10 abril 2021

Francisco Rodrigues Lobo e Penacova, nos 400 anos da sua morte

 

ESTÁTUA DE FRANCISCO RODRIGUES LOBO, EM LEIRIA

Assinalam-se em 2021 os 400 anos da morte do poeta Francisco Rodrigues Lobo (1574-1621), que foi um dos grandes escritores portugueses. Nasceu em Leiria e aí viveu, com ligeiros intervalos, para fazer a sua  formação em Leis, na Universidade de Coimbra, que concluiu em 1602. Aquela cidade está a assinalar a efeméride.

A sua vida não terá sido fácil e está revestida de algum mistério. Um traço característico da sua obra é esconder-se por detrás dos pastores que são os seus protagonistas, nas suas três obras principais: “A Primavera”, “O pastor peregrino” e “O desenganado”. Escreveu também “Corte na Aldeia”. Na sua poesia, Rodrigues Lobo evoca  os rios Lis e o Lena, os seus campos e vales. Tudo aí é utópico, como é próprio da literatura bucólica. 

Era Cristão Novo, o que gerava a desconfiança da Inquisição. O seu irmão, já depois da morte dele, foi objeto de um processo daquela. Lobo cresceu sob a protecção dos Marqueses de Vila Real, que tinham Paço em Leiria. No entanto, caiu, a dado momento, em desgraça junto do herdeiro da casa, que era D. Miguel de Meneses.

E é aqui que entra a relação com Penacova.

Não se sabe se a  perseguição terá sido por ser cristão novo, se teria a ver com uma “estranha” relação de amizade com D. Juliana de Lara, irmã de D. Miguel: “Relação que se manteve enquanto o poeta estudou em Coimbra, pois que a visitou mais de uma vez no palácio de Penacova, do Conde de Odemira, com quem, entretanto ela tinha casado. E dedicou-lhe uma das suas obras. Esta relação poderá ter estado na origem dos problemas.

Atente-se que no texto bucólico “A Primavera” (1601), há uma passagem que fala desta vila e arredores.

Por onde entre penedos e aspereza passa o Mondego … rompendo os montes seus... Corre por entre as serras furioso, perto donde o rio Alva se derrama...

Se alevanta uma pena graciosa... uma profunda cova se descobre…

“A Primavera” divide-se em três partes: Vales e montes entre Lis e o Lena, Campos de Mondego e Praias do Tejo. Cada parte corresponde à caracterização e representação de três espaços marcados pelo protagonista, nas passagens a três momentos que o destino lhe vai ordenando.

“Nesta obra existem espaços em que o texto enraíza uma realidade geográfica, porém também há espaços situados fora da realidade, num universo fascinante e sobrenatural (…) No episódio de Penacova o espaço aparece descrito com realismo e o elemento temporal é distante da realidade histórica devido a transformação das personagens reais e seres mitológicos (…) A ruptura de laços que ligariam a história narrativa ao tempo histórico é mais uma característica da construção da narrativa da novela pastoril."[1]

Francisco Rodrigues Lobo morreu perto de Santarém, num naufrágio no Tejo, quando regressava de uma viagem a Lisboa no ano de 1621.







[1] (1) Cf. estudo de Sirlene de Lima Corrêa Cristófano, mestre em Literatura, Culturais e Interartes, pela Faculdade de Letras Universidade do Porto – FLUP (2009).

Locuções populares (VIII): Tudo como dantes no quartel general d' Abrantes


"Tudo como dantes no quartel general de Abrantes" significa que não há nada de novo, que continua tudo na mesma.

A expressão parece ter origem  nos  acontecimentos ocorridos durante a primeira invasão francesa.

Napoleão decretou o ‘Bloqueio Continental’, isto é, o encerramento dos portos da Europa continental ao comércio com a Inglaterra. Como Portugal não cumpriu este bloqueio Napoleão decidiu invadir Portugal.

A 17 de Novembro de 1807 o exército francês entrou em Portugal pelo vale do Tejo, que era o caminho mais curto para chegar a Lisboa. Nevava nas serras espanholas e chovia muito nas Beiras, provocando cheias nos rios, dificultando a travessia dos cursos de água pelas tropas e, principalmente, pelos canhões.

Só a 23 de novembro de 1807 é que a vanguarda do exército francês entrou na vila de Abrantes, de forma dispersa, desordenada, com os militares famintos, rotos, sem poder sequer utilizar as munições, que estavam molhadas. Junot chegou no dia seguinte, e aí instalou o seu quartel-general para que as forças pudessem retemperar forças e para aguardar por grande quantidade de militares que se tinham atrasado

A vila permaneceu sob ocupação francesa durante muito tempo. Quando se perguntava como iam as coisas, que notícias havia da situação no país, a resposta era: Tudo como dantes no quartel d'Abrantes’.

Fonte: Repositório do Conhecimento Inútil

25 março 2021

Locuções populares (VII): Ficar a ver navios

 


Como sabemos, a expressão significa  não conseguir o que se deseja, ficar decepcionado. Também se diz por vezes “ficar a chuchar no dedo”...

A origem mais provável desta locução terá a ver com a primeira invasão francesa e a chegada de Junot a Lisboa, quando a família real fugia para o Brasil.

Em 20 de Novembro de 1807 as tropas francesas, reforçadas por forças espanholas, comandadas por  Junot, invadiram Portugal, entrando pela Beira Baixa.

O principal objectivo de Junot era chegar a Lisboa e prender a família real. Entretanto, a corte e a nobreza preparou-se à pressa para sair do país. Cinquenta navios transportando 15 000 pessoas juntamente com jóias, móveis, livros, e outras bens, saíram a 27 de Novembro rumo ao Brasil.

Junot chegou a Lisboa no dia 30. Já só conseguiu deter 3 navios porque  os restantes já iam demasiado longe… E assim, “ficou a ver navios”…

Há uma outra versão que relaciona a origem da locução com o desastre de Alcácer Quibir. Havia pessoas que durante muito tempo,  dos lugares mais altos da cidade de Lisboa, olhavam os navios que chegavam ao Tejo, à espera que de um deles surgisse o Rei D. Sebastião.

 

18 março 2021

Lorvão vai ter unidade hoteleira


Vai hoje ser assinado o contrato de concessão do Mosteiro do Lorvão para instalação de uma unidade hoteleira. A reabilitação e exploração do Mosteiro foi adjudicada à empresa Soft Time, de Luís Sérgio Aleixo Pita.

Saiba + sobre a Soft Time:
e sobre a notícia:

Depois de tanto impasse, oxalá seja desta que que aquele majestoso espaço "REVIVA" efectivamente, para bem do nosso concelho e da nossa região.

14 março 2021

Lenda de Penacova



Foi um dia o Mondego

Todo jovem, todo ledo

A Coimbra a estudar.

Levou os livros no intento

De passar bem o seu tempo

Se tivesse de parar.



Longa via já andada

Toda a roupa ensopada

No suor do corpo seu

Ali, na falda da serra

Deitou os livros em terra

E à fadiga se rendeu.



Lá do Céu meigo luar

Já cuidava em pratear

As negras cristas dos montes,

E o Mondego já tremia

Do medo que então sentia

Do rumor surdo, das fontes.



Temeroso ajoelhou

E de mãos postas rezou

Ao Senhor de quanto havia,

Que do Céu prestes mandasse

Um Anjo que lhe falasse

E fizesse companhia.



E o Senhor atento ouvia

E depois pena sentia

Do seu amargo penar…

Seu pedido despachou

E um anjo, prestes mandou

Num raio do seu lar.



E nessa noite distante

Jovem Mondego estudante

Dormindo naquela cova

Dos livros fez livraria

Da pena fez alegria

Da Cova fez Penacova



E o anjo da caridade,

Todo amor, todo bondade,

todo puro e sem labéu

Em sua visão infinda

Achou a terra tão linda

Que não mais voltou ao Céu



E quando um beijo de amor

Quis dar ao seu protector

No momento de partir

O anjo tornou-se astro

E sobe ao monte do Castro

E a meio pôs-se a sorrir



Não posso subir ao Monte

Para pôr na tua fronte

O meu beijo apaixonado?!

Ficarei aqui, ao fundo

Enquanto o mundo for mundo

Dizendo muito obrigado!



E a promessa do Mondego

Todo jovem todo ledo

Foi promessa de valor.

Sabe a gente velha e nova

Que o rio de Penacova

Nunca mais se fez Doutor!



P.e Agostinho

In Notícias de Penacova ,1950



Locuções populares (VI): Estar nas suas sete quintas


Significa estar satisfeito, contente, feliz.

Os nossos reis detinham, no concelho do Seixal, sete quintas onde o rei e o seu séquito gostavam de passar longas temporadas.

Então, nesses tempos, quando se perguntava pelo rei, dizia-se que estava nas suas sete quintas.

No Dicionário de Caldas Aulete, “Estar nas suas sete quintas” significa estar muito contente. Para Cândido de Figueiredo “Estar nas suas sete quintas" seria estar como se quer, perfeitamente à vontade.

Em relação a muitas locuções, há dúvidas, indefinições e discussões sobre as suas origens. Com esta expressão que, como vimos, tem fundamentação histórica profusa, tal não se verifica.

Essas quintas situavam-se na margem sul do Tejo, quase em frente a Lisboa, e a sua história é bem conhecida: Alfeite, Romeira, Piedade, Outeiro, Quintinha, Antelmo e Bomba.

10 março 2021

Locuções populares (V): Emprenhar pelos ouvidos

 


A expressão é muitas vezes usada com o significado de dar importância a rumores, dar ouvido a intrigas, a mexericos.

Na origem desta expressão está, evidentemente, a alusão ao processo de gravidez da virgem Maria.

É no Evangelho de S. Lucas que se refere o episódio do anjo quando anunciou a concepção de Maria. Com efeito, aí se afirma que foi pelos ouvidos que as palavras do Arcanjo Gabriel foram ela recebidas. 

A importância do ouvido como local de estabelecimento da alma e do espírito humano foi reconhecida desde a Grécia antiga tendo essa ideia subsistido durante séculos no imaginário das populações.

Nesses tempos recuados, acreditava-se que a mulher podia realmente engravidar sem ter relações sexuais, isto é, ‘sine decubito’. Tal poderia acontecer por várias formas, principalmente por sonhos e consumo de determinados alimentos.

Os inumeráveis casos de gravidez ‘sine concubito’ motivaram debates judiciais na Idade Média e os tribunais davam muitas vezes razão às mulheres dos cruzados que combatiam na Terra Santa, acreditando que estas podiam ser fecundadas à distância e em sonhos!

Fonte: Repositório do conhecimento inútil, op.cit.

27 fevereiro 2021

Locuções populares (IV): "Mal e porcamente"

 


Esta expressão significa “de modo muito imperfeito”, “muito mal”, “de forma desleixada”, apressada e mesmo até atabalhoada.

Pensa-se que a origem esteja na corruptela de «mal e parcamente» que teria o sentido de “fez mal e, ainda por cima, pouco”. Sendo assim, a expressão original corresponderia a alguma coisa mal feita e com poucos recursos

Como vimos, a expressão ‘mal e porcamente’ era, originalmente, “mal e parcamente”. “Parco” vem do latim “parcus” com o significado de pouco abundante, poupado, pequeno… Como o termo “parco” não é habitualmente utilizado na linguagem popular, a expressão sofreu uma corruptela, sendo “parcamente” trocado por “porcamente”, palavra bastante conhecida e com sonoridade semelhante.

Fonte: Repositório do Conhecimento Inútil, op.cit.

21 fevereiro 2021

Lorvão: páginas cinzentas da sua história


Escreveu Hipólito Raposo (1885-1953):

“As monjas para quem Alexandre Herculano pediu esmola, já não existem. Infinita crueldade seria que a morte as não tivesse poupado ao destino de ver as celas da penitência convertidas em lares onde duas dúzias de famílias foram procurar uma ilusão de abrigo.

Agora, aqueles que no amor ou curiosidade das coisas mortas, se aventuram a transpor os montes que muralham o vale até ao céu, sombriamente, impressiona-os de surpresa a majestade do edifício que o roçar dos séculos tornou venerando.

A cúpula rebrilhante ergue-se no ar sereno, e quando o sol volta, deixa projectar na encosta, a sombra alongada por sobre a ramaria verde-negra dos pinheirais. E toda a face do mosteiro tem no aspecto contrafeito uma opulência decaída, aquela melancólica saudade dos solares de província, abandonados para sempre à vida simples dos abegões.

No Páteo relvoso em que virgens em flor apeando das liteiras no braço dos pais, voltavam os olhos chorosos para dizer adeus ao mundo, vendo apenas ao alto um recorte de céu azul, nesse Páteo dançam agora as moças aos domingos, danças profanas que ultrajam a santidade do lugar e escandalizariam as freiras como um pecado vivo.

Lá dentro, guarda o órgão um silêncio doloroso: das harmonias que derramavam clarões de divindade na alma das noviças, só as paredes e os altares vibram, como outrora na solenidade fúnebre das profissões.

Virgens imateriais quase, erguem na sombra os vultos brancos, entre círios que rodeiam o sacrifício da carne estéril, a chorar pela Vida para gloria de Deus. Toda a visão se ilumina, revive o velho Cenóbio a sua grandeza, cheira a incenso, vozes esvoaçara aflitivamente pelas naves, como suspiros de saudades do céu ...

Em túmulos de prata, dormem há séculos duas filhas de Sancho I e pasma a gente de ver que lhes tenham respeitado a paz, ao lado de oleografias e alfaias milagrosamente salvas à mesma cobiça sacrílega que desnudou a igreja e o convento.

Olhando ao fundo o coro, sumptuoso lavor, luz fria entristecendo a face das coisas e como uma súplica sem esperança, alevanta-se o vulto anguloso da estante do ofício, suportando ainda o velho antifonário coberto de poeira sagrada.

Mal resistindo à deterioração de toda a hora, o cadeirado glorioso alonga a todo o comprimento a graça das decorações, todas animadas da celeste espiritualidade que resplandecem cada figura tutelar.

Pelas altas arcarias, emparedadas aqui e além de fragmentos de capiteis e colunas, vai-se escoando o fumo dos lares que tendo bafejado torpemente os azulejos dos corredores, anda a denegrir os ornatos do coro, da mais preciosa talha de este país, porque o Governo para cobrir o deficit e matar a dívida, arrendou a míseros paliteiros, por uma centena de mil réis, as celas das freiras de Lorvão.

Se cada convento em Portugal é uma página de vergonha para a história contemporânea, creio que em nenhum haverá tão numerosos exemplos de ladroagem e desleixo como neste que tendo sido poupado pelo vandalismo francês, é destruído e roubado em proveito dos liberais do presente e em nome do interesse público.

Aqui, no alto da cúpula, a vista sobe a encosta, pela extensão da verdura até ao céu, torna a descer o declive e pára no fundo do vale, nas trepadeiras e heras da cerca, enlaçando ruínas musgosas, entre silvas e alecrim, a romper vigorosamente dos entulhos onde erram perfumes de cravos do outono e cintilações de azulejos migados ao sol.

Dos três claustros, ainda de pé, alguns arcos, alternando com fustes brancos de colunas mutiladas e inertes. Debaixo das arcarias abatidas movem-se crianças famintas, olhos vermelhos do fumo, fugindo das celas para a agonia dos corredores onde o ar é opaco e a friagem passa rudemente, ululando rumores de morte, sem a resistência das portas já moídas do temporal.

Mulheres de andrajos cruzam-se na faina, outras espreitam dos buracos e encontram ainda um sorriso de motejo pelos que lhes devassam o martírio que nem o sacrifício da Arte lhes abranda a existência, ao menos.

Nas ruas, mocinhas de rosto seráfico e olhar tímido, paradas de curiosidade, duvidam que alguém possa ter interesse em peregrinar àquela ruinaria com que entestam a toda a hora, desde que nasceram.

E assim, entre o desdém de um povo que desejaria aniquilar um monumento que lhes humilha a pobreza dos casebres e o fisco faminto, amolecendo mais a indiferença de um Conselho de Monumentos Nacionais, é que se extinguirá até aos alicerces, o que ainda resta do mais histórico mosteiro de Portugal.

Velhas Crónicas falam gravemente de estes frades da cogula negra, cultivadores de terras bravias nos primeiros séculos, em doações alargadas mais tarde e mantidas pelos próprios moiros já dominando em Coimbra, até que em tempo de cristãos eles cederam casa e senhorio à virtude das netas do primeiro Rei de Portugal.

Toda a tragédia das Rainhas Teresa e Sancha, com a dedicação de nobres damas que nos votos acompanharam o infortúnio daquela - eu a revivo entre matagais agrestes lá no fundo da Idade Média portuguesa, o irmão feroz usurpando-lhes os castelos e a triste Infanta Beringela, deserdada, na Dinamarca cinzenta, chorando com saudades do sol e da terra que perdera.

Casa de penitência agora, viveiro de bastardos, quatro séculos depois, no governo de Filipa d'Eça, quando as monjas ricas e protegidas, resistiam com tantos abusos pelo prestígio da sua beleza, ao intuito reformador de D. João III.

Sob estes claustros se exaltou o misticismo de Joana de Albuquerque, discípula de Santa Teresa, que na alucinação histérica de cada hora, tinha colóquios de amor com Jesus, de novo ressuscitado para a sua paixão ardente, com beijos, ciúmes e amuos, como no mais trivial namoro português, segundo a sua própria narrativa.

O Mosteiro de Lorvão - “antre serras onde o sol não era visto” - a saudade de Crisfal o rememora a todo o coração enamorado; as lembranças tristes das freiras que resolviam morrer à fome para não quebrarem a clausura, a mendigar nos caminhos, hão de sepultar-se nas últimas ruinas que impressionando-nos com respeito, ainda mais nos indignam pelo testemunho de uma execranda malvadez."

In Livro de Horas de Hipólito Raposo. Coimbra. França Amado Editor. 1913

[José Hipólito Vaz Raposo (São Vicente da Beira, 13 de Fevereiro de 1885 — Lisboa, 26 de Agosto de 1953), mais conhecido por Hipólito Raposo, foi um advogado, escritor, historiador e político monárquico, que se notabilizou como um dos mais destacados dirigentes do Integralismo Lusitano.]

19 fevereiro 2021

Locuções populares (III): "Custar os olhos da cara"


 

Esta locução, que tem o significado de custar muito caro, ter um preço muito alto, será o equivalente de “custar couro e cabelo”, “custar um dinheirão” ou mesmo “custar cara a brincadeira”.

Pensa-se  que a sua origem esteja relacionada com o costume bárbaro de arrancar os olhos aos prisioneiros de guerra.

Furar ou mesmo arrancar os olhos de inimigos era um costume completamente desumano praticado depois  das batalhas ou também na sequência de golpes de estado. Assim, privados da visão, os inimigos tornavam-se menos perigosos ou até inofensivos e a guerra seria mais fácil de vencer e a manutenção no poder teria o caminho mais facilitado.

Pagar com a perda dos olhos era um custo demasiado pesado que ninguém queria pagar. Talvez por isso a expressão "custar os olhos da cara" passou a ser também sinónimo de custo exagerado, de preço excessivo. 

Refira-se que tal prática de arrancar os olhos aos inimigos se manteve, pelo menos, até ao século XIX.  A "Gazeta de Lisboa", de 1825, dava conta de uma notícia relacionada com acontecimentos passados no Médio Oriente e publicada em Marselha no "Journal des Debats”:

“O Emir-Bechir tomou huma vingança muito mais cruel dos Principes da sua familia que havião seguido o partido do Cheik-Bechir; pois a estes mandou arrancar os olhos e cortar alingoa na sua mesma presença para prolongar o seu supplicio e humiliação.”


13 fevereiro 2021

Locuções populares (II): "São favas contadas"

 A locução “são favas contadas” tem o significado de algo dado como certo, de coisa certa, de negócio seguro.


Antigamente era costume fazer contas por meio de favas. Ora, esta expressão tem origem no antigo método de votação em que se usavam favas brancas e pretas. As favas eram no fundo um instrumento de cálculo, uma espécie de calculadora mecânica.

Já na Antiguidade Clássica era habitual fazer votações utilizando favas brancas e pretas. 

Também na Idade Média, em muitos mosteiros, eram usadas para eleger o abade. Os monges, reunidos em capítulo, procediam à escolha daquele  do seguinte modo: favas brancas, se a favor do nomeado, e favas pretas, se contra. 

No final, contavam-se as favas. Assim, quem era eleito, era-o de forma comprovada, ou seja, “com as favas contadas”...

Este antigo processo de votação, que se mantém metaforicamente até aos dias de hoje, existe em toda a península ibérica e mesmo noutros países europeus.

Favas contadas quer dizer então: não restar dúvida, ser infalível, ser inevitável…




09 fevereiro 2021

Locuções populares (I): “Do tempo da Maria Cachucha”

Quantas pessoas já não terão sido acusadas de viver “à grande e à francesa"  ou de serem “chei(as) de nove horas”?  

Ou ter a mania de “embandeirar em arco”, de “emprenhar pelos ouvidos” e depois, quem sabe, “pagar com língua de palmo”…?

Tudo isso pode ser só “para inglês ver”. Muitas vezes “são mais as vozes que as nozes” e tudo, afinal, tantas vezes, “traz água no bico”…

É à volta destas expressões que se perdem na memória dos tempos que iniciamos hoje esta rubrica sobre locuções populares ou frases feitas.

 


A expressão “Do tempo da Maria Cachucha” significa  “muito antigo, desactualizado, obsoleto, antiquado.”  “Do tempo da outra senhora”, ou ”do tempo da pedra lascada”…são expressões com significado semelhante.

Esta  locução terá origem na cantiga popular “Maria Cachucha”, adaptação da cachucha espanhola, que esteve muito em voga no Século XIX. Era uma dança sapateada de compasso ternário, normalmente executada por uma uma mulher que acompanhava o ritmo com castanholas, ao som de guitarras e, por vezes, canto, sendo a designação extensível à música.

Tendo origem em Cuba, rapidamente se popularizou na Andaluzia, tendo-se daí disseminado por toda a Espanha, por Portugal, pela França e outros países.

Tipicamente começava com movimentos lentos, que iam acelerando, até terminar com movimentações muito agitadas.

A cachucha tornou-se muito popular em grande parte da Europa, principalmente na primeira metade do século XIX e também em Portugal.

A cachucha passou de moda e tornou-se uma dança antiga, razão porque o povo, quando se queria referir a algo antiquado, desactualizado ou obsoleto, passou a empregar a expressão ‘do tempo da Maria Cachucha’. Uma clara alusão à melodia espanhola mas, principalmente, à canção ‘Maria Cachucha’ que tão popular foi em Portugal.


Maria Cachucha
Quem te cachuchou?
- Foi um frade Loyo,
Que aqui passou. 

Maria Cachucha
Não vás ao Rocio
Toma lá dinheiro,
Sustenta o teu brio.

Maria Cachucha
Não vás ao quintal,
Em sainha branca
Que parece mal

Maria Cachucha
Que vida é a tua?
Comer e beber,
Passear na rua.

Maria Cachucha
Com quem dormes tu?
- Eu durmo sozinha,
Sem medo nenhum …

Maria Cachucha
Com quem dormes tu?
- Durmo com um gato,
Que me arranha o c...

Maria Cachucha
Se fores passear
Vai pelas beirinhas,
Podes-te molhar

FONTE:  Repositório do Conhecimento Inútil de João M. Alveirinho Dias.

 

10 janeiro 2021

Poetas penacovenses (VIII): A tentar descodificar este tempo, em sofrimento: um poema de Luís Amante

O meu “circuito”


Pela manhã, da minha janela, por baixo dela

O meu circuito parecia que encolheu

... ou que, dando guarda à liberdade, se encheu!

Hoje é Domingo, segundo do novo ano

Que se segue a um outro, espartano

As pessoas encolhidas de geada branda

Sem benesses ou compadrio

Vieram respirar ar puro

Vieram a fugir do confinamento

Vieram ganhar coragem para o sofrimento

Que se avizinha ...

Desci pra me juntar à multidão

Pra sentir de perto o bater do coração

Sapatilhas calçadas

Ceroulas apertadas

E calças de fato de treino por cima

Com anorac de neve

De frente no caminho solto

Uma família de máscaras: uma azul clara; outra verde; outra preta

Atrás com distância de segurança

Outra família sem máscara

Rapaz atleta; rapariga de olhar suave ... os filhos de bicicleta

A seguir um grupo grande a correr sem gemer

De gente madura transportando frescura

Quatro voltas alargadas no espaço do meu tempo

Outras quatro circunscritas à volta do Estádio Universitário

E, sempre, o mesmo pensamento:

- quem será que está livre do vírus danado?

- como é que, afinal, ele se tem propagado, assim, tão descontrolado?

Daqui a cinco dias terminam os meus sessenta e seis

Gostava que a passagem fosse no ambiente do “ar puro” da minha terra

Encostadinho ao cheirinho da nossa serra

A olhar pro Rio, envergonhado com frio

Mas não vai dar

Não posso passar

Os meus conterrâneos estão lá a sofrer

... e no meu novo “circuito”, só dá pra temer!

 

Luís Pais Amante

Telheiras Residence,10Jan21; 14h00

A tentar descodificar este tempo, em sofrimento.

________________

Obrigado Dr. Luís. Muita saúde! Abraço

02 janeiro 2021

Milagre em Penacova: uma história caída no esquecimento...

Não sei se alguém em Penacova ouviu alguma vez falar deste caso que parece ter sido mesmo verdade. Foi notícia na Gazeta de Lisboa onde chegou por meio de “pessoa de grande crédito, moradora na mesma vila”. 


Ao monte da Senhora da Guia, quando ainda não existia a capela, mas um enorme templo inacabado, foi Isabel Francisca, viúva de Manuel de Brito, "assoalhar" lã levando consigo um filhinho de um mês, chamado António. 

A dado momento, do alto da abóbada da igreja, desce uma enorme ave de rapina, talvez um bufo ou guincho, como refere a crónica, que rapta o bebé, cravando-lhe as enormes garras. Num ápice dirige-se para a zona de Entre Penedos enquanto a mãe, impotente, solta um grito de desespero. 

E naquele momento de grande aflição de imediato implora a protecção de Santo António.

Ora, ao passar sobre a Quinta de Bernardo Cabral de Castello Branco,  presumivelmente na zona de Vila Nova, pousou junto a uma fonte onde existia uma imagem daquele Santo. Afugentada por uns trabalhadores que por ali andavam, a enorme ave de rapina deixou a pobre criança em paz e sem feridas de maior, a não ser “leves” (?) marcas das garras. 

Só podia ser milagre!

E quer os que presenciaram quer os que de tudo tiveram conhecimento mais não fizeram que redobrar a devoção a Santo António, já venerado na antiquíssima capela existente na encosta sul da vila. 




Fontes: Gazeta de Lisboa, 3 de Julho de 1749
              O Padre Santo António de Lisboa de Manoel Bernardes Branco, 1887

12 dezembro 2020

Penacova, Sá Carneiro e o nome da Avenida que ficou na gaveta

Fez há dias 40 anos que morreu Francisco Sá Carneiro. Foi no início da noite de 4 de Dezembro de 1980. O avião no qual seguia despenhou-se em Camarate, pouco depois da descolagem do aeroporto de Lisboa, quando se dirigia ao Porto para participar num comício de apoio ao candidato presidencial general António Soares Carneiro.

Sá Carneiro tem o seu nome em ruas, praças e avenidas de muitas localidades do nosso país: Lisboa, Viseu, Bragança, Funchal, Quarteira, Portimão, Albufeira, S. Pedro do Sul, Ansião, Carregal do Sal, Santa Comba Dão, Castro Daire, Valença, Vila de Rei, Mação, Marrazes, Alijó, Agualva, Nelas, Porto de Mós, Ovar, Tavarede, Marco de Canavezes…

Penacova também era para ter uma Avenida com o nome de Sá Carneiro. No entanto, os poderes políticos deixaram cair uma proposta que havia mesmo sido aprovada na Assembleia Municipal no sentido de a artéria entre os Bombeiros e a N110, passando pela escola da Cheira e pelo cruzamento da Estrada das Malhadas, passar a designar-se por Av. Sá Carneiro. 

Vejamos o recorte do jornal “Nova Esperança” de 30/7/1982:



“Politiquices”… 

11 dezembro 2020

Já disponível a 3ª edição de "Patrimónios de Penacova"

Publicado pela Câmara Municipal em 2012, o livro Patrimónios de Penacova: Apontamentos para a sua valorização e divulgação da autoria de Joaquim Leitão Couto e David Gonçalves de Almeida, viu sair a 3ª edição em Outubro de 2020. A capa surge agora com uma panorâmica geral de Penacova (foto de Óscar Trindade, que já integrou o "miolo" da 1ª edição). 


Capa da 3ª edição (2020)

Transcrevemos a nota a esta 3ª edição: 

«A publicação da terceira edição de "Patrimónios de Penacova: Apontamentos para a sua Valorização e Divulgação", decorridos que são oito anos após o seu lançamento em 2012, é motivo de natural satisfação, não apenas para os seus autores, mas também para todos os penacovenses que sentem orgulho na sua terra. O propósito implícito no subtítulo foi atingido: o nome (e a marca) Penacova foi mais divulgado e chegou mais longe e o conjunto das riquezas patrimoniais do nosso concelho saiu certamente mais valorizado. 

Relendo a Nota de Apresentação à 1ª edição, assinada pelo Sr. Presidente da Câmara, verificamos que já aí se perspectivava o bom acolhimento deste trabalho junto dos potenciais leitores. Na opinião do Dr. Humberto Oliveira “esta obra, depois de devidamente publicada e divulgada” poderia “funcionar como um verdadeiro roteiro turístico e promocional de Penacova”. 

Certamente por isso, o Município entendeu fazer uma reimpressão (2ª edição) em 2017 e, uma vez esgotada, decidiu avançar agora para uma 3ª edição, o que muito nos apraz. 

Volvido este tempo, reconheceu-se ser pertinente proceder a uma revisão e actualização de alguns aspectos do livro. A primeira alteração, que salta à vista, situa-se ao nível do grafismo, apenas por motivos de ordem logística. Sentiu-se depois a necessidade de corrigir uma ou outra “gralha” que sempre teima em existir e fazer pequenos ajustes no texto e nas gravuras. Em relação ao conteúdo, completaram-se alguns dados de carácter informativo e acrescentaram-se outros, como foi o caso do Rancho de S. Pedro de Alva e a referência ao jornal digital Penacova Actual. No capítulo da pintura, incluímos agora a alusão à homenagem a Martins da Costa, sublinhámos as raízes penacovenses de Waldemar da Costa e actualizámos as referências às obras de José Fonte. 

O património cultural e a natureza são valores indissociáveis. A cultura não é mais do que o diálogo criador da humanidade face ao mundo natural. O próprio termo “Património” encerra na sua etimologia um sentido dinâmico (recorda-nos Guilherme d’Oliveira Martins no recente livro Património Cultural: Realidade viva) na medida em que é formado por duas palavras latinas, patres e múnus, que significam “pais” e “serviço” apontando assim para uma “acção posta ao serviço do que recebemos dos nossos pais.” 

Um interessante modo - que nos responsabiliza ainda mais - de encarar as questões do património, seja ele natural ou cultural. 

Travanca do Mondego, 7/7/2020 
David Gonçalves de Almeida»

Capa da 1ª edição (2012)


01 dezembro 2020

Novo livro: "De Coimbra a Lorvão pela Estrada Verde"

 A "Comarca de Arganil" noticiou o lançamento do livro "De Coimbra a Lorvão pela Estrada Verde". Aqui fica o registo:


"Integrada na Feira do Mel e do Campo, que este ano revestiu um formato digital, teve lugar no dia 7 de Novembro a apresentação do livro “De Coimbra a Lorvão pela Estrada Verde”, tendo como autores J. Leitão Couto e David Almeida.

Esta obra surgiu na sequência do anterior livro, dos mesmos autores, publicado em 2013  com o título “Patrimónios de Penacova - apontamentos para a sua Valorização e Divulgação” e também como resposta ao desafio lançado por Fernando Fonseca, do Grupo de Cavaquinhos da Rebordosa.

O lançamento, que decorreu na Biblioteca Municipal, contou com a presença do Presidente da Câmara, Humberto Oliveira, e da Vereadora da Educação, Sandra Ralha, a quem coube fazer a apresentação deste livro. No seu entender, este “excelente trabalho” é uma forma de enriquecer o nosso conhecimento e um convite a visitar Lorvão e Penacova, conhecer melhor a história e a identidade destes territórios e descobrir as suas particularidades diferenciadoras. O livro é, pois, “um reforço na nossa cultura, na nossa identidade e na nossa missão de preservar o património cultural e natural de Penacova”.

Na impossibilidade de estar presente, Joaquim Leitão Couto deixou uma mensagem gravada em vídeo e David Almeida contextualizou a génese desta obra, elencou alguns dos conteúdos e apresentou alguns dos pressupostos teóricos à volta do conceito de património.

Inicialmente pensada para se focar apenas na Rebordosa, no decurso da recolha de elementos, entendeu-se ser pertinente fazer um enquadramento mais alargado, estendendo-se  também ao Caneiro e a Chelo, tendo como fio condutor o percurso, da estrada Verde (N 110) que partindo de Coimbra, passa por Torres do Mondego, Caneiro, Rebordosa, seguindo para Penacova. Assim, esta publicação  acabou por abordar alguns aspectos de carácter monográfico sobre estas terras que se encontram naquele trajecto. E estar na Rebordosa e não visitar Lorvão seria muito redutor, já que, com um pequeno desvio, facilmente se chega lá.

Para a concretização deste projecto os autores contaram com a colaboração de diversas pessoas que se disponibilizaram a partilhar documentos, vivências e memórias: António José da Silva Calhau, Sandra Ralha da Silva, António Castanheira, Amável Ferreira, Maria da Fonseca Simões, Graça Pimentel, Pedro Cardoso e António de Miranda.

A obra é mais do que um simples roteiro, aprofundando muitos dos temas ligados à história, à cultura e à geografia destas localidades. Fala de dinâmicas locais, de associativismo cultural, de barqueiros e de paliteiras, de monges e de freiras, de abades e de abadessas, de acontecimentos quase esquecidos como a revolta dos sarreiros e o polémico desmantelamento da fonte “santa” de Chelo. Apesar de Lorvão já estar bastante estudado e divulgado, os autores não deixaram também de fazer uma síntese dos aspectos históricos, sociais e culturais, deste secular mosteiro e lugar.

A obra, editada pela Câmara Municipal de Penacova, pode ser adquirida na Biblioteca Municipal, no Posto de Turismo e no Mosteiro de Lorvão."



Lançamento do livro na Biblioteca Municipal. Da esq. para a d.ta: 
Sandra Ralha, vereadora da Educação, a quem coube apresentar 
o livro; Humberto Oliveira, presidente da Câmara; David Almeida, co-autor.

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21 novembro 2020

Reivindicações do Porto da Raiva no jornal "O Conimbricense"

O Porto da Raiva constituiu um importante  entreposto comercial, sendo um dos principais portos do curso navegável do Mondego. Ali chegavam muitos carros de bois carregados de milho da Beira. Os "carreiros" eram sobretudo das regiões de Penacova, Coja e Arganil. A feira realizava-se todas as quintas-feiras. Aqui se transacionava também o feijão, o sal, as fazendas, as mercearias e outros produtos. Até finais do século XIX, todo o concelho de Penacova afluía ao mercado da Raiva, principalmente para a compra de cereais. Os armazéns enchiam-se de tudo o que não era vendido no dia de feira e ali esperava pelo mercado da semana seguinte.

Os produtos que chegavam à região de Penacova eram essencialmente sal, louça, peixe, azeite e linho. O sal era, sem dúvida, o mais transacionado. Havia dias que eram perto de vinte as carradas de sal que ali eram vendidas. Também o peixe, sobretudo seco, e a louça das fábricas de Coimbra eram produtos muitos procurados  e que, tal como a maioria dos restantes, se destinavam às terras da Beira Alta, num tempo em que ainda não havia caminho de ferro.

Por sua vez, vinho, milho, fruta, legumes, carvão, castanha e vinagre eram os produtos mais “exportados”. Dali saiam grandes carregamentos de vinho, produzido principalmente na Beira Alta, com destino a Coimbra, Baixo Mondego e Figueira.  Outros produtos que partiam da região de Penacova com destino a Coimbra e Figueira eram o feijão, a castanha e a fruta da época.

Encontrámos agora no jornal O Conimbricense (2 de Março de 1872) uma carta de Francisco Augusto Ferreira enviada àquele periódico, onde se queixa dos enormes atrasos na distribuição do correio e também de outros problemas sentidos naquela terra.




01 novembro 2020

Memórias das Lutas Liberais: o Poial das Almas

 O POIAL DAS ALMAS

                             - José Albino Ferreira *

"Há um banco de pedra encostado à parede da Igreja à frente da Rua da Corujeira, que foi muito falado a propósito de um caso das lutas civis entre miguelistas e liberais. 


Este banco era dantes denominado o Poial das Almas porque, por antigo costume, a certa hora da noite no tempo da Quaresma, subia para ele algum penacovense de voz muito forte e suplicava um Padre Nosso por alma de cada um dos penacovenses ultimamente falecidos.

Havia então em Penacova um Sr. Dr. Fernando, pai do conselheiro Fernando de Melo, que era Juiz de Direito e conhecido como Liberal.

Chegou a Penacova o boato, ou notícia, de algum acontecimento que levou os miguelistas da terra à persuasão de que estava certa a vitória do seu partido.

Era Domingo de manhã. Na hora própria, saiu de casa o Dr. Fernando, ignorando a novidade e dirigiu-se a caminho da Igreja para ouvir Missa.

Quando chegou ao Poial das Almas, saiu-lhe ao encontro um grupo de miguelistas que em termos persuasórios o convidaram a subir para cima do Poial e gritar bem alto: "Viva D. Miguel!" 

O bom Dr. Fernando não tentou resistir. Subiu e levantou o viva.Desforrou-se mais tarde, quando a vitória tombou para a banda dos liberais. 

Contou-me uma virtuosíssima senhora de Penacova, há muitos anos falecida, que em pequena ia muitas vezes para casa do velho Dr. Fernando, logo de manhã. Ele levantava-se já alto dia e, depois de se lavar e vestir, fazia o seu penteado ao espelho, tudo com muito esmero.

Depois abria a janela do quarto que dava para a rua e dava sempre os bons dias à vizinhança miguelista, gritando com toda a força dos seus pulmões: "Viva D. Miguel!"

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Obs: Isto ter se á passado já depois de 1840, isto é, muitos anos depois de ter acabado a Guerra Civil, com a vitória dos Liberais. Muitos outros actos de violência e crime se cometeram naqueles tempos em toda a região da Beira, incluindo Penacova, como pode ver-se na obra de Joaquim Martins de Carvalho, intitulada "Os Assassinos da Beira".

* Crónicas do NP "À sombra amena da Pérgola"- finais da década de 30 

21 outubro 2020

Notas para a história do edifício que vai dar lugar à Casa das Artes


Com a implantação do regime liberal, pela vitória definitiva do partido constitucional, por toda a parte se refundiu e transformou a vida social dos portugueses.

As antigas casas dominantes desapareceram ou decaíram. As fortunas das famílias antigas que  em geral se mantiveram ligadas ao partido miguelista estavam muito comprometidas por virtude das Invasões Francesas e depois pela Guerra Civil.

Em Penacova aconteceu o mesmo.

Eram donatários da vila de Penacova, primitivamente, os condes de Odemira. Esta Casa fundiu-se mais tarde, por casamento, com a dos Duques de Cadaval e, assim, ficou a ser donatário de Penacova o Duque de Cadaval. Era este Senhor que superintendia em todos os serviços judiciais e administrativos. Nomeava o Juiz e demais funcionários públicos.

Tinha em Penacova o seu Paço, com capela anexa, no sítio onde agora


está a Casa do Tribunal. Tinha em Penacova o seu capelão e procurador, pois era proprietário de muitas terras, lagares e azenhas, e recebia delas as rendas e foros.

O Duque de Cadaval era Governador Militar de Lisboa quando os miguelistas foram vencidos pelas tropas liberais em Almada. Como visse que não podia manter-se em Lisboa, retirou com as tropas fiéis e, assim, depois da Convenção de Évora Monte e termo da Guerra Civil, emigrou para França, não voltando a Portugal.

Ainda hoje [c. 1940] a Família Cadaval  vive em França e só vem a Portugal com curta demora, mas conserva o seu apego à Pátria. Os varões, chegando à idade própria, cumprem os seus deveres militares, segundo me consta.


Como consequência, resolveu o Duque de Cadaval vender todos os bens que possuía em Penacova.

O Paço foi destruído por um incêndio e depois vendido à Câmara de Penacova, que ali construiu o edifício dos Paços do Concelho e o Largo Fronteiro, que hoje temo o nome de largo Alberto Leitão.

Tinha a Casa de Cadaval além da capela anexa ao Paço, que foi destruída


pelo incêndio, uma capela lateral na Igreja de Penacova onde ainda está o escudo das armas dos Duques de Cadaval. É uma capela ampla com sacristia. O estilo é de boa renascença.

Com o desaparecimento da fortuna da Casa Cadaval em Penacova, desapareceu o capelão, o procurador e mais pessoal. Com o incêndio desapareceram muitos documentos que, certamente, dariam luz para a história de Penacova.

José Albino Ferreira

in Notícias de Penacova, "À Sombra Amena da Pérgola" c. 1940.