17 maio 2020

Um caso do séc. XIX que agitou a região: homicídio na Ponte da Mucela


“Foi achada morta com três facadas na barriga e peito uma mulher, cujo nome e morada se desconhecem”. Pelo estado adiantado de decomposição, foi logo ali, na Ribeira Pequena, sepultada depois de “encomendada” pelo cura José da Cunha.

Este intrigante caso, ocorrido em 1838, gerou, naturalmente, grande perplexidade nas povoações vizinhas,  na Cortiça e em Paradela, mas foi na memória das gentes da Ponte da Mucela que ele perdurou durante mais tempo.

É que, no Verão de 1837, chegaram àquela localidade, ponto de passagem de quem fazia a “estrada da Beira”, num certo dia, já no final da tarde, dois homens ainda novos, acompanhados de uma rapariga, “carregada de oiro”, ao pescoço e nas orelhas. Cansados da viagem, comeram e beberam numa tasca ali existente. E no meio da conversa terão mesmo, para quem quis ouvir, contado de onde vinham e para onde se dirigiam.

Junto à noite, prosseguiram viagem. Mas...aquela mulher, que parecia ser solteira, tão nova e adornada daquela maneira, a acompanhar aqueles dois marmanjos… Não, qualquer coisa ali escapava às pessoas que estavam na altura na taberna. E, claro, alguém mais bisbilhoteiro, não deixou de os seguir, sorrateiramente, depois de retomarem a estrada. Conclusão: os viajantes fizeram o caminho normal pela antiga estrada, na direcção de Mucelão. E o caso ficou por ali.

Chegou o Inverno e, em princípios de Janeiro, eis senão quando um grupo de caçadores se depararam, no Vale da Ribeira Pequena, com aquele macabro achado. Instalou-se a polvorosa naquelas terras e quando a taberneira da Ponte da Mucela e outras pessoas foram ver o cadáver, fácil foi concluir-se que se trataria da infeliz rapariga que, juntamente com os dois homens, comera e bebera naquele dia de Verão.
A história espalhou-se e foi perdurando no tempo. Não raro acontecia os viandantes, ao pararem para beber um copo, comentarem: “Com que então, foi aqui que apareceu uma mulher morta?...” .

Com o tempo tudo acabou por se saber, apesar de na altura as autoridades, ao que parece, não terem investigado o que quer que fosse.
Soube-se que, precisamente em 1837, tinham chegado  à Bobadela dois irmãos vindos do Alentejo, estranhamente com dinheiro suficiente para  comprar propriedades na terra.  Estranho!  Naquele tempo as notícias já circulavam, mais devagar, é certo, mas espalhavam-se rapidamente. E tudo se soube na Ponte da Mucela e redondezas. Foi fácil juntar as peças e concluir: os assassinos só podiam ter sido os tais dois homens. 
E não querem saber que um dos irmãos, muitos anos mais tarde, terá vindo viver para Paradela de Cortiça, onde até lhe chamavam o Bonadela?  Muitas vezes lhe foi atirada à cara a suspeição do assassínio, mas o homem acabou por morrer, velho e cego, em completa decadência.

Como tive conhecimento desta história? - perguntarão os leitores. Recentemente, foi publicado em Coimbra um livro que compila artigos publicados na imprensa regional pelo Padre Doutor Nogueira Gonçalves.
E foi então, ao consultá-lo, que a páginas tantas, me deparei com o título “Um Velho Crime”, crónica de 1932 publicada no "Correio de Coimbra".

Acrescenta Nogueira Gonçalves que por detrás da tese do roubo do ouro, mais óbvia aos olhos do povo, será plausível acrescentar também um mobile de feição amorosa. Segundo se pensou, a malograda rapariga ter-se-á apaixonado por um deles e terá feito questão de o acompanhar. Mas tal sentimento não seria recíproco. Carregar com aquele “fardo”, com aquele empecilho, até à Bobadela para ser causa de possíveis desavenças familiares, enfim, e sabe-se lá que mais, porque não desfazerem-se dela, logo ali?  Ao que se juntava, claro,  o aliciante de ficarem ricos com tanto ouro que a infeliz ostentava.

“A mania de folhear velhos papéis, obriga-nos a ler dezenas de documentos inúteis, sem interesse para os nossos estudos, mas traz-nos porém grandes emoções e,  algumas vezes , sentimos naquela descolorida letra o palpitar de corações antigos e parece até que as lágrimas derramadas há muito ainda escorrem do papel e nos molham as mãos” – escreve N. Gonçalves a iniciar a crónica em questão.Foi nessas pesquisas que terá encontrado um registo de óbito que lhe suscitou curiosidade.

Apesar de não duvidar, fui pesquisar e lá encontrei, de facto, o assento lavrado pelo Padre J. Cunha:


17 de Maio de 2020. David Gonçalves de Almeida

03 maio 2020

Deixa, deixa, oh barqueiro, ir o barco lentamente...


Escreveu Carolina Michaelis (1902), in “A Arte e a Natureza em Portugal”, a respeito da vida amorosa dos barqueiros: “Uma curva lancha vae rio abaixo, tão devagar como se o homem que a move à vara, obedecesse às raparigas que o provocam, cantando estâncias quinhentistas: ir-me quero, madre, com o marinheiro…” ou “Deixa, deixa, oh barqueiro / ir o barco lentamente!/ Deixa, deixa! que a saudade/ ir mais longe não consente.”

Sobre esta importante profissão de outros tempos, transcrevemos o que o Grupo “Barqueiros do Mondego” de Miro, pela mão de Manuel Nogueira, publicou em 2004. O texto é acompanhado da foto que agora publicamos:

O rio Mondego era preferencialmente usado, dando emprego a muita gente das suas proximidades, sendo uma grande percentagem da população de Penacova. O Mondego foi a única via de comunicação importante que a região teve até princípios do século XX, dedicando-se sempre à barcagem e actividades ligadas ao rio: Barqueiros, Calafetes, Carreiros, Estanqueiros, etc.


O Barqueiro do Mondego, tinha como função conduzir a Barca serrana, no transporte de lenha, carqueja e carvão para Coimbra ou Figueira da Foz. No sentido inverso, era possível receber mercadorias por mar e embarca-las rio acima: além de peixe (seco ou salgado), sal, louça de Coimbra, vinho, etc.

Paralelamente com o transporte de mercadorias, também transportavam lentes e estudantes da Universidade de Coimbra, que iam passar férias às suas terras.

O Barqueiro do Mondego, provocava a deslocação da Barca serrana, com ajuda de remos, da vela, da corrente do rio e por vezes das varas ( quando havia menos água), espetando-as no fundo do rio e andando pelo bordo, apoiando a vara contra o lado do peito, virados para a ré. Tinham que colocar um pano grosso, para protegerem o peito, mas mesmo assim fazia "mossa".
O traje do Barqueiro do Mondego era composto por ceroulas até aos joelhos, uma camisola de lã, um colete, um garroço para o frio e os pés descalços ou com alpercatas de pano.

Para dormir, as barcas serranas, ou barcos, possuíam na proa ou na ré, umas cavidades "leito", onde os barqueiros dormiam, sendo o colchão de esteiras de palha, colocados por cima do estrado, e tendo como cobertores, a vela ou sacos, e dormiam com os pés para o bico.

Muitos eram os portos importantes ao longo do Rio Mondego, para carregarem e descarregarem mercadoria. Dos quais destacamos o Porto da Raiva, como sendo o mais importante, e considerado um dos maiores do país, até meados do séc. XIX. Porto este que diz a tradição se situava na Foz do Rio Alva.

Aqui chegados, as mercadorias eram descarregadas, e depositadas em locais apropriados, e depois eram levadas em carros de bois, pelos  "carreiros", e distribuídas pelos concelhos de Penacova, Arganil, Tábua, Mortágua e Oliveira do Hospital.

Nos portos de Coimbra, os barqueiros quando procediam ao carregamento ou descarregamento das barcas, tinham de calçar as alpercatas de pano porque se fossem apanhados descalços pelos guarda rios, eram multados. Se porventura andassem com um pé calçado e outro descalço, pagavam metade da multa!

09 abril 2020

Semana Santa, 1955


Tinha chegado uma das semanas de maior azáfama do ano e Felismina andava atarefada com as limpezas da sua casa. Os quartos já estavam limpos, só faltava a cozinha e a sala…  Claro que a sala tinha de ser a última divisão a ficar a brilhar, pois era o local da casa onde Jesus seria recebido. Seria ali que, no Domingo de Páscoa, se juntava toda a família e amigos para beijar a Cruz. Contudo, não era só Felismina que labutava dentro da sua casa… Toda a aldeia andava em preparação para o tão aguardado dia. No entanto, havia sempre tempo para, nas pausas das limpezas, as vizinhas se juntarem na rua e trocar dois dedos de conversa.
- Ó Felismina, qual é a toalha que vais pôr na tua mesa este ano? Foi a da tua fogaça?
- É essa mesmo... É a que tem o bordado e rendas mais lindos, porque fi-la há menos tempo que as outras. – responde Felismina toda orgulhosa. – Também vou pôr nas janelas aquelas cortinas de rendinha branca, que te mostrei no rio a semana passada, quando fomos lá lavar a roupa. Vai ficar tudo a condizer…

Se esta era a semana das limpezas, a anterior (chamada semana dos ramos) tinha sido dedicada para ir ao rio lavar… Já dizia o ditado “Na semana dos ramos, lava os teus panos. Porque na maior, ou fará chuva, ou fará sol”. E convinha ter a roupa lavada e enxuta para nada ficar por fazer até ao Domingo de Páscoa. Era também no domingo dessa semana (dia esse designado por Domingo de Ramos), que as gentes das aldeias se juntavam na Igreja da Freguesia, para assistir à missa e benzer os seus ramos (feitos de louro, oliveira e alecrim). Nesse dia, ao almoço, comia-se a tradicional sopa de grão de bico com carne do palaio, chouriça e presunto… Verduras?! Nem falar nisso… Não se podia comer. Também dizia o ditado que “Quem come verdura no Domingo de Ramos, como moscas todo o ano”… E mais valia prevenir, que nestas coisas nunca se sabe…
- Olha, eu na quarta-feira tenho de ir à horta, buscar couves para os animais. Eu na quinta-feira não ponho lá os pés, não… - continuou a vizinha. – Sabes bem o que diziam os antigos: que Jesus se ia esconder no horto na quinta-feira, antes de ser preso. Olha que tu não te esqueças de lá não ir também.
- Pois, tens razão. E, nem na quinta-feira de tarde e nem na sexta-feira até ao meio dia, não se faz nada. Só as coisas mais necessárias… Porque sabes que esta semana é a maior, tem nove dias, como se costuma dizer. – tagarelava Felismina, ainda na rua, com a sua vizinha.
- E ouve lá, ó Felismina, tu já tens as abróteas e o feno, para pôr à porta?
- As abróteas já tenho, já. Mas o feno só costumo ir buscar no sábado de manhã.
Antigamente, as ruas das aldeias eram todas cobertas de mato, para as pessoas calcarem, quando por lá passavam. Esse mato seria, pois, para fazer o estrume que servia de fertilizante para as terras. No Domingo de Páscoa, de manhã, era tradição cobrir-se todo esse mato com abróteas e feno, sendo que cada pessoa cobria junto à sua porta. Além desta tradição, muitas outras existiam no período entre o Carnaval e a Páscoa, por exemplo, todas as sextas-feiras se fazia jejum de carne e, nesse período, não havia bailes, nem músicas. A Quaresma era, portanto, um momento de tristeza e de respeito.
- Eu no sábado de manhã vou cozer os meus folares. – continuava a vizinha, dando seguimento à conversa. – Vê se não te esqueces de ir à capela às 10h da manhã, para cantar Aleluia a Jesus ressuscitado. – disse, relembrando uma outra tradição, pois existia a crença de que Jesus teria ressuscitado no sábado às 10h da manhã. E era também por isso que se tocavam os sinos e se lançavam foguetes.
Passado o Sábado de Aleluia, chegava o tão aguardando dia: o Domingo de Páscoa. O mais festivo do ano. As mesas das salas eram decoradas com as tais toalhas branquinhas, cheias de rendas e bordados… Além disso, sob as mesas, era colocado um pires com uma laranja e, no cimo desta, espetava-se o dinheiro que era dado como “folar” ao Senhor Padre, que o recolhia na Visita Pascal. Ao almoço, comia-se um belo arroz de cabidela, feito com um galo, ou galinha, criado durante o ano especialmente para tal. No final da refeição, vestiam-se os melhores fatos e juntava-se toda a aldeia na capela, para novamente cantar Aleluia, iniciando a Visita Pascal. Depois, lá seguiam de casa em casa para beijar a Cruz, bebendo também as suas pingas e comendo uma fatia de pão doce, e os afilhados entusiasmados lá iam a casa das madrinhas e padrinhos para buscar o seu folar (um pão com dois ovos).
E era assim que terminava essa época tão festiva, com a aldeia toda em união!...

Mariana Assunção

07 abril 2020

Brinquedos Tradicionais Populares na região de Coimbra

Muitos de nós recordamos as brincadeiras e os brinquedos construídos pelas nossas mãos, quer herdados das gerações anteriores, quer fruto da nossa criatividade e jeito manual. Ainda não tinha chegado a invasão do plástico e estávamos muito longe dos jogos de computador.

Existem ao longo do país espaços museológicos dedicados ao brinquedo. Aqui bem perto, temos para visitar a “Escola do Brinquedo Tradicional Popular”, na freguesia de Cernache (Loureiro).

Penacova organizou, ainda não há muito tempo (2018) uma exposição sobre o brinquedo popular e uma conferência proferida pelo Dr. João Silva Amado, um estudioso e divulgador desta vertente da cultura popular.

Escreveu este investigador universitário, ligado à Associação do Loureiro, o seguinte:

“Brinquedos Tradicionais Populares: trata-se de brinquedos produzidos pela própria criança ou pelos familiares mais próximos, a partir de diversos materiais existentes no meio, da terra ao fogo, passando pela água e pelo vento, sem esquecer ramos, folhas, flores e frutos…

Apesar da sobriedade destes materiais, da efemeridade das suas vidas e da modéstia do seu aparato, pode afirmar-se que foi com os brinquedos populares, transmitidos num milenar diálogo de espaços e de tempos pela faixa infantil da cultura, que a geração anterior ao plástico aprendeu o fundamental das suas vidas!

Produzindo-os e utilizando-os, toda a criança foi equilibrista e pintora, ceramista e botânica, arquitecta e caçadora, lavradora e escultora, tecedeira e investigadora…e tudo o mais quanto pôde aprender na principal das suas escolas - a rua!

Imitando, utilizando a imaginação criadora e cooperando na produção destes brinquedos, ela incorporava a memória cultural da sua comunidade sem conflitos graves nem com os outros humanos nem com as outras espécies.”


João Amado, in “Brinquedos dos Nossos Pais”, (3ª edição, 1992) opúsculo da Associação Desportiva e Recreativa do Loureiro (ADRL), Cernache-Coimbra.

A pequena brochura acima referida recorda-nos o andador, o arco e a gancheta, a mota, o estoque, a espingarda de cana, a boneca de papoila, o pífaro de cana, o arraioco, a atiradeira…e muitos outros.

O estoque, um dos brinquedos que nos recordamos fazer muitas vezes, aqui no concelho de Penacova,  e com ele viajar para os campos de batalha da imaginação, que por vezes era bem real, quando uma “bala” certeira de estopa bem prensada causava alguma dor…





O estoque é "também conhecido por repuxo, estourete, estaleiro, estraque, puxavante, alcatruz, pistola…" nomes que remetem para ""o estalido provocado pelo disparo".

"Consiste num pequeno pau de sabugueiro, de mais ou menos 15 centímetros, a que se retira o miolo. O orifício assim conseguido é tapado com duas buchas de papel (ou estopa ou outro material) de cada um dos lados; de seguida, com um pau mais forte, o atacador ou vareta, moldado de forma a caber no orifício,funcionando como um êmbolo, faz-se pressão, muitas vezes apoiando no peito, sobre uma das buchas de tal maneira que a da outra extremidade sai disparada devido à pressão do ar."


"Há anos, qual era a menina que não sabia dobrar por baixo, com muito jeito, as pétalas de uma papoila para depois as atar com uma ervinha, de molde a provocar uma espécie de cinta de vestido?

Ajeitadinhos, o vestido e os peitos, só faltavam dois pequeninos paus espetados na parte superior ao jeito de braços…

Finalmente aí tínhamos: a boneca de papoila tendo por cabeça o disco do estigma,  e por cabeleira eriçada, um sem número de estames.

A natureza era tão pródiga nesta espécie de plantas , que a brincadeira podia até dar origem a intermináveis procissões vermelhas, dedicadas, sabe-se lá a que santo!"

Fonte:
João Amado, Brinquedos dos Nossos Pais, caderno editado pelo Clube dos Brinquedos Populares, (ADRL) Loureiro . Cernache, 3ª edição, 1992

Nesta pequena publicação são apresentados outros brinquedos com a respectiva ilustração. Ao desenho original, a traço preto, acrescentámos o lápis de cor.










Muitos dos nossos brinquedos tradicionais são comuns a vários países. Curiosamente, na vizinha Galiza existe um número muito grande de brinquedos que nos são familiares.  


Sugerimos uma visita a http://www.noticieirogalego.com/tiratacos/



03 abril 2020

A pneumónica no distrito de Coimbra (1918/19)

Em Penacova, o mês de Outubro e a primeira quinzena de Novembro foram muito duros, com dezenas de casos fatais, quase diários. Sem entrar por agora em mais pormenores, basta verificar que o número anual dos registos de óbitos no concelho rondaria (ente 1911 e 1926) os 320, neste ano de 1918 atingiu 739! 


Também conhecida por gripe espanhola, terá tido origem numa base militar americana e chegado à Europa precisamente através de soldados que vindos daquele continente propagaram o vírus que adquiriu um grau de agressividade fora do comum e resultara da mutação do vírus H1N1.

Entrou na Europa entre Abril e Maio de 1918 e apresentou 3 fases. A disseminação foi muito rápida. Na fase inicial apresentava alguma benignidade mas, nos meses de Setembro, Outubro e Novembro, revelou-se extremamente agressiva. Nos inícios de 1919 ainda se verificou um terceiro surto, menos crítico. Em Portugal, entrou vinda de Espanha, trazida por trabalhadores alentejanos que ganhavam a jorna no país vizinho.

Dada a feição benigna da 1ª vaga epidémica as autoridades não lhe prestaram a atenção devida. Em 13 de Junho ainda se achava que sendo “excessivamente contagiosa” não era, contudo, grave. A própria imprensa, ocupada com a guerra, com a agitação política, com as greves e os levantamentos populares, não valorizou a situação e considerou que se tratava de “uma gripe epidémica ligeira”.

No distrito de Coimbra (1) terá começado na Serra da Boa Viagem (Figueira da Foz) a 9 de Julho e a partir de Setembro a situação agravou-se consideravelmente. Em 24 de Setembro já Góis registava alguns casos e, passados dois dias apenas, o concelho já desesperava com falta de médicos e escassez de açúcar e arroz para os tratamentos. A 27 é também Penela, onde, no Espinhal, o médico foi o primeiro a adoecer, tendo valido um médico militar que ali estava de férias, apesar de acabar também por ser contagiado. Por sua vez, Tábua é atingida a 28 e no final do mês é também Cantanhede que é afectado severamente.

Em Penacova, o mês de Outubro e a primeira quinzena de Novembro foram muito duros, com muitas dezenas de casos fatais. Sem entrar por agora em mais pormenores, basta verificar que o número anual dos registos de óbitos no concelho rondaria (ente 1911 e 1926) os 320, neste ano de 1918 atingiu 739!

Na Pampilhosa da Serra não havia médico e ninguém queria o lugar de facultativo. Na Carapinheira (Montemor) havia médicos que faziam 60 quilómetros de bicicleta para assistir os doentes. A sua falta foi, de facto, um dos principais problemas. Além de outras causas, esta fase crítica coincidiu com a mobilização de muitos deles para as frentes da Grande Guerra. Muitos acabaram por adoecer, como foi o caso de Ângelo da Fonseca que teve de ficar de quarentena na Figueira. Nesta cidade morreu, na casa dos 30 anos, o conhecido músico David de Sousa (recorde-se que os pastorinhos Jacinta e Francisco foram outras das vítimas, bem como jovens artistas portugueses, como o pintor Amadeu de Souza-Cardoso e o pianista António Fragoso, entre outros). Em Penacova, o único facultativo (médico pago pela Câmara) tinha a seu cargo os 3 partidos médicos do concelho.

A agravar a falta de assistência, não havia medicamentos suficientes nem substâncias medicamentosas (por exemplo açúcar, linhaça e mostarda) e e a carestia de vida era uma dura realidade.Por todo o distrito a pneumónica “caiu que nem um vendaval que tudo destrói”.

Em Figueiró do Campo o Pároco, desesperado, de madrugada, escreve ao Bispo pedindo ajuda, na hora em que perante os seus olhos morriam quatro pessoas em simultâneo. Dormia apenas 3 horas para poder administrar os sacramentos aos doentes, muitas vezes já moribundos. As confissões não tinham privacidade pois quantas vezes na mesma cama se encontravam várias pessoas. E não havia sequer tempo para lavrar os assentos de óbito. Para não aumentar o medo e a angústia os sinos deixaram de tocar a finados e, por exemplo, na Benfeita (Arganil) retomaram-se os enterros no antigo cemitério do adro da igreja.

As escolas foram encerradas e nelas foram instalados hospitais provisórios, como foi o caso de S. Pedro de Alva. Na Universidade de Coimbra o arranque das aulas foi adiado.

Em finais de Setembro, Ricardo Jorge havia proibido feiras, romarias e festas religiosas. No entanto, elas iam sendo feitas, ora para pedir clemência divina, ora em acção de graças por determinada terra ter sido poupada em vítimas mortais. Conta-se que, por exemplo, ter-se-á realizado na mesma uma festa na Cheira, o que gerou indignação, conforme se lê na imprensa local.

As vítimas mortais em Portugal terão sido, segundo os números oficiais da época, cerca de 50 mil, mas há quem aponte para um número que ronda os 135 mil. Terá infectado entre um quinto e um terço dos cerca de seis milhões que então compunham a população residente, ou seja, entre 1,2 e 2 milhões de pessoas, com a particularidade de ter atingido especialmente a população em idade activa, entre os 20 e os 40 anos. O seu impacto na economia, no trabalho, na demografia e na organização social em geral, foi extremamente grave. Em meio ano a epidemia causou dez vezes mais mortos do que os soldados que tombaram nos quatro anos que a I Grande Guerra guerra durou.

A nível mundial, a epidemia teve impactos dramáticos: o número oficial remete para um impensável número de cinquenta milhões…

(1)  Para a elaboração do texto, consultámos, além de outros, um artigo de Ana Maria D. Correia, aquando do Centenário da Gripe Pneumónica, bem como os jornais Gazeta de Coimbra, Jornal de Penacova, Ecos de S. Pedro de Alva e Comarca de Arganil.

25 março 2020

Poetas penacovenses (VI): Poesia em tempo de pandemia


Em prosa ou em verso, Penacova já se habituou às reflexões de Luís Pais Amante.
Agradecemos o envio deste texto que o autor fez questão de partilhar - em primeira mão connosco - e que entendemos dever ser também partilhado com os leitores do Penacova Online.

A DISRUPÇÃO DO MUNDO

O nosso tempo entrou em modo de quebradura
Distanciou, inda mais, o mundo já em fractura
Colocou-nos em quarentena
Afastou-nos da fala à “boca pequena”
E separou-nos
Do abracinho da Madalena

Estamos em disrupção
Não podemos dar a mão
Nem abrir o coração
Nem correr em contramão
Nem tocar no corrimão
A nossa civilização está em colapso
Cavado nos fregueses do relapso
Está instalada a rutura
Do carinho e da ternura
Estão fechadas as fronteiras
Separadas as nossas esteiras
Confinadas povoações
Com tampões colocados nos próprios dos aldeões
Donos do livre ar sem convulsões
Temos que acabar com isto, alterar o paradigma
Cantarmos em sol com rima
Unir esforços
Mandar para trás os remorsos
Confinarmos os destroços
Puxarmos pela destreza
Darmos mais atenção à limpeza
Trabalharmos com mais firmeza
Responder com luva branca à safadeza
Adoptar só a justeza
... e esperar ...
... que venha o Verão e o vírus fique sem ar!

Luís Pais Amante
Telheiras Residence
25Mar20; 17h15

Concentrado no meu novo modo de vida de “solitário solidário”.


24 março 2020

Música e dança popular em Penacova nos finais do séc. XIX (II)


Prosseguimos com a publicação de um conjunto de recolhas de músicas e danças que nos finais do século XIX ainda estavam vivas no concelho de Penacova. Depois do tema "Oh que Salero!", aqui fica hoje "Carinhosa" dedicada à "Exma Snrª D. Cândida Moreira".

CARINHOSA

Nota: Gostaríamos de dizer que foi através do amigo Eduardo Ferreira que, há uns tempos, tivémos conhecimento da existência desta obra que contém recolhas não só de Penacova mas também de S. Pedro de Alva e Oliveira do Cunhedo.

23 março 2020

Quem terá sido o autor do diário (1907) encontrado em Lorvão?


“Os trabalhos e os dias em terras de Lorvão nos inícios do século XX” é o título de um artigo de Guilhermina Mota, da Universidade de Coimbra, publicado na Revista Portuguesa de História em 2016 a propósito de uns apontamentos encontrados dentro de um livro da Confraria das Almas ou Confraria dos Leigos.

O manuscrito espelha o “quotidiano de um habitante da região de Lorvão” que, entre 29 de Agosto de 1907 e 3 de Janeiro de 1908, “regista num diário pessoal acções, eventos, quase nada de emoções.”

Não se sabe o autor mas “este registo permite reconstituir parcialmente as tarefas com que se ocupa e parte da sua rede de relações sociais, onde se destacam as que se associam à Confraria das Almas. “

Alguém, em terras de Lorvão, registou, numa segunda-feira, 2 de setembro de 1907, o seguinte:

«Reguei feijões e coives concertei a porta do relogio puz a aza na tampa do forno, defolhei um pouco no Valr.º da Boiça, armei os barrotes p.ª fazer palheiro arrumado á tulha etc Veio o Ant.º que levou 18 mil rs para o j.º do Sr Duque».

“Ao longo dos meses que se seguem vai desenvolver muitas outras actividades que lhe tomam as horas e consomem as energias, mas que lhe merecem tal consideração que as deixa registadas em breves apontamentos.”

Diz Guilhermina Mota que “este diário pertence a um homem do campo, que assenta as minudências do seu dia a dia, quer as tarefas desenvolvidas, quer os momentos de recreação e vagar.”

“Seja como for, quem redige tem uma letra bem desenhada e uma exposição do pensamento ordenada e sintética que aponta para alguém com mão habituada à pena. Cultivar a escrita, dominar a disciplina do registo, sentir a necessidade de recordar o acontecido, tudo isto nos mostra um perfil que não corresponde àquele que, no dealbar de novecentos, se atribui ao campesinato, rústico, ignorante, incivilizado, muitas vezes analfabeto.”

Quem seria este homem que amanhava terras,  que se ajeitava como artesão, que também orientava obras de pedreiro, que movimentava dinheiro e, que “surpreendentemente” - acentua aquela investigadora – sabia escrever?

18 março 2020

Música e dança popular em Penacova nos finais do séc. XIX (1)


“A alma de um povo manifesta-se nos seus cantos, assim como a actividade do seu espírito se patenteia nas suas obras. Inebria-se nas grandes alegrias; abate-se nas grandes dores; acalma-se perante as grandes calamidades; ora enaltece o amor, a virtude, o talento e o heroísmo; ora estigmatiza o cinismo, o vício, a imbecilidade e o crime; para cada vicissitude da vida tem uma forma especial de expressão, franca, simples e sincera, que aplica sem circunlóquios nem preâmbulos: é a ideia explodindo vigorosa.” - escreveu em 1895 C. das Neves, numa publicação dedicada à música / dança popular. A obra resultou de uma recolha feita um pouco por todo o país. O concelho de Penacova aparece referido. Publicamos hoje "Oh que salero!", recolhida em Penacova, em 1882, por F.P. Nogueira.



Como se dançava?

Damas e cavalheiros dançam de mãos dadas, em grande roda, durante oito compassos; em seguida largam as mãos fazendo balancé aos seus pares, dando estalos com os dedos, braço abaixo, braço acima, durante oito compassos; em seguida dançam em valsa oito compassos.

12 março 2020

Ainda a apresentação em Penacova do livro “A Assassina da Roda” noticiada n' “A Comarca de Arganil"


Com a devida vénia, publicamos o artigo de A Comarca de Arganil de 12 de Março de 2020, assinado por José Travassos de Vasconcelos:

“Rute Alexandra de Carvalho Serra é oriunda de Coja e no passado sábado, dia 7, lançou o livro intitulado “A Assassina da Roda – A História da última mulher executada em Portugal”, na Biblioteca Municipal de Penacova, com a presença de muitos cojenses, familiares da escritora, entre eles o Padre António Borges de Carvalho.
O livro relata um caso que remonta ao ano de 1772, em que Luísa de Jesus, de 27 anos de idade [lapso da notícia de A Voz de S. Pedro de Alva, pois teria 23], casada, praticou crimes horrorosos em Coimbra, onde se descobriu que foram de tal natureza que eles ocupam um dos primeiros lugares na criminologia em Portugal, sendo a última mulher executada em Portugal.
Como se lê num escrito da altura, lido pelo apresentador do livro, Prof. David de Almeida, “Luísa de Jesus residia em Coimbra [era natural de Gavinhos -Figueira de Lorvão, que na altura pertencia ao Termo de Coimbra] e tinha por costume ir à Roda buscar recém-nascidos com o pretexto de se encarregar da sua criação. Depois, em sua casa, ou no olival de Montarroio, matava as crianças, esquartejando-as, asfixiando-as ou enforcando-as e assim conseguiu eliminar 33. Ao confessar os crimes cometidos, declarou, porém, ter morto 28 e não 33. Passada busca a casa, foram encontrados dentro de um pote de barro, não muito oculto, crânios, ossos e pedaços dos pequeninos cadáveres em completo estado de putrefação. O fétido dentro da casa era horroroso, parecendo incrível que alguém ali pudesse residir. A monstra ia buscar as crianças para poder receber a espórtula de 600 réis, 1 côvado de baeta e 1 berço por cada uma. O julgamento efectuou-se em Lisboa, onde cumpriu a pena por sentença da Relação, sendo atenazada pelas ruas públicas, cortadas as mãos em vida, garrotada e queimada em 1 de Julho de 1772.”
É esta a história verídica que Rute Serra passou para as páginas de um livro, lançado já em Lisboa, pela Guerra e Paz Editoras, um romance histórico de intensa emoção, baseado em factos verídicos, que refere “aqui, as nossas convicções sobre verdade, mentira, miséria e ostentação são postas definitivamente à prova”.

Depois do Vice-Presidente da Câmara, João Azadinho, ter elogiado não só a escolha daquele espaço para o relançamento do livro, como a presença de alunos da Escola de Artes e do Grupo de Teatro de Penacova, que veio enriquecer o momento, foi então a vez do Prof. David de Almeida falar sobre o livro, que após desenvolver parte da história,  focou que “na parte final do romance ficamos a saber que o irmão de Luísa de Jesus terá assistido à execução e terá trazido as cinzas numa “cista” para a Serra de Gavinhos…onde foram espalhadas ao vento, ao mesmo vento que durante séculos  fez rodar as velas dos moinhos ainda hoje ali existentes.”
Para a autora do livro, Rute Serra, foi uma grande honra estar ali num espaço emblemático de Penacova, tanto mais estando rodeada da familiares vindos de Coja, e porque este lançamento tem um significado muito especial, por ser o concelho de Luísa de Jesus, mas também por ser um concelho com uma riqueza patrimonial inexcedível, citando o amor que tinha por Penacova Vitorino Nemésio, que “se inspirou através dos seus escritos”.