Entre Dezembro de 2015 e Janeiro de 2016
publicámos neste espaço um conjunto de artigos baseados num Relatório da Câmara
de Penacova datado de 11 de Outubro de 1898 e que, posteriormente, foi divulgado na imprensa local.
A dois anos de terminar o século XIX, foi
solicitado às Câmaras Municipais do país, um relatório sobre as condições de
vida dos “povos”, suas necessidades e aspirações. Deveriam também ser apresentados
alguns “meios de remediar ou atenuar o mal presente e preparar a prosperidade
futura”.
Assim, durante a vigência de um dos governos
presididos por Luciano de Castro, a Câmara de Penacova enviou ao Ministro das
Obras Públicas um importante documento que nos poderá ajudar a perceber, em
certa medida, o atraso estrutural do concelho.
A parte inicial do relatório faz uma
breve caracterização geográfica e tece algumas considerações sobre a situação
da agricultura.
“O concelho de Penacova está situado a
nordeste de Coimbra e confina pelo Norte com os de Mealhada e de Mortágua; pelo
nascente com os de Tábua e Arganil e pelo Sul com o de Poiares. A sua
superfície é de 160 km2 aproximadamente; a população é de 18 382 habitantes,
isto é, cerca de 114 habitantes por quilómetro quadrado.
O clima é frio e salubre, o solo muito
irregular e montanhoso, mas fértil. Por todo ele se cultivam cereais,
especialmente o milho e centeio, havendo também cultura de trigo, cevada e
aveia. É considerável a sementeira de batata e feijão. As vinhas davam-se optimamente
antes da invasão filoxórica, sendo o vinho de boa qualidade; hoje estão sendo
renovadas pela cepa americana, que vegeta excelentemente.
A produção de azeite era ainda há poucos
anos muito avultada mas tem decrescido muito, devido à moléstia que seca as
oliveiras.
Os castanheiros vegetaram optimamente
mas estão igualmente quase extintos pela moléstia que os afecta com grande
prejuízo para este concelho.
Há em geral bastantes árvores de fruto
das diversas espécies, que se desenvolvem e frutificam bem e os frutos são
saborosos, segundo a sua qualidade.
Nos terrenos mais fracos das encostas
dá-se bem o pinheiro, sendo grande a extensão desta sementeira e grande o seu
rendimento em madeira e lenha.
As terras cultivadas dão boas pastagens.
Não há terrenos desaproveitados, a não serem, nas serras, os baldios que são
extensos e apenas servem para pastagens de gados, e nas margens dos rios
Mondego e Alva os areais em que se pode alargar muito cultura do milho e
feijão pela notável fertilidade dos terrenos marginais, enquanto são inundados
pelas enchentes.
A riqueza não está acumulada, mas a
propriedade, em geral, excessivamente dividida. As terras amanhadas são na sua
maior parte regadas com a água das fontes e nascentes que há muitas, ou com a
das ribeiras e rios (Mondego e Alva) geralmente abundantes."
Prossegue o documento:
“No reino mineral são dignas de menção
as pedreiras de mármore de Sazes e de calcário das freguesias de Sazes e
Penacova de que se extrai cal preta de primeira qualidade, e as de granito,
para cantaria e mós, das freguesias de Penacova e Friúmes.
Não há neste concelho minas em
exploração, não obstante ser carbonífero o terreno ao sul da serra do
Bussaco. Estão registadas nesta comarca, no corrente ano, em favor de
Carlos Leuschner e outros, dez minas de metais preciosos, carvão, ferro, chumbo
e outros metais.
Não há indústrias dignas de serem
especialmente mencionadas a não ser as de madeira, lenha, cal e palitos.
Dadas as condições naturais do solo a
persistente actividade da população deste concelho, devia a sua riqueza ser
muito maior e o bem-estar mais geral.
Este facto é devido a causas várias, que
vamos apontar, algumas das quais são gerais e outras privativas deste concelho.
Começou a crise neste concelho com a
abertura da linha férrea da Beira Alta, afectando toda a população das margens
do Mondego pela supressão, quase completa, da indústria de barcagem que se
fazia entre a Figueira e a Foz do Dão.
Logo a seguir a filoxera devastou as
vinhas e outras moléstias secaram grande parte dos olivedos e castanhais,
ficando, por estes motivos, muitos braços sem trabalho e muitas famílias sem
suficientes meios de subsistência.
Mas nem se organizaram bandos
precatórios [ peditórios na via pública] nem a propriedade foi menos
respeitada; desenvolveu-se a emigração extraordinariamente, o que determinou a
afluência de capitais, vindos principalmente do Brasil, com que se sustentam muitas
famílias e se procura restaurar a cultura da vinha e melhorar todas as outras.”
Depois da caracterização geográfica e sócio-económica do concelho, com
referências à situação da indústria, incluindo a extractiva, reconhecia-se que
não fosse a emigração para o Brasil Penacova atravessaria uma situação ainda
mais grave.
O documento avança algumas soluções para os constrangimentos existentes.
“Diversas medidas legislativas podem, no nosso entender, animar esta regeneração
nascente e promover neste concelho uma prosperidade de que ele nunca gozou.
Desde que só pelo trabalho inteligente do homem se aproveita e valoriza a
feracidade natural do solo, a primeira coisa que se deve procurar é a economia
do tempo; e a este respeito, alguma coisa há a fazer, simplificando muitos
serviços.
Por exemplo: pela actual lei do recrutamento estão quase todos os mancebos ,
maiores de 20 anos, sujeitos ao serviço militar da 2ª reserva, e, em virtude do
disposto no regulamento dos serviços de reservas, não podem os reservistas
ausentar-se do seu concelho por mais de trinta dias sem participarem, na
respectiva administração do concelho, aquele para onde vão residir – um dia
perdido; depois, deve o reservista apresentar-se na administração do concelho
para onde vai residir dentro de 30 dias – outro dia perdido.Se novamente
regressar ao seu concelho passados dois ou três meses terá de perder outros
dois dias.
Mas ainda o pior é que em muitos casos (e aqui dá-se isso com os sarreiros,
ceifeiros, corticeiros, negociantes de palitos, etc.) os reservistas passam na
época própria do ano a exercer a sua profissão por grande parte do país, não se
fixando em determinado concelho; estes têm que optar pela transgressão do
regulamento, suspeitando-se as consequências, ou pela miséria proveniente da
falta de trabalho. Melhor seria exigir apenas a mudança de domicílio quando os
reservistas fossem para outro concelho com ânimo de fixar nele a sua
residência, tanto mais que podem ser prevenidos pela imprensa periódica ou
pelas famílias do seu chamamento ao serviço ou à revista.
Os serviços
administrativos nos concelhos e paróquias têm uma ordenação de tal forma
complicada que é muitas vezes impossível encontrar pessoal com as suficientes
habilitações para bem desempenhar os diversos cargos; e a iniciativa local é
entorpecida e esterilizada, especialmente nas corporações de fraca receita,
como são muitas câmaras municipais e quase todas as juntas de paróquia, pelas
excessivas formalidades que as leis exigem sem vantagem de fiscalização que
compense.
Deve dar-se mais
liberdade às corporações locais e tudo o que se fizer neste sentido merecerá
agradecimento dos povos.”
O relatório realça agora a importância da instrução primária, da enumeração das
carências existentes e das propostas de melhoria.
“Mas,
desembaraçada a actividade dos que trabalham de inúteis dispêndios do tempo, é
preciso dirigi-la por forma que a produção aumente em quantidade, perfeição de
trabalho e valorização. Para o conseguir, são precisas duas condições - a
instrução técnica e a facilidade de comunicações.
O trabalho inteligente produz mais e com
mais produção. Julgamos por isso de urgente necessidade que se restabeleçam os
antigos exames elementares e complementares nas sedes dos concelhos e as
escolas complementares nas mesmas sedes; que se organizem programas adequados a
cada concelho para a respectiva escola complementar; que se promova a
frequência das escolas, chamando de preferência ao serviço militar os mancebos
que não fizeram exame elementar e chamando na falta destes os que obtiveram
aquela habilitação; que se tornem obrigatórios para certos empregos os exames
elementares e complementares; que se divulguem, quando possível, os
conhecimentos elementares de agricultura por meio de manuais práticos distribuídos
aos alunos das escolas, etc.
Os decretos de 6 de Maio de 1892 e 22 de
Dezembro de 1894 foram verdadeiramente ruinosos para a instrução primária. O
número das aprovações nos exames elementares neste concelho foi,
respectivamente, nos anos de 1889 a 1891, de 28, 45 e 46.
Nos três anos seguintes o número de
aprovações baixou, por virtude do decreto de 6 de Maio, respectivamente a 23,
27 e 24.
No ano de 1891, único em que houve neste
concelho exames complementares por ter sido pouco antes criada a respectiva
escola, foram aprovados nestes exames 7 alunos. Pois, com a supressão destes
exames, nos anos de 1896, 1897 e 1898, foram aprovados no exame de instrução primária elementar
do 2º grau, respectivamente, 5, 6 e 3 alunos!
Estes números parecem-nos por demais
elucidativos. Viu-se que não só os professores se estimulavam procurando cada
um apresentar os seus alunos muito bem habilitados, mas os próprios alunos e
seus pais se não poupavam a trabalhos e despesas a fim de que o resultado
daquelas provas públicas os honrasse no seu pequeno meio.
As escolas complementares nas sedes do
concelho podiam habilitar os filhos dos lavradores e industriais de mediana
formatura e adquirir com pequena despesa, além da instrução geral, grande cópia
de conhecimentos profissionais sem contraírem os hábitos de luxo a que ficam
sujeitos saindo para fora do concelho.
Os programas destas escolas devia variar
segundo a necessidade dos concelhos; assim nos concelhos essencialmente
agrícolas, como este, se ensinassem melhores processos de preparação de
estrumes e adubos, a escolha destes segundo a diversidade dos terrenos e
sementeiras, as vantagens da irrigação e drenagem das terras, as vantagens da
arborização das encostas, da escolha das castas e enxertia e da criação de
gados, etc.
A iniciação dos alunos a estes estudos dispô-los-ia
a continuar neles depois de saírem da escola, levando-os a abandonar os
processos rotineiros que seus pais geralmente seguem e prepararia em breve uma
geração bem orientada. Noutros concelhos teria preferência o estudo da
escrituração comercial, do desenho industrial, etc.”
O documento que estamos a citar, reflectindo
os problemas e as preocupações dos responsáveis político-administrativos de
então, expõe a necessidade de criar mais “postos de trabalho.
“Assim preparada a
população laboriosa, preciso é que lhe não falte o campo onde exerça a sua
actividade. Neste sentido deve prover-se ao melhor aproveitamento das terras
tornando a agricultura não só mais intensa mas também mais extensa. A
propriedade tende a pulverizar-se por sucessivas divisões.
É conveniente estabelecer para o futuro
a indivisão das propriedades que não tenham um certo valor ou rendimento;
permitir a expropriação dos pequenos prédios encravados; dar, em caso de venda,
o direito de preferência aos proprietários confinantes desde que o prédio a
vender não tenha um certo valor.
Também neste concelho como em muitos
outros , em que o solo é muito irregular e montanhoso e a propriedade
excessivamente dividida, os pequenos prédios se acham depreciados, umas vezes
por não terem servidão legalmente constituída sobre os prédios vizinhos e
carecerem dela, outras por se acharem onerados com servidões desnecessárias. É
da máxima conveniência que a constituição, mudança e cessação de servidões sejam
feitas, em regra, no juízo conciliatório, dispondo-se que as custas no juízo de
direito sejam pagas pela parte que não quis conciliar-se, todas as vezes que na
sentença final seja atendida a petição do autor dentro das bases da proposta
conciliatória ou na proporção em que o for.
Deve igualmente simplificar-se o
processo para se efectuar o despejo nos prédios rústicos.
Pode alargar-se muito mais a área da
cultura neste concelho, já promovendo o aproveitamento dos areais nos rios
Mondego e Alva, facilitando o alinhamento e licença para as obras necessárias
já dando aos municípios mais liberdade na administração dos baldios,
permitindo às câmaras municipais a demarcação deles e o seu arrendamento,
aforamento ou venda, conforme se julgar mais conveniente; e quando os baldios
devam ser aproveitados para plantações ou sementeiras de árvores poderem as
câmaras chamar os povos vizinhos à sementeira ou plantação das matas comuns,
dando cada fogo um ou dois dias de serviço por ano, e podendo ser
divididos pelos mesmos povos os estrumes e as árvores cortadas para
desbaste.
Para o melhor aproveitamento agrícola e
industrial das Águas dos Rios Mondego e Alva convirá, talvez, considerar-se o
Mondego inavegável nos meses de Verão, do Porto de Gondelim para cima, afim de
serem dispensados os proprietários das condições onerosas com que actualmente
lhes são concedidas as licenças para construção e aproveitamento dos caneiros,
visto ser de importância nula, naquela época, a navegação.
O relatório da Câmara termina com algumas propostas para a melhoria das
situações e mesmo de resolução dos problemas.
“Convirá também dispensar igualmente as
formalidades e despesas de licença para as obras provisórias que para o mesmo
fim hajam de fazer-se. Não devemos esquecer que é raro o agricultor que sabe
fazer um requerimento.
A fim de facilitar o crédito rural, entendemos que bastará que as nossas leis
sobre o assunto se inspirem noutro pensamento que não o de aumentar o
rendimento do selo.
Assim, não devem subsistir algumas taxas da lei do selo incidindo sobre as
escrituras de mútuo e fiança do mesmo contrato; e, sobretudo, deve modificar-se
o artº 798 do código de processo civil, considerando títulos particulares de
mútuo pelo menos até à quantia de 50$000 réis.
Os capitalistas, naturalmente tímidos, mais do que usuários, só emprestam os
seus capitais com as garantias que julgam suficientes. Por isso convém que se
facilite a cobrança coerciva desses capitais, tornando-a o menos dispendiosa
possível, para que o credor tenha o capital seguro com uma hipoteca de pouco
maior valor. Nas circunstâncias actuais, quem tenha apenas 50$ ou 60$000 réis
em propriedade não acham quem lhe empreste um vintém, porque a cobrança coerciva
dele absorvia em selos e custas todo o valor da hipoteca.”
Mudando de assunto e retomando alguns aspectos já abordados, continua o
relatório:
“Não há neste concelho grandes indústrias (apesar de poderem aproveitar-se para
isso as óptimas quedas de água do Alva e Mondego) nem pode desenvolver-se o
comércio e as pequenas indústrias já existentes enquanto não estiverem abertas
as estradas real nº 48, desde Penacova até à Raiva, e a distrital nº 73, desde
Penacova até à estação do Luso. Aquela liga com Penacova e Coimbra, por caminho
curto, seis freguesias deste concelho que se acham separadas por serras quase
intransitáveis, e grande parte dos concelhos de Tábua e Arganil. Esta, já
construída em parte, atravessando as freguesias de Penacova e Sazes, serve povos
de uma região muito fértil, que actualmente tem péssimas estradas, e permite a
exploração das pedreiras de mármore de Sazes e de cal de Penacova e Sazes, que
se encontram precisamente ao longo do trajecto projectado da mesma estrada.
Sem estas duas construções não é possível fazer prosperar neste concelho a
agricultura, comércio e indústria, por causa da enorme dificuldade de
transportes.
Ainda julgamos dever chamar a atenção de v. ex.ª para outro assunto de grande
importância neste e em muitos concelhos do país.
Durante os últimos anos foi grande a
emigração para o Brasil, saindo muitos indivíduos sem passaporte legal.
A emigração clandestina acabou quase completamente depois das medidas
repressivas que foram tomadas, mas acham-se no Brasil milhares de portugueses
que aqui estão considerados como desertores e sujeitos a penas graves por não
haverem cumprido os preceitos da lei do recrutamento, resultando deste estado
de coisas, que os que se acham naquelas circunstâncias não regressam nem mandam
capitais, com grande prejuízo para eles e para o país. Deve pois estudar-se o
modo de remediar tais inconvenientes por forma equitativa.
“Tais são as considerações que submetemos à alta e ilustrada apreciação de V. Exª.“
Deste modo termina o Relatório.
Para conhecimento e apreciação dos
leitores mais interessados pelo passado de Penacova, entendemos fazer a sua
transcrição integral, que agora fica disponível para quem se interessar em
fazer a sua análise crítica.