a querer enfeitar assim as casas.
- Sabe que sonhei que o meu irmão era Tomás e que nós não éramos irmãos. Que éramos quase da mesma idade. E que eu tinha sido adotado pela família dele.
- Mas tu e ele são bem Godinhos.
- Eu sei avó. Mas nos sonhos tudo é possível. Aquele fidalgo que vinha aí à terra antigamente não se chamava D. Nuno?
- Sim. Mas não mais foi visto por aí.
- No meu sonho, ele era meu pai e a minha mãe era uma rapariga muito bonita da aldeia, filha do meu pai.
A avó de António soltou uma risada meio abafada.
- Bem, na verdade, esse fidalgo quis um dia dar conversa à tua mãe, mas o teu pai era um calmeirão que impunha respeito e era bastante ciumento. Só a presença dele já assustava qualquer um que se atrevesse sequer a aproximar dela. Infelizmente, não conheceste a tua mãe. Foste aleitado por outra mulher e criado por nós.
- E o antigo nome da aldeia, Vila Nova dos laranjais, donde provém?
- Ah, isso é outra história. Mas é melhor descansares, agora. Ainda estás muito fraco. Bebe esta água de freixo morna para te baixar mais as febres. Esse assunto fica para outra altura.
Fim
Carvoeira, terra amiga.

quarta-feira, janeiro 12, 2022

Penacova no “Portugal Antigo e Moderno” [1]: as terras de Farinha Podre


Pinho Leal (Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal) foi um militar português que ficou conhecido pela publicação (entre 1873 e 1890) de uma extensa obra em 12 volumes intitulada «Portugal Antigo e Moderno». De acordo com o subtítulo, trata-se de um “dicionário geográfico, estatístico, corográfico, heráldico, arqueológico, histórico, biográfico e etimológico de todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal.”

É nesta obra de finais do século XIX que podemos encontrar muitas referências às principais localidades que actualmente fazem parte do concelho de Penacova.

Por hoje, vamos fazer referência à vila de Farinha Podre e às localidades de Travanca e de S. Paio que, recorde-se, estavam integradas à época na província do Douro, pertencendo já ao Bispado e Distrito Administrativo de Coimbra.

FARINHA PODRE

Farinha Podre pertencia ao concelho e comarca de Penacova (depois de ter pertencido à Comarca de Arganil). Sobre a sua localização geográfica é referido que se situa a “220 quilómetros ao N. de Lisboa”, que dista “30 quilómetros de Coimbra” e que “está a 6 quilómetros da margem esquerda do Mondego e 5 do rio Alva.”

Pinho Leal diz que a vila tinha 470 fogos e 1900 habitantes (almas) e recorda que em 1757 tinha apenas 318.

Podemos ler igualmente que “a igreja matriz de Farinha Podre é vasta e sumptuosa. Consta ter sido fundada pelos templários”. O orago é S. Pedro, Apóstolo. Era o “real padroado” que “apresentava o vigário” (isto é, que o nomeava), tendo este 180$000 réis de rendimento anual.

Refere-se também que Farinha Podre “é terra fértil em quase todos os frutos do nosso país e os seus habitantes são muito dados ao negócio de aguardente (de que há aqui 4 fábricas), azeite, vinho, trigo, milho, batatas e vinho, que transportam, pelo Mondego, para várias localidades.”

Farinha Podre - que “nunca teve foral” - foi concelho “que se suprimiu em 1855” e tinha à data 1500 fogos. Este “pequeno concelho” era formado por “frações dos (à época) concelhos de Coimbra, Penacova e dos extintos de Ázere, Óvoa, Pombeiro e Sanguinheda.

Curiosamente, encontramos um dado que é pouco conhecido: Pinho Leal salienta que também a “pequena freguesia de Paço Velho, que apenas tinha 27 fogos”, e que fora,” há muitos anos, suprimida” fazia de igual modo parte do concelho de Farinha Podre.

TRAVANCA DE FARINHA PODRE

Outra freguesia, contígua à de Farinha Podre, era a freguesia de Travanca, pertencente ao concelho de “Pena Cova” do qual distava 12 quilómetros. Travanca pertencia à comarca da Tábua (antiga comarca de Midões).

Refere Pinho Leal que Travanca se situa a 235 quilómetros “ao N. de Lisboa” e a 30 quilómetros “a E. de Coimbra” distando 24 da Lousã, 18 de Arganil e de Santa Comba Dão e 12 de Santo André de Poiares, de Tábua e de Mortágua.

Travanca tinha 125 fogos (em 1768 tinha 65). O Orago é “S. Thiago, apóstolo”. Pertencia também ao bispado e distrito administrativo de Coimbra.

Esclarece o dicionário que Travanca “quando pertenceu ao concelho de Farinha Podre, era da comarca d'Arganil, depois (em 1855) ficou pertencendo ao concelho da Tábua. Pela mudança da sede da comarca de Midões, passou para o concelho de Penacova e comarca de Tábua.”

Era a Sé Apostólica e o Bispo que apresentavam, alternadamente, o prior que tinha 220$000 réis de rendimento anual.

Esclarece-se que a localidade se chama “Travanca de Farinha Podre” porque “está próxima à pequena vila de Farinha Podre, que foi cabeça de um concelho, criado por decreto de 6 de novembro de 1836 e suprimido a 24 de outubro de 1855”.

S. PAIO DE FARINHA PODRE

Por último, temos S. Paio de Farinha Podre, à época pertencente à comarca e concelho de Tábua. Situava-se a “30 quilómetros de Coimbra e 230 ao N. de Lisboa”.

Pertencera ao concelho de Farinha Podre “que foi suprimido em 1855 e era então da comarca de Arganil.” Refere-se ainda que “o vigário da vila de Farinha Podre (S. Pedro) apresentava o cura, que tinha de rendimento 10$500 réis e “o pé d'altar”. Em 1757 tinha 90 fogos e 110 à data da publicação do dicionário. O orago era, naturalmente, S. Paio.

sexta-feira, dezembro 31, 2021

Nos 120 anos de Nemésio: alguns escritos menos conhecidos sobre Penacova



Nemésio referiu-se a Penacova não apenas nos textos que geralmente são evocados quando se pretende estabelecer a ligação do escritor ao nosso concelho, mas também noutras obras menos citadas. Como sabemos, escreveu sobre os moinhos de vento e sobre lugares e pessoas da nossa região nas crónicas “O Cavalo e a Serra”, “O Velho Domingos” e “Outono no Buçaco” que fazem parte do livro Viagens ao Pé da Porta (1965). Muito conhecida é também a sua alusão a Penacova no Guia de Portugal. No entanto, igualmente na obra O Retrato do Semeador, publicada em 1958, Vitorino Nemésio escreve sobre Penacova, mais concretamente sobre Lorvão. 

Vejamos alguns excertos da crónica datada de 22 de Abril de 1954, onde aborda a decadência do Mosteiro.

Em todos nós ainda ecoa o brado lançado por Herculano há quase cem anos em favor das pobres mulheres recolhidas, à sombra da mole de pedra que os séculos foram reformando ao sabor dos seus gostos, recursos e necessidades, até tomar no século XVIII a forma acaçapada, mas ainda grandiosa que hoje tem.

Herculano que lançara em anos verdes a célebre fórmula cominatória do “camartelo municipal “demolidor de monumentos, não se queixava então de delapidações estéticas, mas do puro abandono de um punhado de mulheres religiosas e inválidas que tinham de esmolar o sustento e de fugir às beiras do asilo, abertas nos tectos desmanchados.

Era uma das muitas consequências do brusco volta-face histórico que, tendo de pôr cobro à desviada e hipertrófica vida conventual do país, acabou por exterminar toda e qualquer forma de existência monástica.

A traça atual de Lorvão está longe de exprimir a espiritualidade beneditina que muito antes de finda a primeira metade do século VIII elegeu aquele retiro entre pinhais e tojos bravios.

Boa parte da história das nossas instituições medievais tem de ser feita pelo tombo de Lorvão escapo à incúria moderna. […] E ainda hoje se podem ver no Museu de arte Sacra de Coimbra, a vetusta cadeira abacial, uma pedra de ara renascente, um pontifical de brocado, um relicário dos Mártires de Marrocos e outros testemunhos vivos de um Lorvão, que no seu sítio, só tem uma linguagem de lajes e de matos sem lanhos desses tempos.

Noutro texto intitulado "A Sombra dos Conventos", de 9 de Abril 1952, deparamo-nos com a descrição do caminho para Lorvão, pela Serra do Dianteiro:

De Coimbra […] deito à velha Lorvão há quase mil anos suplantada por essa mesma Coimbra […]. São 14 quilómetros de pinhal ralo e de urze, nos cocurutos do Dianteiro. Passo pequenas póvoas entanguidas na serra, do florestal Picoto, pelo Casal do Lobo e o Roxo, até para lá da Aveleira. É a cordinha de aldeias que fornece de lenha esquelética os fornos da douta Coimbra. De repente, encovada nos montes, austera, maciça, retelhada, surge a mole do mosteiro.

Evoca também os gloriosos tempos do mosteiro, a par das vicissitudes materiais e humanas por que passou a instituição:

Mas nada daquilo é já o habitáculo que albergou a Rainha Tareja de Leão, neta de D. Afonso Henriques, a Infanta D. Branca que Garrett cantou em verso branco e a D. Maria Brandão do magoado Crisfal.

Muito menos acodem as linhas do mosteiro beneditino que Frei Bernardo de Brito dizia coevo do monge do Monte Cassino[1] e que os mais recuados papiros da Hispânia decoram do nome “laurbanense”.

Aquelas poderosas fiadas de cantaria fenestrada foram niveladas ali por pedreiros do século XVIII, sendo abadessa do mosteiro D. Teófila de Alvim. Os serviços prestados pelos bentos na tomada de Coimbra por Sesnando em 1064 foram apagados num século por turbulências suas ou desmandos profanos na Regra.

Transformado em refúgio de donas e donzelas de prol pela filha de Sancho I, Lorvão até mudou de obediência.

A S. Bento sucedeu S. Bernardo, que os padrinhos cistercienses dos nossos primeiros reis tinham favorecido aqui e que Herculano foi encontrar vestido de casaca nos altares!


Fala depois do triste fim das freiras, da visita de Herculano a Lorvão e à vila de Penacova (1853) e da carta que este dirigiu ao Governo de então:

Assim, a alma do mosteiro antiquíssimo escondeu-se doída e bárbara no mínio[2] do Apocalipse, o códice precioso que as esbulhadas freiras de 1853 ofereceram a Herculano quando depois da sua visita a Lorvão em Julho daquele ano, o poeta de O Mosteiro Deserto protestou contra a mísera situação daquelas pobres mulheres, na célebre carta a António de Serpa Pimentel publicada no Periódico dos Pobres. O governo consignou-lhes 600$000 réis por ano em porções côngruas a descontar até à morte da última […]

O nosso itinerário repete em solidão e aspereza de trilhos a jornada do historiador há noventa e oito anos. São os mesmos outeiros “acumulados uns aos outros”, as mesmas pequenas culturas forçadas pelo mateiro do rapão. Herculano, ante a surpresa do convento ao fundo da bacia de Lorvão, hesita em comparar o vale ao cálice de um lírio, e manda “ver uma flor que tenha um pistilo grosso e curto”, flor com um lado rasgado, que dá escoante às águas.


Chegado a 15 de Julho, a 16 compulsou os documentos do arquivo, visitou o mosteiro por dentro, deu um romântico passeio ao pôr -do -sol pelas encostas; e anota no canhenho, percorrendo a cerca interior: “ os hortejos ou jardinzinhos das freiras defuntas cobertos de urzes: impressão que deve produzir nas freiras vivas”.


Talvez menos triste do que nele, que, mal chegara, gizou mentalmente a comovido artigo que havia de arrancar ao estado os 600$000 réis por ano-doze contos de hoje, pouco mais, para a pitança das pobrinhas [...] Mas que arranque e poder tinha um escritor há cem anos!

A 17 de julho juntavam-se a Herculano o Dr. Ferrer, lente de Direito em Coimbra, e o Dr. Joaquim Correia de Almeida, administrador de Penacova. [...]


Vitorino Nemésio transcreve agora o que Herculano anotara no seu diário: ”Julho 17, Domingo. Chegada do Ferrer e do Correia. A missa. As freiras no coro. As despedidas. Saudades de Lorvão. Viagem para Penacova, caminhos impérvios pelas encostas dos montes.”

“Os sete quilómetros, porém, que deitam de Lorvão a Penacova, não exigiriam tanto; e do convento a Sernelha, Figueira, Telhado, enfim ao alto camarote de penhas sobre a garganta do Mondego, então quase sem água, as emoções da abalada não dariam tempo a sentir os pés doridos da marcha.– comenta Nemésio.

[1] Onde está sepultado S. Bento, nota nossa
[2] Óxido salino de chumbo; vermelhão, zarcão.




terça-feira, dezembro 14, 2021

Lorvão: do Museu de 1921 ao Centro Interpretativo de 2021




Acabamos de ler na página do Facebook do Município de Penacova que "a ideia de criação de um espaço museológico que permita divulgar o riquíssimo acervo patrimonial do Mosteiro faz precisamente cem anos, tendo tido origem na Junta de Freguesia de Lorvão."

Viajando um pouco na história, concluímos que, de facto, a criação de um museu de arte em Lorvão foi anunciada em Maio de 1921, sob a responsabilidade da Junta de Paróquia local.

O museu ficaria instalado numa sala do edifício do Mosteiro integrando o valioso património que ainda existia e que fora confiado àquela Junta. Património diminuto, comparado com o que um século antes existira. Depois da extinção das ordens religiosas muitos bens foram ou transferidos para organismos do Estado ou leiloados, beneficiando a maior parte das vezes interesses particulares. Outros foram, literalmente, roubados.

As boas intenções das gentes de Lorvão no sentido da conservação do próprio Mosteiro e da salvaguarda do seu acervo foram, desde o início, alvo de acesa polémica. O Conselho de Arte e Arqueologia tentou mesmo, por via legal, impedir a sua concretização. Também o director do Museu Machado de Castro não escondia, à época,  a intenção de incorporar nos museus nacionais os bens das ordens religiosas extintas.

Recorde-se que por volta de 1920 o sacristão da igreja foi subtraindo, durante mais de um ano, uma valiosa coleção de objectos de arte religiosa que ia vendendo a particulares e colocando nas casas de penhores da cidade de Coimbra. Descoberto e preso o seu autor em finais de 1920 a polícia conseguiu recuperar a maior parte do acervo desaparecido. Foi nesse contexto que, entretanto, a Junta de Paróquia requereu que lhe fossem entregues os objectos roubados.

Conta-se que toda a região "desde Penacova ao Dianteiro, era um perfeito alfobre de antiguidades (...) sendo visitada com frequência por colecionadores e intermediários". O saque já vinha muito de trás. Escrevia "O Despertar" em 1920: "desde a extinção dos frades (1834) até à morte da última freira (1887) o Convento de Lorvão não deixou de ser saqueado pelos gatunos de todas as categorias, pelos próprios capelão e serventuário do convento e da igreja, eclesiásticos e seculares".

A entrada em Lorvão dos objectos recuperados ocorreu no dia 12 de Maio de 1921, com grande pompa, sendo expostos ao público no Domingo seguinte. O júbilo tinha a ver com a recuperação dos bens roubados, em geral, mas também com a luta vitoriosa travada pelo povo de Lorvão no sentido do regresso à origem daquelas preciosidades, contra aqueles que defendiam a sua cedência ao Museu Machado de Castro.

Finalmente, em 10 de Julho do mesmo ano, foi aberto ao público o Museu de Lorvão. Não deixando de se reconhecer que muitos objectos já estavam irremediavelmente na posse de museus de Coimbra e de Lisboa, esperava-se, mesmo assim, que o número de visitantes ao mosteiro aumentasse significativamente. A criação oficial do "Museu Regional e Paroquial de Lorvão" só se concretizou no dia 1 de Julho de 1923.

O Museu foi sobrevivendo, mas as aspirações de conservação e salvaguarda e de atração turística foram ficando pelo caminho. Sem meios técnicos, sem uma rede de estruturas de apoio, acabou por definhar, à semelhança do que aconteceu com a maioria dos museus locais em Portugal.

Em 1981, o Dr. Henrique Coutinho Gouveia defendeu que "a eventual revitalização do Museu [de Lorvão] terá de precedida de uma profunda reestruturação que, ampliando-o, acabe por promover o aproveitamento museológico do próprio Mosteiro, assinalando-lhe como um dos principais objectivos o de vir a proporcionar a compreensão da sua influência na história local e das profundas relações que se estabeleceram com o povoado vizinho. Viria a assumir então um papel de espelho da região, passando a actuar eficazmente na preservação e divulgação do respectivo património e fazendo-se inclusive eco dos seus principais problemas e aspirações (...). "

Adianta a referida página do Facebook que "o executivo municipal deu luz verde ao projeto que permitirá criar o Centro Interpretativo do Mosteiro cisterciense de Lorvão, uma obra inacabada há muitos anos."

sábado, dezembro 11, 2021

Terras de "Pena Cova" no final do séc. XVII

 



O Promptuario das terras de Portugal com declaração das comarcas a que tocam tem a data de 1689. Trata-se de um manuscrito, actualmente à guarda da Biblioteca do Exército, elaborado por Vicente Ribeiro de Meireles, funcionário da Secretaria da Junta dos Três Estados.

O documento tem 364 páginas e no capítulo “Provedoria de Coimbra” vamos encontrar o nome de diversas localidades, hoje pertencentes ao concelho de Penacova, mas que nos finais do século XVII se encontravam dispersas por variadas circunscrições.

Assim, podemos ler: [grafia original]

 «A vila de Pena Cova de que é donatário o Duque de Cadaval tem ouvidor que faz as eleições, que confirma o Duque; e nesta villa não entra o corregedor da comarca; tem no termo os lugares seguintes: [sempre antecedidos do termo Aldeia]

Chão de Baixo, de Val Gonçallo, Gondelim, Carvalhal de Mansores, Vila Nova, Riba de Baixo, Riba de Cima, Ferradosa, Sanguinho, Felgar, Travasso, Roqueira, Carvoeira, Cazaes, Ervideira, Aboboreira, Aldeia Nova, Ferreira, Villa Cham, Lombada, Alveite Grande, Veade, Couchel, Branca, Pinheiro, Carvalhal de Laborins, Couço, Oliveira do Cunhedo, Venda Nova de Poyares, Pereiro de Baixo, Pereiro de Cima, Pereiro de Além, Crasto, Soutelo, Villar, Miro, Carregal, Val do Tronco, Paradella, Cortiça, Serfreu, Farinha Podre, Quintella, Silvarinho, Val da Vinha, Leborins, Ribeira, Beco, Paredes, Cunhedo, Almassa, Lagares, Travanca d’aquem e Travanca d’alem."

A Vila de Carvalho é da coroa, tem um juiz ordinário, vereadores e procurador que confirma o corregedor da comarca que entra nesta vila por correição; e no seu termo tem os lugares seguintes: 

Aldeia de Carvalho Velho, Aldeia de São Paulo, Aldeia de Carvalhais, Aldeia de Val de la Justa, Aldeia de Lourinhal e Aldeia de Penderada.

Note-se que a “aldeia” de Lorvão, "Figueiro" de Lorvão e Friúmes pertenciam, à época,  ao Termo de Coimbra.

Por sua vez, as aldeias de S. Paio, Cruz do Souto, Castinçal, Sobral, Parada e Val do Barco estavam afectas ao concelho de Óvoa

Este manuscrito refere ainda o Couto de Monte Redondo, nos seguintes termos:
 
“O Couto de Monte Redondo de que é donatária a Casa de Aveiro, tem um juiz ordinário, que confirma o corregedor da Comarca, e entra neste couto por correição, e o crime pertence ao juiz de fora de Coimbra.”

Observações:

Atente-se ao facto de se escrever Pena Cova, o que parece explicar que ainda hoje os penacovenses pronunciem Penacova com as duas tónicas “PE” e “CO”.

Outra curiosidade é “Travanca d’aquém” e “Travanca d’alem”. Ainda não há muitos anos as pessoas dali se referiam a um “Lugar de Além” como sendo a actual Portela. Terá a ver com a Travanca d’Alem?

Alguém saberá dizer onde ficava a aldeia de Chão de Baixo, no termo de Penacova? E “Cazaes”? Terá a ver com Casal?

“Roqueira”, a actual Ronqueira, teria a ver com “roca”?

“Figueiro” de Lorvão? O autor do manuscrito adverte para o facto de os nomes aqui escritos aparecerem por vezes «contra a boa pronunciação e ortografia», para “não se lhe mudar o som com que se nomeiam e são conhecidas”.

Como se verifica, ao termo de Penacova pertenciam muitas terras do actual concelho de Vila Nova de Poiares.

Quanto à actual freguesia de Sazes não conseguimos localizar, de momento, qualquer referência.

domingo, novembro 14, 2021

Memórias de Paradela da Cortiça: o livro, a lenda da terra e o fascínio pelo passado



Só agora nos chegou às mãos este livro publicado em 2012. Agradeço à Dr. Arménia Coimbra a oferta desta obra, por intermédio do amigo José Eduardo Almeida Correia. Falo de “Memórias de Paradela da Cortiça” de Maria de Lourdes Pereira Morgado.

São cerca de 120 páginas que nos falam da “vida sã e simples de quem nasceu, cresceu e morreu, dedicando parte de si ao torrão natal” e nos transmitem “algo que vem sendo contado de geração, em geração” - escreve a autora logo na primeira página.

Conta-nos mais adiante que “do convívio com as pessoas da aldeia” lhe ficou “o fascínio pelo passado” que agora “recorda com saudade”.

Trata-se de um registo importante da histórica e tradições de Paradela, que evoca monumentos, lendas, tradições, dias festivos, profissões, habitação, gastronomia, vida escolar, agricultura, vida social, individualidades, pessoas típicas e estórias curiosas.

É com um olhar poético que Maria de Lourdes Morgado parte para nos transmitir este seu saber e a grande afeição pela sua terra: “A nossa Paradela, com as suas casas brancas e telhados vermelhos, a Igreja com a sua torre simples, os nossos canteiros e as nossas flores… Olhamos o azul do céu e contemplamos o mais belo quadro que jamais algum pintor conseguiu pintar sem ser o Criador.”

Ao longo do livro as memórias jorram de página em página, por vezes de um modo quase caótico, não esperando por uma qualquer lógica de espaço e de tempo (que poderia até prejudicar esta torrente de recordações). E no tempo se perde a Lenda de Paradela.

O livro de Lourdes Morgado não podia deixar de a registar. Façamos um resumo com base no seu texto:

Paradela seria uma pequena aldeia situada num lugar chamado Casal, perto das Poeiras. Nesses tempos, o cemitério era no sítio da Cabeça dos Finados, junto à Cumeada.

A dada altura, a terra foi assolada por uma grande “febre” e alguns habitantes da aldeia morreram por ela vitimados.

Ali viviam três irmãos piedosos que logo se entregaram à oração, pedindo ajuda divina para tão grande calamidade. Certa noite tiveram um sonho no qual uma voz lhes disse para irem a determinado sítio onde encontrariam, escondido nuns escombros, um nicho com uma imagem. Deveriam trazer a imagem para a aldeia e aí construírem uma igreja onde a venerariam. E mais: a voz dissera também para mudarem o povoado para o lado do sol.

Acordaram perturbados e aperceberam-se que todos tinham tido o mesmo sonho. No dia seguinte lá partiram seguindo o destino que em sonho lhes havia sido indicado. Ao fim de algum tempo encontraram a imagem, que era de S. Sebastião, e envoltos naquele mistério, regressaram à sua terra, “radiantes e cheios de fé”, aquela fé que “ainda hoje perdura nos paradelenses”.

Mudaram a localização do povoado e, apesar de a igreja ter demorado alguns anos a ser construída, desde logo começaram a venerar a santa imagem.

Assim, S. Sebastião passou a ser o protector da aldeia. Vieram muitas epidemias, como a cólera do século XIX e a pneumónica de 1918, e Paradela sempre foi salva da “peste”, não morrendo ninguém. Também nas guerras os soldados de Paradela sempre sobreviveram aos combates e nunca sofreram qualquer mutilação.

Por tudo isso “o nosso São Sebastião é bem digno da nossa devoção” – conclui Maria de Lourdes Morgado.

“Memórias de Paradela da Cortiça”, um livrinho que nos fala-nos das “tradições perdidas” que muitas vezes “só existem nas nossas memórias”, mas que agora, muitas delas, ao ficarem registadas em letra de forma, perdurarão, certamente, por mais uns longos anos se, para tanto, este precioso livro for devidamente divulgado e estimado por todos os naturais e residentes em Paradela.

Contracapa: pensamos ser um retrato da autora








quinta-feira, outubro 14, 2021

"Quem foi quem na toponímia de Penacova" retrata algumas das personalidades que marcaram a vida do concelho

O jornal "A Comarca de Arganil" de hoje, 14 de Outubro, noticiou o lançamento do 1º volume dos "Cadernos de Toponímia", que decorreu no dia do feriado comemorativo da Implantação da República. Para memória futura, transcrevemos o texto publicado naquele periódico.

"Em dia de comemoração do 5 de Outubro, e integrado no programa do município para assinalar a Implantação da República em Portugal, realizou-se no Salão Nobre dos Paços do Concelho a apresentação do livro Quem foi quem na toponímia de Penacova: antropo-topónimos das vilas de Penacova, Lorvão e S. Pedro de Alva. Trata-se do primeiro volume de uma colecção que pretende não apenas analisar o caso de ruas, praças e largos com nomes de personalidades marcantes, mas todos os casos de toponímia das muitas localidades do concelho de Penacova.

Este trabalho integra-se, em parte, na dinâmica que levou à criação em 2019 de uma Comissão Municipal de Toponímia, de que o autor é membro convidado, juntamente com o Prof. Reis Torgal. O Regulamento Municipal de Toponímia e Numeração de Polícia, entrado em vigor a 1 de Fevereiro de 2020, é também resultado do trabalho dessa Comissão, coordenada pela Vereadora com o Pelouro da Toponímia, Drª Sandra Ralha.

O livro, de 80 páginas, apresenta uma síntese biográfica das vinte e quatro personalidades que constam da toponímia das três vilas referidas: Abel Rodrigues da Costa (1902-1990), Adelino Prista da Fonseca Hortelão (1901- c. 1980), Alberto José da Silva Sousa Leitão (1844-1889), Alípio de Oliveira Sousa Leitão (1839-1906), Álvaro Barbosa Ribeiro (1921-1999), António Alves Mendes da Silva Ribeiro (1838-1904), Artur Soares Coimbra (1918 -1976), Augusto César Barjona de Freitas (1834-1900), David Ubaldo da Silva Leitão Cardoso de Oliveira (1803-1879), Evaristo Lopes Guimarães (1857-1926), Fernando Augusto de Andrade Pimentel e Melo (1836-1892), Fernando Baeta Bissaya Barreto Rosa (1886-1974), Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro (1934 -1980), Homero António Daniel José Pimentel (1914-1987), João António Gomes (1890-1983), João Martins da Costa (1921-2005), Joaquim Maria Leite (1829-1896), José António de Almeida (1819-1901), José Horácio de Moura (1908-1995), José Maria de Oliveira Matos (1847-1924), José Maria Viegas Pimentel (1899 -1964), Maria Amélia de Orleães (1865-1951), Mário da Cunha Brito (1890-1953) e Maurício Vieira de Brito (1919-1975).

Tem a assinatura de David Almeida, autor que nas palavras do Professor Doutor Luís Reis Torgal, prefaciador e apresentador, “já é conhecido em Penacova e a quem é reconhecida a sua qualidade de procurar ser rigoroso, consultando todas as fontes que é possível, ou que lhe é possível, dado que este tipo de trabalho é complementar da sua nobre função de professor.”

Também na Nota de Apresentação, o Presidente da Câmara, Dr. Humberto Oliveira, reafirmou o apreço pelo autor, designadamente “pelo seu empenhado esforço em partilhar” com os penacovenses o “seu conhecimento e o seu amor pela História Local” dando-nos a conhecer “elementos que fazem a diferença” no campo da História de Penacova.

A terminar a apresentação o autor agradeceu ao Professor Doutor Luís Reis Torgal “todo o incentivo e apoio na concretização deste trabalho” e a “honra que lhe concedeu ao escrever o prefácio”. À Câmara Municipal, em especial ao seu Presidente, Dr. Humberto Oliveira, à Dr.ª Sandra Ralha, responsável pelo pelouro da Toponímia e ao Vereador da Cultura, Dr. João Azadinho, deixou também um agradecimento pelo “interesse e a disponibilidade para a publicação” de mais um trabalho da sua autoria.

Do programa das comemorações constou também a assinatura do contrato de doação de películas fotográficas de Luís Francisco da Cunha e Menezes, fotógrafo penacovense, bem como a deposição de uma coroa de flores junto ao busto de António José de Almeida."






sábado, setembro 25, 2021

Bibliografia sobre Lorvão conta com mais um estudo de Maria Alegria F. Marques

 


No dia 18 de Setembro teve lugar, no Mosteiro de Lorvão, a apresentação do livro Memória de um Mosteiro: Lorvão, séculos IX-XII. História de uma comunidade masculina, de Maria Alegria Fernandes Marques, professora catedrática jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A obra, editada pela Câmara Municipal de Penacova, foi apresentada por Maria José Azevedo Santos, também ela professora catedrática da referida Universidade.

De acordo com a autora, este livro tenta preencher algum vazio ainda existente sobre a acção organizativa e até orientadora do Mosteiro, na fase em que foi ocupado pelos monges.  Por outras palavras, perceber melhor “o papel que o mosteiro teve na organização e desenvolvimento de boa área da bacia do Mondego, pelos seus responsáveis, enquanto foi uma comunidade de monges de fronteira.”

O livro começa por fazer em traços largos a evolução histórica desta região, desde a ocupação muçulmana em 715 até à consolidação da fronteira do Mondego em 1147. Passa depois à história do mosteiro, desde a comunidade primitiva até ao “momento funesto do seu fim” nos inícios do século XIII. 

Este estudo insere-se no conjunto de outros que a autora tem vindo ao longo de alguns anos a publicar: Inocêncio III e a passagem do Mosteiro de Lorvão para a Ordem de Cister; Vida e morte de um mosteiro beneditino: o caso de Lorvão, e  O Mosteiro de Lorvão: ainda a saída dos monges e a entrada das freiras.

Um livro - segundo a autora - que apesar do rigor histórico e científico pretende ser de leitura acessível ao “cidadão comum interessado na sua terra, no seu passado, nas suas raízes e nos seus símbolos” isto é, a todos os penacovenses que se revejam, “com orgulho, numa instituição que levou longe o nome da sua terra. “

 


 

 

sábado, setembro 11, 2021

As Invasões Francesas e o Mosteiro de Lorvão, de 1807 a 1811 (IV)


RELAÇÃO DO QUE SE PASSOU NESTE MOSTEIRO DE LORVÃO DESDE A INVASÂO DOS FRANCESES ATÉ QUE FORAM EXPULSOS DO REINO, A TERCEIRA VEZ EM ABRIL DE 1811por  Joana Delfina de Albuquerque, cartorária do Mosteiro


[Conclusão]

Sabendo as seis religiosas no dia seis que os franceses tinham saído de Coimbra, resolveram recolher no dia 7, que era Domingo, no dia de N. S.ª do Rosário, com mais quatro outras dos sítios vizinhos, que se lhes juntaram.
Vieram ouvir missa a este mosteiro, onde com mediação de poucos dias se chegou a aumentar o número de 25.

Continuaram logo as súplicas a Deus a quem davam graças por se verem outra vez no seu mosteiro livres dos insultos bárbaros de um exército tão desenfreado; pois que apenas em S. Mamede encontraram duas religiosas que foram a madre D. Paula Micaela, já muito decrépita, e a madre D. Joaquina Cândida, demente, a quem não trataram como costumavam, satisfazendo-se com roubarem os móveis de outras religiosas, que para lá os tinham mandado.

Assim mesmo logo começaram a rezar em coro regularmente do modo possível em uma comunidade tão pequena e em conjunturas tão calamitosas, porque além de serem muitas as empregadas nas oficinas do mosteiro, outras andavam de contínuo no exercício de fazerem manifestar os remédios temporais e espirituais a a um grande número de criadas enfermas da malina que então grassou dentro do mosteiro, da qual morreram vinte e uma, e nenhuma religiosa foi atacada nem o médico deste mosteiro o Dr. António Xavier Pereira da Silva que logo recolheu e constantemente assistiu às enfermas com todo o desvelo assim como alguns religiosos do colégio da Estrela e Pedreira, os quais lhes assistiam e sepultavam e diziam as missas à comunidade, porque dos religiosos da casa apenas nos fins de Novembro apareceu e se conservou assistindo aqui o padre cartorário Fr. António Montenegro.

O susto contínuo de voltarem os franceses da província da Estremadura moveu algumas religiosas que se achavam no mosteiro a procurarem a casa dos seus parentes e outras a nossa quinta da Esgueira para onde logo no princípio tinham partido algumas religiosas e depois em os fins ou princípio de Dezembro se lhes juntou a actual prelada a Ex. ma Srª D. Ana Luísa de Vasconcelos Coutinho que até então andou pela sua terra de Soure e vizinhanças, chegando a ajuntar-se ali dezoito religiosas.

Apesar dos contínuos sustos em que estávamos da volta do inimigo e pelos reforços que lhe entravam que faziam as suas costumadas atrocidades por onde passavam, como era pelas terras de <poiares e outras, sempre continuaram a permanecer religiosas neste mosteiro, as quais intimamente , no dia 13 de março de 1811 foram obrigadas a sair rapidamente para as vizinhanças do Buçaco ficando ainda neste mosteiro a madre D. Maria Arcângela de Melo, a madre D. Leonor Joana de Albuquerque, a madre D. Grácia Perpétua Beltrão, e mais cinco religiosas que não se tinham ainda podido retirar, mas nesse dia chegou ao mosteiro aviso do general Trant que lhes mandou dizer que os franceses tinham desistido do empenho de entrarem em Coimbra e que por Foz de Arouce se retiravam perseguidos do nosso exército, o que sabido pelas religiosas fugidas fez com que se recolhessem todas com as comodidades possíveis, que todas lhes tinham faltado na saída.

Conservou-se na quinta da Esgueira a prelada com as religiosas acima mencionadas, acompanhadas pelo padre capelão deste mosteiro, Fr. João do Amaral, até à semana antes ada Páscoa, princípios de Abril, que recolheram juntas pela igreja, onde se cantou o Te Deum laudamus e assim mesmo se continuaram a recolher as outras religiosas que faltavam e os padres confessor e feitor.

Em 5 de Novembro de 1811 o prelado veio fazer eleição de nova prelada que foi a Ex.ma Srª D. Maria Tomásia de Albuquerque, e por recomendação do mesmo prelado a mim, D. Joana Delfina de Albuquerque, cartorária deste mosteiro, para se fazer assento do que se passou, assim o executo com a possível individuação, por ser uma das que primeiro se recolheram a este mosteiro."






quinta-feira, setembro 09, 2021

Locuções populares (10): IR PARA O MANETA




A expressão “Ir para o maneta” tem origem nas crueldades praticadas pelo general Loisson durante a primeira invasão francesa, significando desaparecer, morrer, avariar-se, acabar…

Portugal, velho aliado da Inglaterra, recusou-se a aderir ao Bloqueio Continental e Napoleão invadiu Portugal. O general Jean-Andoche Junot entrou em Portugal pelo vale do Tejo, a 17 de Novembro de 1807, seguindo o caminho mais curto para Lisboa.

Das tropas de Junot fazia parte o general Louis Henri Loisson (1771-1816), prestigiado militar que tinha perdido uma mão numa campanha na Suíça.

Este oficial distinguiu-se, durante a 1ª invasão, pela ferocidade com que ordenava prisões, fuzilamentos e atrocidades.

A fama de Loisson, o ‘”maneta”’, como o povo lhe chamava, chegou a todos os cantos do país. Quando alguém era preso por ordem deste general, a probabilidade de escapar ileso era era quase nula. E quando a alguém isso acontecia, dizia-se que tinha ido para o maneta. 

Tal foi o medo que se instalou que se alguém falava de modo menos cuidadoso, alertava-se: "Cuidado, vê lá se queres ir pró maneta!”. 

A expressão manteve-se até aos nossos dias, apesar de muitas vezes nem sequer se associar já às Invasões Francesas.

terça-feira, setembro 07, 2021

As Invasões Francesas e o Mosteiro de Lorvão, de 1807 a 1811 (III)

 por Joana Delfina de Albuquerque, cartorária do Mosteiro

[continuação]


Em dezanove e vinte de Setembro esteve alojado no hospício dos religiosos deste mosteiro o general Lord Wellington com todo o seu estado maior
, sustentando-se à sua custa, sem que do mosteiro fosse mais que algumas cousas para o serviço e um mimo de doce, que ele agradeceu muito à Prelada, tratando-a com a maior civilidade, assim como a toda esta comunidade e lhes disse que não estávamos aqui bem e nos devíamos retira, para o que ele concorreria em caso de precisão.

Logo no dia 22 de manhã começaram a sair deste mosteiro algumas religiosas, mesmo a pé, consternadas e atemorizadas por verem aproximar-se o inimigo e que já os padres confessor e feitor se tinham ausentado de noite sem o publicarem.

De tarde saíram muitas mais religiosas e a prelada, da forma que se puderam arranjar, e a maior parte sem parentes; não tendo antes a prelada proporcionado meios alguns para isto, pela impossibilidade em que estava o mosteiro por falta de dinheiros.

Desde esse dia até o último de Setembro foi saindo a comunidade acomodando-se algumas religiosas mais velhas e das terras mais remotas, com muitas criadas, no lugar de S. Mamede.

Em o primeiro de Outubro por fim da tarde acabaram de sair as 6 únicas religiosas que ainda aqui existiam, para o sítio de Vale do Fojo, como foram a madre ex-abadessa D. Maria Arcângela e a madre ex-abadessa D. Maria Tomásia de Albuquerque e as madres D. Antónia Gertrudes de Albuquerque, D. Ana Bárbara, D. Maria Delfina. D. Joana Ferraz, e D. Maria Cândida, onde se conservaram até domingo 7 do dito mês de Outubro, amparadas pelo caritativo, zeloso e inteligente escrivão deste mosteiro José Alves Cardoso, que não só dirigia tudo o que respeitava à subsistência e cómodo possível das religiosas e grande número de criadas, mas a que o mosteiro onde tinham ficado quatro criadas muito velhas, não fosse roubado pela gente deste povo, como pretenderam e ele muito bem soube atalhar.

Sabendo as seis religiosas no dia seis que os franceses tinham saído de Coimbra, resolveram recolher no dia 7, que era Domingo, no dia de N. S.ª do Rosário, com mais quatro outras dos sítios vizinhos, que se lhes juntaram.

Vieram ouvir missa a este mosteiro, onde com mediação de poucos dias se chegou a aumentar o número de 25. [...]
[continua]

segunda-feira, setembro 06, 2021

As Invasões Francesas e o Mosteiro de Lorvão, de 1807 a 1811 (II)

 por 

Joana Delfina de Albuquerque, cartorária do Mosteiro


(Continuação)

“Poucos meses passámos que não nos víssemos em novos sustos e precisadas a redobrarmos as preces e devoções, dirigindo ao Céu as nossas súplicas pela salvação do reino, de perto ameaçado por outro exército que projectava nova invasão.

Realizou-se esta segunda invasão dos franceses comandados pelo general Soult, entrando por Chaves nos fins de março de 1809 e passando por Braga conseguiu entrar no Porto em quarta feira de trevas 29 de Março, o que logo se soube aqui e causou uma grande aflição, obrigando algumas religiosas a saírem da clausura com o fim de escaparem ao perigo, que se receava, de chegarem a este mosteiro os franceses por estarem ameaçando o rio Vouga.

Não passaram adiante porque em o princípio de Maio entrou em Coimbra o exército inglês e português comandado pelo general Lord Wellington, que no dia 12 fez a sua entrada no Porto, que desamparou o exército francês retirando-se pela mesma estrada por onde tinha vindo, com muita perda e geral alegria das gentes, de que participou esta aflita comunidade a que logo se vieram unir as religiosas que tinham saído a todas juntamente agradecemos a deus este grande benefício.

Tinha precedido a este acontecimento terem-se tomado todas as medidas possíveis de acautelar-se ao saque furioso de tão bárbaros inimigos os preciosos tesouros dos corpos das nossa Santas Rainhas, trazendo-os dos seus altares para dentro do mosteiro, escondendo-se com a maior cautela e possível decência, o assim mesmo o santuário e resto das alfaias e preciosidades da igreja; conservando-se tudo desta maneira na terceira invasão do maior exército francês comandado pelos general Massena que entrou no reino e se fez senhor da praça de Almeida em 22 de Agosto de 1810. Em 19 e 20 de Setembro esteve alojado no hospício dos religiosos deste mosteiro o general Lord Wellington com todo o seu Estado Maior (…)

CONTINUA


sábado, setembro 04, 2021

AS INVASÕES FRANCESAS E O MOSTEIRO DE LORVÃO, de 1807 até 1811 (I)

por Joana Delfina de Albuquerque, cartorária do Mosteiro

“Logo que pelo Verão do ano de 1807 se soube neste mosteiro de Lorvão que o exército francês marchava pela Espanha para invadir este reino, com quem a França tinha rompido, despedindo o nosso embaixador, esta comunidade começou a dirigir ao Céu as suas fervorosas súplicas por meio de preces e vários exercícios de piedade, afim de conseguir de deus livrar o reino do perigo iminente que o ameaçava com a entrada dos franceses; a qual fez o seu exército, comandado pelo general Junot, em Lisboa no dia 30 de Novembro 1807, tendo-se evadido no dia 27 a rainha, o príncipe regente e mais família real com a sua corte para ao Rio de Janeiro; cujas notícias não afrouxaram as rogativas a Deus e só causaram uma mágoa geral e consternação. 



Em Fevereiro de 1808, esta comunidade se viu necessitada (como todo o reino) a reconhecer por seu soberano ao Imperador Napoleão, e enviarmos muita parte da prata deste Mosteiro para a contribuição que ele impôs ao reino, em que ela toda devia entrar, menos os cálices e juntamente concorrermos com o terço das nossas rendas, do que pouco chegámos a mandar, porque em Junho desse ano se começou pelas partes e províncias do norte a rebelar a Nação contra os franceses, que em Agosto do dito ano foram obrigados a fazerem uma convenção com o general inglês depois de serem batidos pelo seu exército e [pelo] português na batalha do Vimeiro, o que se verificou no dia 15 de Setembro, que se arvoraram em Lisboa as nossa bandeiras com a maior alegria, de que participou esta comunidade e dirigiu ao Céu as mais vivas e solenes graças por este tão desejado benefício, sem que porém nunca cessassem os ditos exercícios para implorar a duração de tão grande bem.

Era prelada deste Mosteiro a Ex.ma Srª D. Maria Casimira de Meneses, e estando no fim do seu triénio, passou esta comunidade a fazer nova eleição, e saiu eleita a Ex.ma Srª D. Ana Luiza de Vasconcelos.

Poucos meses passámos que não nos víssemos em novos sustos.”

CONTINUA

OBS: ESTE TEXTO FOI PUBLICADO PELO "NOTÍCIAS DE PENACOVA" A PARTIR DO SEU 1º NÚMERO, PELA MÃO  DE AUGUSTO MENDES SIMÕES DE CASTRO