25 julho 2023

Governadores civis (1): José Joaquim dos Reis Vasconcelos

GOVERNADORES CIVIS NATURAIS DE PENACOVA 
OU AO CONCELHO LIGADOS POR CASAMENTO


Circular de Pedro José de Oliveira, pelo Secretário Geral da Repartição Central do Governo Civil de Lisboa, 
ao Administrador do Concelho de Sintra, referente à nomeação de José Joaquim dos Reis e Vasconcelos, 
para o cargo de Governador Civil Interino.

Sabia que, naturais de Penacova, ou a este concelho ligados por casamento, tivémos seis Governadores Civis? Foram eles: José Joaquim dos Reis Vasconcelos (Governador Civil Interino de Lisboa, 1846); Fernando Augusto de Andrade Pimentel de Melo (Governador Civil de Coimbra, 1876 e 1878-1879); Júlio Ernesto de Lima Duque (Governador Civil de Évora, 1904-1905); Artur Ubaldo Correia se Sousa Leitão (Governador Civil de Leiria, 1904-1906); Luís Duarte Sereno (Governador Civil de Coimbra, 1905) e Vítor Fernando da Silva Simões Alves (Governador Civil de Bragança, 2009).

NOTA HISTÓRICA SOBRE OS GOVERNOS CIVIS

Após a instauração definitiva do liberalismo em Portugal foi estabelecida (1835) uma nova divisão territorial do país, tendo sido criados, pela primeira vez, os Distritos, circunscrições administrativas que tinham à sua frente um magistrado, o Governador Civil.
Apesar das mudanças de regime operadas em 1910 com a instauração da República e em 1926 com Revolução de 28 de Maio que esteve na base do Estado Novo, esta estrutura manteve-se intacta até 1974.

A Constituição da República Portuguesa de 1976 alterou profundamente o nosso regime jurídico-administrativo, ao instituir o sistema de governo das autarquias locais, que passaram a ser, no território do Continente, as freguesias, os municípios e as regiões administrativas, retirando assim ao Distrito essa categoria.

No entanto, a Constituição estabeleceu que, enquanto não fossem instituídas as regiões administrativas, o Distrito subsistiria como “divisão distrital”, continuando a ter à sua frente um magistrado administrativo, o Governador Civil.

Em 2011 o Governo presidido por Pedro Passos Coelho exonerou os Governos Civis em exercício e criou as condições necessárias, quer por parte do Governo, quer por parte da Assembleia da República, para se proceder à transferência das competências dos Governadores Civis para outras entidades da Administração Pública.

In Os Governos Civis de Portugal e a Estruturação Político-Administrativa do Estado no Ocidente, 2014

Falaremos hoje de José Joaquim dos Reis Vasconcelos, um daqueles notáveis nascidos no nosso concelho e que pouca gente conhecerá ou terá sequer alguma vez ouvido falar.

Apesar de ter feito carreira política em Lisboa, onde foi Deputado, Par do Reino, Conselheiro de Estado, Governador Civil interino e “rico proprietário”, passou a sua juventude na vila de Penacova e cursou Direito em Coimbra. Foi também pelo Círculo de Arganil que pela primeira vez foi eleito deputado. Enquanto amigo de Alípio Leitão estamos convencidos que, mesmo que indirectamente, terá intercedido pelo nosso município junto do Poder Central.

José Joaquim dos Reis (Campos) e Vasconcelos nasceu em Penacova no dia 1 de Março de 1804, filho de Joaquim José Correia dos Reis e de Joaquina Engrácia de Campos e Vasconcelos.

Matriculou-se no Curso de Direito da Universidade de Coimbra em 17 de Novembro de 1818. Mais tarde, a sua carreira profissional viria a passar pelo desempenho do cargo de Procurador Régio.

Partidário da ideologia liberal, acabou por partir para o exílio quando em 1828 D. Miguel se fez aclamar rei absoluto. Perseguidos, os liberais refugiaram-se na Galiza e depois emigraram em grande número para França e Inglaterra. Por este motivo, cedo deixou Penacova. Conta-se que nesta vila os Miguelistas quando souberam da sua fuga fizeram um boneco em palha, representando-o. No Terreiro, depois de simbolicamente fuzilado deitaram-lhe fogo no meio de grande algazarra. Por tudo isto parece que nunca mais terá voltado a Penacova, mantendo, contudo, contactos com a família Correia e com Alípio Leitão, que casara com a filha de Joaquim Correia de Almeida.Quando em 1879 Alípio Leitão tomou posse como deputado terá ido hospedar-se em casa de Reis e Vasconcelos.

O futuro Duque de Palmela também se exilou em Londres. Junto deste, Reis e Vasconcelos tornou-se procurador dos exilados portugueses. Mais tarde, depois da Convenção de Évora-Monte e da vitória definitiva dos Liberais, foi criado o importante cargo de Curador Geral dos Órfãos. Como recompensa pelos altos serviços prestados junto dos exilados foi José Joaquim o escolhido para o lugar, começando assim a sua ascensão social no círculo aristocrático do liberalismo triunfante. Vivendo na alta “roda dos grandes políticos do constitucionalismo”, no dizer de José Albino Ferreira, foi Par do Reino de 1861 a 1884, data da sua morte.

Já Par do Reino, Conselheiro e com 61 anos de idade, casou com a filha do Visconde de Vila Nova de Gaia, Joana Cândida Stubbs, viúva de António Jacinto de Castro Ribeiro.

Filiado no Partido Histórico, foi eleito deputado pela primeira vez em 1838 pelo círculo eleitoral de Arganil, mantendo-se, quase ininterruptamente, durante muitos anos na Câmara dos Deputados.

De Julho a Outubro de 1846 foi Governador Civil Adjunto de Lisboa e há notícia de que em 1867 fez parte do Conselho de Estado e que em 1875 assumiu funções de Vogal do Supremo Tribunal Administrativo.

Coligiu e publicou, em 1851, a obra em dois tomos, Despachos e Correspondência do Duque de Palmela, abrangendo os anos de 1817 a 1826.
Em Janeiro de 1884 foi eleito para presidir à Comissão Administrativa na Câmara dos Pares, mas acabaria por falecer um mês depois, no dia 7 de Fevereiro. Era na altura presidente do Conselho de Ministros Fontes Pereira de Melo. Na sessão do dia 11 deste mês, sob proposta do “Digno Par” Carlos Bento, foi aprovado por unanimidade um voto de pesar, enaltecendo as suas qualidades de “verdadeiro homem de bem”.

03 julho 2023

Nelson Correia Borges homenageado pela Câmara e pela Faculdade de Letras






O Município de Penacova homenageou o investigador e professor universitário Nelson Correia Borges, no decorrer da cerimónia de encerramento do congresso internacional “O Mosteiro de Lorvão no tempo de Catarina de Eça (1471-1521”, que se realizou nos dias 29 e 30 de Junho no Mosteiro de Lorvão, promovido pelo Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa e Câmara Municipal de Penacova. 

Na sessão de homenagem, usaram da palavra o Presidente da Câmara Municipal de Penacova, Álvaro Coimbra, o Director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Albano Figueiredo e Joana Antunes, docente da Secção de História da Arte daquela faculdade.


Começou por dizer Álvaro Coimbra: "Quero falar de alguém que tem dado um contributo inestimável em defesa deste mosteiro. Um trabalho de décadas, exaustivo, incansável e de grande reconhecimento académico, visível em várias obras publicadas em áreas do saber como a arqueologia, a antropologia e a etnografia, na Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão que fundou em 1982 e no amor sem limites que tem dedicado a esta causa." Salientou igualmente, de seguida, que "ao longo de quatro décadas foi defensor acérrimo desta causa. Foi uma das vozes que se levantaram contra os anos em que o mosteiro esteve privado do seu órgão de tubos exemplar único neste país e que durante anos a fio esteve desmontado e sem destino. Indignou-se com a indiferença do Estado em relação à degradação deste monumento e com a total ausência de medidas de salvaguarda do seu património. Afirmou alto e bom som na imprensa, há vinte anos, “se este mosteiro estivesse localizado em Coimbra, Lisboa ou Porto as coisas não estariam assim!” Felizmente a sua voz fez-se ouvir e contribuiu para uma mudança de atitude dos responsáveis políticos."

O Presidente da Câmara afirmou também que "uma das suas grandes reivindicações foi a criação de um museu que guardasse os tesouros de Lorvão. O que considerou o caso mais escandaloso está a poucos dias de ser uma realidade. Perfeccionista e exigente em todos os projectos e causas em que se envolveu procurou a autenticidade e o respeito pelas origens e pela história. Ao Professor Doutor Nelson Correia Borges agradecemos uma vida dedicada à sua terra Lorvão, ao Mosteiro. Senhor Professor Nelson Correia Borges: em nome do Município de Penacova, Muito obrigado por tudo o que tem feito por Lorvão e pelo Mosteiro!"




Por sua vez, o Director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Professor Doutor Albano Figueiredo, proferiu as seguintes palavras:


Excelentíssimo Senhor Professor Nelson Correia Borges:

Começo naturalmente por neste final de tarde, magnífico, a todas e a todos cumprimentar com uma saudação institucional em nome da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e com um agradecimento em particular a Penacova, às suas gentes, mas sobretudo a toda a comunidade aqui reunida, pela belíssima ideia de celebrar científica e culturalmente este espaço com o todo o significado que ele tem numa saudação pela qualidade elevada que sei que marcou todo o trabalho aqui desenvolvido nestes dois dias e que termina com um momento a que a Faculdade de Letras quer, naturalmente, associar-se.

Permita-me Senhor Professor que aqui diga algumas palavras em nome da sua, da nossa Faculdade, e que nunca serão tantas como aquilo que efectivamente a Faculdade de Letras e a Universidade de Coimbra lhe devem.

O Senhor Professor Doutor Nelson Correia Borges está intrinsecamente ligado a este local pelas suas origens, pelo seu trabalho, pelo amor à cultura, investigação e ensino.

Licenciado em História por meados dos anos setenta, tornou-se, a partir do final dessa década docente do então Instituto de História, hoje Secção de História da Arte.

Foi director deste mesmo Instituto durante alguns anos, nomeadamente no final dos anos noventa.

Doutorou-se em 1993 na Universidade de Coimbra com uma brilhante dissertação intitulada “Arte Monástica em Lorvão: Sombras e realidade: Das origens a 1737” que viria a ser editada, já no inicio do séc. XXI, pela Fundação Calouste Gulbenkian em mais um reconhecimento da elevadíssima qualidade da investigação que o Senhor Professor sempre produziu e que está bem patente na sua dissertação que continua actual.

A sua carreira ficou marcada pela dedicação e sobretudo pela elevada qualidade dos trabalho publicados e por aquilo que deu à sua Universidade, à sua Faculdade e que seria recordado em vários momentos e sobretudo quando se torna vogal correspondente da Academia Nacional de Belas Artes, a partir de 1995.

Não serei eu, que sou professor de Literatura Portuguesa, a melhor pessoa para com todo o cuidado e pormenor falar do Senhor Professor enquanto especialista em arte moderna e perdoe-me Senhor Professor essa ousadia.

Todos o sabem aqui que tem como áreas de investigação privilegiada, teve e tem, a arte monástica em Portugal, desde o séc. XVI, particularmente até ao séc. XIX, a Arquitectura e Talha em Coimbra, o Rococó em Portugal e a Região e a Cultura e Arte Popular a que toda a região de Coimbra, não só Penacova, mas a toda a região de Coimbra e todas as gentes da zona de Coimbra tanto devem precisamente pela sua belíssima actividade científica em todos estes domínios enquanto especialista.

Mas sobressai de forma indiscutível - e peço perdão de repetir o que já foi aqui dito - o seu labor como pessoa que se dedicou ao Mosteiro de Lorvão, lugar que marca toda a história da sua terra natal e a que dedicou sempre uma atenção absolutamente central.

Dizem-me que o Senhor Professor com as suas próprias mãos - e não e mito é realidade - aqui produziu muito trabalho e muitos aqui o sabem, por exemplo a propósito duma magnífica grade e muitas outras benfeitorias que por sua intervenção directa ou indirecta se foram fazendo neste local.

É por mais uma homenagem justíssima que hoje lhe é devida que nos reunimos também aqui.

A qualidade cientifica da sua investigação alia-se a um momento muito importante porque estamos aqui, hoje, no local a que o Senhor Professor dedicou muita da sua imensa atenção do ponto de vista da investigação e do seu labor profissional. Não poderia certamente haver outro local tão bom e tão bem escolhido para hoje fazermos esta homenagem ao Senhor Professor. Para além da sua brilhante dissertação de doutoramento muitos outros trabalhos terão sido certamente nestes dois dias novamente aqui citados e trabalhados.

Permitam-me que, muito brevemerente, recorde os trabalhos que dedicou ao órgão do mosteiro de Lorvão, às origens do mosteiro de Lorvão, as relações, por exemplo, estabelecidas entre - ou não – Lorvão e Arouca a que dedicou também grande parte do seu labor ou, por exemplo, ainda aqui a propósito do mosteiro, um importante trabalho com o titulo “As intervenções de Mateus Vicente de Oliveira no Mosteiro de Lorvão”. Igualmente a propósito de Arouca e Lorvão “A exaltação de Cister em Arouca e Lorvão, no século XVIII”, entre muitas outras obras que aqui podiam ser recordadas. "

É, por isso, desnecessário fazer aqui outra referência àquilo que foi o magistério do Senhor Professor na Faculdade de Letras, a sua casa, a nossa casa, uma casa de artes, uma casa de humanidades, uma casa de ciências sociais e que, como há pouco dizia, quer como professor quer como investigador, quer como pensador, quer como critico, a Universidade e a Faculdade de Letras tanto lhe devem.

Mas tomando também aqui o caminho do Sr. Presidente da Câmara, permita me Senhor Professor, mais esta ousadia, a de recordar que a Universidade, a Região, as pessoas, lhe devem também, para além da sua qualidade como investigador e docente o trabalho em torno da defesa do património. Pessoa ligada ao Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, pessoa ligada à Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão, de que foi presidente, à Confraria dos Sabores de Coimbra e ao Grupo Folclórico de Coimbra, que também liderou.

Permita-me Senhor Professor que lhe dê um testemunho aqui mais pessoal. Nunca tive o gosto de o poder conhecer mais de perto. A primeira vez que o vi e que associei o nome que conhecia de algumas coisas que já tinha lido e ouvido do Senhor Professor, dizendo bem, foi precisamente quando o vi ligado às tradições folclóricas na cidade de Coimbra. Não me leve a mal que aqui o refira. É preciso que todos e todas saibam que um universitário é uma pessoa, e não é, seguramente , um universitário completo aquele que se fecha no casulo da academia e não tem preocupação de valorização de tudo o que o rodeia.

O Senhor Professor soube sempre privilegiar o seu trabalho académico mas ao mesmo tempo compaginá-lo com um legado e um labor que desenvolveu paralelamente no âmbito da cultura, das artes populares, da revivificação de tradições, daquilo que foi a recuperação rigorosa dessas mesmas tradições no campo musical, no campo da dança, no fundo, no campo do património e das artes. O Senhor Professor é claramente um cientista das artes e um homem das artes. Homem rigoroso, correcto, exemplar, exigente, e que soube dosear esses elementos que colocou à disposição dos seus estudantes e da sua faculdade, precisamente, com abertura ao mundo, permitindo que toda a nossa região, também a esse nível, possa ainda hoje beneficiar daquele que foi o seu trabalho.

Termino por lhe agradecer genuinamente tudo o que fez pela sua, pela nossa Faculdade de Letras, pelo seu, pelo nosso, Instituto da História da Arte, pelos seus estudantes, pelos seus colegas, pela história, pela arte, pela cultura, em Coimbra, em Portugal, dentro e fora da Academia.

É uma justíssima homenagem que todos lhe devíamos, lhe devemos, e que em boa hora os organizadores deste congresso e o Sr. Presidente da Câmara decidiram levar por diante.

Muito obrigado Senhor Professor por tudo o que lhe devemos. Muito obrigado pela sua dedicação. Muito obrigado e Parabéns Senhor Professor!

Notas: 1 - O texto publicado foi extraído do vídeo publicado pela organização do Congresso.
            2 - Créditos das imagens seguintes: Município de Penacova











NOTA BIOGRÁFICA

Natural de Lorvão (1942), Nelson Correia Borges desde cedo se interessou pela história do mosteiro em torno do qual a povoação se desenvolvera, nomeadamente a partir do momento em que se decidiu, pelos meados da década de 70, a fazer o curso de História na Faculdade de Letras de Coimbra. No âmbito da cadeira de Epigrafia, no ano lectivo de 1975-1976, estudou a única inscrição romana daí proveniente, estudo que viria a publicar-se na revista Conimbriga (XV 1976 117-125), sob o título «Nova leitura da inscrição CIL II 6275a (Penacova)», e também no jornal Notícias de Penacova (2-9-1977, p. 2: «A inscrição romana de Lorvão»). 

Pouco tempo depois, deu à estampa os resultados da investigação que tivera como um dos pontos de partida a identificação de uma pedra visigótica «ornada de vide ondeada com cachos de uvas e gavinhas» que teria pertencido ao «primitivo templo» (p. 16), datável da época do bispo Lucêncio, a 2ª metade do século VI («Lucêncio, bispo de Conímbriga, e as origens do Mosteiro do Lorvão», Conimbriga XXIII 1984 143-158). 

Tendo ingressado como docente na área de História da Arte, a sua dissertação de doutoramento, em 1992, foi, naturalmente, sobre Arte Monástica em Lorvão: sombras e realidade, obra que viria a ser publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001.

Fonte: José d’Encarnação | Universidade de Coimbra 
in Recensão ao livro de NCB,  Doçaria Conventual de Lorvão.

Reportagem: Congresso "O Mosteiro de Lorvão no tempo de Catarina de Eça (1471-1521)"


Nos dias 29 e 30 de junho, decorreu no Mosteiro de Lorvão o Congresso Internacional "O Mosteiro de Lorvão no tempo de Catarina de Eça (1471-1521)", uma parceria entre o Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa e o Município de Penacova.

A sessão de abertura contou com a presença e uso da palavra de Álvaro Coimbra, Presidente da Câmara Municipal de Penacova, Catarina Tente, Directora do Instituto de Estudos Medievais, Catarina Fernandes Barreira, do projecto “Books, Rituals and Space in a Cistercian Nunnery - Lorvão” e de Hilda Gonçalves, Diretora do Centro de Formação da Associação de Escolas Minerva.


Com um programa muito intenso o Encontro distribuiu-se por 8 sessões: a 1ª e 2º sessões foram dedicadas ao tema "O Mosteiro de Lorvão, Portugal e o Mundo ". Seguiu-se a 3ª sessão, que teve como assunto "Catarina de Eça: arte e representações", tendo a 4ª sessão sido afectada ao tema "Sons e representações". A quinta sessão teve como tema geral “Espaço, liturgia e materialidade” e a sexta “O culto dos santos em Lorvão: São Bernardo e Mártires de Marrocos”. As duas últimas sessões foram dedicadas aos temas “ Projetos sobre e para o Mosteiro de Lorvão: o futuro da memória” e “O espaço monástico”. A terminar o evento foi prestada uma homenagem ao Prof. Doutor Nelson Correia Borges no fim da qual actuou o Coral Divo Canto.

O colóquio, tal como o nome sugere, pretendeu destacar e estudar a figura de Catarina de Eça que teve um longo abadessado (1471-1521) à frente da comunidade lorbanense, “numa fase de profundas transformações na própria vida religiosa e política do reino”.

“Conhecemos hoje melhor a sucessão de importantes mulheres que, durante os séculos medievais, governaram os principais e mais ricos mosteiros cistercienses portugueses, com particular enfoque para os de Arouca e Lorvão”. Catarina de Eça emerge como uma figura revestida de uma particular autoridade, logrando impor uma verdadeira “dinastia” no governo deste importante mosteiro e desenvolvendo toda uma estratégia de prestígio e afirmação da sua família e do mosteiro, desde logo testemunhada pelas empresas artísticas por ela promovidas: a construção de novos edifícios e a renovação de outros já existentes; os investimentos na arquitetura, na escultura e na pintura, ou ainda a encomenda de imagens devocionais e de equipamentos litúrgicos, como alfaias, paramentos e códices manuscritos” – salientam os investigadores do Instituto de Estudos Medievais.

Para os leitores do Penacova Online, transcrevemos, a partir da visualização de vídeos publicados pela organização, a excelente síntese que Maria Helena da Cruz Coelho fez no encerramento deste Congresso em que estivemos presentes e que muito nos agradou e enriqueceu.

Conclusões do Congresso

(Professora Doutora Maria Helena da Cruz Coelho)


O congresso intitulado O MOSTEIRO DE LORVÃO NO TEMPO DE CATARINA DE EÇA (1471-1521) , que decorreu em dois intensos dias de frutuosíssimo trabalho cientifico e excelente convívio humano, abriu com uma conferência que nos rasgava horizontes. Saindo do mosteiro, situado em Lorvão, no concelho de Penacova e no Reino de Portugal, projectou-nos por terras de África e da Ásia, dando-nos a conhecer o alcance político do império português. Roger Lee abriu-nos os caminhos levando-nos do Golfo da Guiné, onde chegavam os portugueses quando Catarina de Eça assumia o cargo de abadessa em 1471, passando pela Índia e pelo Brasil, até alcançar as Molucas, que já eram conhecidas em 1521, no ano da sua morte.

Em seguida, a organização do Congresso, que calorosamente felicitamos, estabeleceu seis eixos condutores no desenvolvimento dos estudos, mais contextualizadores ou mais específicos, da realidade monástica, em particular a Lorbanense. axializados em torno: o Mosteiro de Lorvão e a sua integracão em Portugal e, de uma forma mais lata, no espaço peninsular no âmbito de uma pertença à Ordem de Cister; Catarina de Eça, a arte, a música e as representações; espaço, liturgia e materialidade; o culto dos santos em Lorvão, S. Bernardo e os Santos Mártires de Marrocos; projectos sobre e para o mosteiro de Lorvão; o futuro de uma memória e, por fim, o espaço monástico.

Após o afastamento dos monges beneditinos que habitavam o mosteiro de Lorvão as monjas que aí se instalaram observaram os costumes cistercienses de acordo com a decisão do papa em 1211. A incorporação na Ordem de Cister implicava a pertença a uma estrutura supranacional que se estendia a toda a cristandade através das centenas de mosteiros que então se fundavam um pouco por toda a Europa.

O mosteiro de Lorvão estava, assim, sujeito às decisões emanadas da cúpula da ordem de Cister - Capítulo Geral - que se reuniu em Cister todos os anos e onde tinham assento todos os abades dos mosteiros das Ordens.

Extraordinariamente preocupados com as questões da unanimidade litúrgica e do cumprimento da normativa, usaram as visitações para regular e corrigir a forma como as diferentes comunidades cistercienses punham em prática as determinações emanadas do Capítulo Geral.

É neste contexto que Ghislain Baury nos traça o programa de reforma dos mosteiros cistercienses peninsulares, mas convocando para além dos visitadores da ordem, outros agentes nela empenhados como a Realeza, a Congregação de Castela e o Papado.

Da espacialidade peninsular fomos conduzidos pela palavra de Saúl Gomes para o território de Portugal, percebendo o estado das abadias cistercienses nos finais do séc. XV e nos alvores do séc. XVI, as quais, tendo Alcobaça por cabeça, se nos revelaram em grande diversidade sócio- económica, cultural e religiosa, havendo casas arruinadas e pobres, outras apresentando bons rendimentos, vários privilégios e significativo património material e cultural, umas seguindo as boas normativas de Cister e noutras reinando costumes relaxados.

E continuando a aproximar a lente de focagem do objecto a captar, Luís Rêpas centrou a sua comunicação na reconstituição da linhagem de Catarina de Eça, mostrando a sua ascendência régia, a forma como tal ascendência poderá ter sido determinante na sua escolha para ascender ao cargo máximo do mosteiro e articulando o exercício do poder no mosteiro como o de Lorvão, com o que isso poderia representar para o reforço do seu prestígio pessoal e da sua família.

Tal estratégia passou, como ficou óbvio, pela sua acção mecenática que foi desenvolvia no eixo temático seguinte em que se desvendou a Abadessa Catarina de Eça pela arte e pelas representações.

Joana Antunes analisou com mestria e deu-nos a conhecer o perfil comitente, altamente qualificado, de Catarina de Eça, concretizado no que mandou realizar em Lorvão, em Botão e em Gouveia.

Por sua vez, Mercedes Perez Vidal focou as encomendas artísticas da referida abadessa, nomeadamente as de uso litúrgico, perspectivando-as como uma forma de reforçar e exercer a sua “auctoritas” bem como, obviamente, de construir uma memória que perdurasse e que fosse lembrada e celebrada pela comunidade conventual ao longo de múltiplas gerações.

Para tal, contribuía, de uma forma clara, a utilização recorrente da sua representação heráldica que foi amplamente analisada e contextualizada por Miguel Metelo Seixas que, mostrando várias manifestações heráldicas de Catarina de Eça que ainda hoje subsistem e aludindo a outras que entretanto se perderam mas das quais felizmente se conservou um precioso registo, descodificou o simbolismo das suas diversas componentes iconográficas para vir a concluir como nele se lê uma vontade pessoal de imperativo linhagístico de mimetismo da emblemática régia.

Também no campo das representações, Rosário Morujão conduziu-nos pelo belíssimo e falante mundo da sigilografia, traçando um quadro geral sobre o uso dos selos, sobretudo em contexto monástico, para depois nos mostrar e analisar os espécimes sigilares conventuais usados no mosteiro de Lorvão num período lato que chegou mesmo ao abadessado de Catarina de Eça.

Igualmente no campo das representações e das formas de validação documental, Maria José Azevedo Santos fez-nos uma interessantíssima incursão pela literacia das mulheres nestes séculos mais recuados, um tema cada vez mais actual, através dos estudos das assinaturas autógrafas de várias religiosas da família Eça, nomeadamente, da de Catarina de Eça.

E concluímos o primeiro dia com música pela mão de Joel Machado e Alberto Medina de Seixas que apresentaram os estudo que realizaram a partir dos manuscritos musicais do mosteiro de Lorvão em particular da colecção de 15 livros de coro, de grande e media dimensões que incluem as melodias cistercienses para a missa e o oficio divino, copiadas nas primeiras décadas do séc. XVI, deixando claro o plano de Catarina de Eça no sentido de dotar a comunidade com um conjunto de novos livros para as celebrações litúrgicas do mosteiro.

O segundo dia dos trabalhos iniciou-se com uma interpelante sessão inteiramente dedicada à biblioteca do mosteiro de Lorvão sobre diferentes perspectivas de análise.

Catarina Barreira centrou-se se nos livros, na sua origem, na sua adaptação, e digo na sua origem desde os que aqui existiam e outros vindos de Alcobaça, na sua adaptação às monjas cistercienses e na sua importância para o viver quotidiano da comunidade na prática diária da liturgia cisterciense.

Conceição Casanova e Catarina Tibúrcio concentraram a sua atenção e a sua análise nas encadernações dos códices manuscritos para perceber as intervenções que a este nível foram sendo realizadas no mosteiro ao longo de séculos, mas particularmente em tempos de Catarina de Eça, num esforço para conservar a sua biblioteca em bom estado.

E, por fim, Catarina Miguel dedicou-se ao estudo da cor em três manuscritos de Lorvão a partir da análise com métodos não invasivos de tintas usadas na produção das iluminuras, mostrando como a química poderá trazer excelentes contributos à construção do conhecimento histórico.

Igualmente de vivo interesse científico foi a sessão que se organizou em torno do culto dos santos em Lorvão incidindo particularmente, como não podia deixar de ser, em S. Bernardo, uma referência maior entre os cistercienses, e nos mártires de Marrocos, em virtude da presença antiga de relíquias desses santos no mosteiro de Lorvão.

Foi precisamente pelo culto dos mártires de Marrocos e das suas relíquias que João Luís Fontes e Maria Filomena Andrade começaram, focando com mestria, em primeiro lugar, a renovada mensagem da espiritualidade mendicante, para se centrarem depois na ligação de Catarina de Eça e sua linhagem ao convento franciscano do Espírito Santo de Gouveia, panteão dos Eça.

Especificaram a extraordinária oferta que esta abadessa fez a essa casa mendicante de uma relíquia dos próprios proto-mártires de Marrocos bem como de um conjunto de alfaias que serviam para a celebração litúrgica da memória dos mártires que nos mostram como tal acto era significativo da estratégia de Catarina de Eça no sentido de exaltar o culto dos mártires associados à espiritualidade franciscanas e de reforçar a memória da sua própria linhagem onde muitos dos seus parentes mais próximos estavam sepultados.

Carla Varela Fernandes, ainda no mesmo contexto, centrou a sua intervenção na análise estilística e iconográfica, muito interrogativa, da arca relicário dos santos mártires de Marrocos que pertenceu ao mosteiro de Lorvão e que hoje se conserva no museu nacional Machado de Castro em Coimbra a qual constitui uma singular escultura medieval portuguesa sempre a desafiar as interpretações dos estudiosos.

Por sua vez, Manuel Pedro Ferreira apresentou os livros de Lorvão relevantes para a prática musical e comparou as características paleográficas da notação de um hino polifónico conservado nos mosteiros femininos de Lorvão e Arouca e de um antifonário oriundo de Alcobaça para chegar a importantes conclusões sobre a circulação de textos nas abadias cistercienses portuguesas.

A tarde foi dedicada ao património edificado de Lorvão e aos projectos em curso para valorizar e divulgar este mesmo património, louvando-se, desde logo, a criação do Centro Interpretativo de Lorvão que aqui nos foi apresentado por Fábio Nogueira, Centro esse a ser inaugurado dentro de breves dias.

Este projecto e os esforços empreendidos por Ana Pagará para a promoção de uma rota nacional dedicada ao património cisterciense, articulada com a rota europeia de abadias cistercienses, apresentam boas perspectivas para o desenvolvimento económico e cultural da vila de Lorvão e do concelho de Penacova.

A base de dados que nos foi apresentada pelos investigadores do projecto “Livros, rituais e espaço num mosteiro cisterciense feminino. Viver, ler e rezar em Lorvão (séc. XIII a XVI)”, para além de servir uma comunidade especialista de várias áreas do saber, desde a musicologia, a codicologia, a história, a história da arte, a heráldica, a sigilografia, a química, poderá contribuir igualmente para a divulgação de Lorvão e do seu património material que conservante essencialmente no arquivo nacional da Torre do Tombo e na Biblioteca Nacional de Portugal não deixa igualmente de remeter para Lorvão e o seu mosteiro onde ainda hoje se guardam alguns códices manuscritos e impressos de que destacamos uma Regra do séc. XVI.

Este espaço monástico propicia de facto múltiplas perspectivas de abordagem. Uma delas, vimo-la ou sentimo-la por via de Miguel Metelo Seixas e com algumas achegas de Luís Repas e essa via será precisamente a descoberta das representações heráldicas que também contam uma história ou aliás contam várias histórias, a história da comunidade conventual e de quem viveu no mosteiro de Lorvão e a história de cada uma das suas religiosas ou doutras mulheres que passaram por Lorvão ou aqui viveram.

Creio que se tratou de um congresso da maior relevância científica e cultural, para além de se centrar numa cronologia extraordinariamente importante para a história de Portugal, por ser um tempo em que Portugal atinge todos os continentes e se abre em definitivo para o mundo,

proporcionou-se, em consentâneo, uma visão multifacetada da história através das diversas vertentes de análise que resultaram da aplicação das diferentes metodologias de investigação, própria das ciências e dos saberes que se cruzaram nestes dois dias.

Certo é que algumas das informações que aqui foram apresentadas já eram conhecidas por intermédio do trabalho desenvolvido, de muitos outros autores, mas permitam-me aqui destacar, mormente pelos estudos do Professor Nelson Correia Borges, meu ilustre colega e amigo e uma figura ímpar na historiografia de Lorvão.

Ainda assim, ao revisitar essas temáticas, agora os investigadores aqui presentes colocaram por certo novas questões, reformularam os ângulos de análise, diversificaram as fontes e as metodologias usadas, cruzaram os saberes e, desta forma, conseguiram avançar nas abordagens e nos resultados e, mesmo em alguns casos foi já evidente a utilização de fontes e de técnicas até agora absolutamente desconhecidas ou quase desconhecidas e pouco utilizadas que em boa hora estão a ser desenvolvidas e a ser dadas a conhecer a um público mais vasto.

Estão pois, reitero, de parabéns os organizadores, os parceiros e os oradores deste congresso internacional O MOSTEIRO DE LORVÃO NO TEMPO DE CATARINA DE EÇA (1471-1521) ,

mas estão sobremaneira de parabéns a história, a cultura e o património de Lorvão, de Portugal e da Humanidade, articulados em saberes múltiplos, em amplas diacronias, em diversificadas espacialidades e potenciados por diálogos bidirecionais do local global e do global local que rompem fronteiras do conhecimento e apelam a uma revivificada e universal confraternidade cientifica, cultural e humana.

Muito obrigada.

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(Créditos das imagens: Instituto de Estudos Medievais e Município de Penacova)












29 junho 2023

S. João, o padrinho caloteiro...

 


O jornal A Lanterna (1901-1935) foi o principal representante do movimento anticlerical brasileiro e teve larga divulgação neste país no século XX. O anticlericalismo Brasileiro neste órgão da imprensa, foi muito mais de cunho religioso do que político, atacando principalmente os clérigos nos aspectos morais e dogmáticos.

Entre nós, o Jornal de Penacova, nos anos que precederam a implantação da Repúbica e principalmente durante os tempos agitados da aplicação da Lei da Separação, também foi veículo dessa crítica, muitas vezes implacável e não raro enxovalhadora dos padres que estavam à frente das paróquias.

Terá sido neste contexto, que naquele jornal brasileiro apareceu um pequeno artigo intitulado “Lanterna Mágica: Padrinho Caloteiro” e que, anedota ou não, dizia o seguinte:

“Segundo conta o Jornal de Penacova (Portugal) na igreja duma das freguesias daquele concelho procedeu-se ao baptismo de um rosado pimpolho, com a solenidade exigida pelo ritual respectivo.

A alturas tantas, o sacerdote pergunta ao padrinho se era casado e, tendo este respondido afirmativamente, indaga ainda se tinha casado civil ou catolicamente.
- Civilmente, respondeu de pronto o interrogado.
- Nesse caso não pode ser padrinho da criança…
- Não haja dúvida. O pior é que a criança tem de ser baptizada hoje e não há facilidade em encontrar outro padrinho, por toda a gente andar agora na azáfama dos campos…
- Tudo se remedeia, diz o padre, conciliador. Está ali S. João, que nada tem que fazer e que da melhor vontade se prestará a apadrinhar a criatura.
- Pois seja assim!

E assim foi.

Realizada a cerimónia, todos se preparam para sair, quando o padre pergunta:
- Então quem paga o baptizado?
- Quem paga ?! O padrinho, como é costume...
- Mas o padrinho…foi o S. João. Peça-lhe o dinheiro, Sr. Prior, que ele tem obrigação de lhe pagar…

Calculem a cara de... esperto com que o padre ficou... “




26 junho 2023

Quem conta um conto aumenta um ponto


Um dia desses, pesquisando um assunto no Google, por acaso deparei-me com uma publicação de abril/2016 no blog Penacova Online, na qual David de Almeida ao escrever sobre Gondelim e a Lenda da Senhora da Moita, se referiu a um texto meu, no qual eu dizia terem os moradores enterrado os sagrados objetos quando da invasão moura.

Com a minha revisita ao texto publicado pude ler dois comentários. Um de 2021, onde no um leitor anônimo apontava erros na minha narrativa, pois que os escondidos haviam sido encontrados no oco de um carvalho, e não que estivessem enterrados. No comentário de 2022, do próprio bloguista, defendeu-me ele dizendo ter sido minha narrativa romanceada. Comentário que encerra perguntando: E quem sabe afinal?

Do que se tem de mais antigo registrado, e creio ser de onde se retira todo o contexto histórico, está corretíssimo o leitor anônimo: melhor teria sido se tivesse eu escrito simplesmente que esconderam a imagem, sem florear muito.

Frei Agostinho de Santa Maria, em sua obra Santuário Mariano e Histórias das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, publicada em 1721, no Tomo VII, Livro IV, Título XXIX, página 467, na busca de informações, sobre a imagem, esteve em Gondelim, lugar então com não mais que trinta vizinhos.

Deve ter podido conversar com todos. Falando sobre o que escutara dos moradores, registrou:

“…cujas notícias confesso as tive por frívolas, mas como não pude descobrir quem me
desse mais exatas, me acomodei a descrever o que pude achar”.
“… não é possível averiguar, que quando o bárbaro Almansor destruiu a Província de
Beira, no ano de 983, os cristãos de Gondelim, temerosos do diabólico furor,
despojaram a igreja de todas as coisas sagradas”.
“... esconderam a imagem e o sino em um bosque ou mata fechada”
“… passado aquele furioso tormento…esta fé dilatou por tantos anos, que mortos os
pais e filhos espalhados por lugares, se perderam a lembrança do escondido tesouro,
de sorte que os novos moradores de Gondelim já não tinham dela notícia, que aos
mouros havia sido ocultada e não permitiu tantos anos fosse achada”.

Escondida que fora em 983, com os mouros expulsos em 1492, se deduz ter sido mantida escondida por mais de 500 anos.

Quanto ao encontro extraordinário o frei escreveu:

“…nessa pois tradição os naturais, referida de pais para filhos que fora escondida
e achada milagrosamente, a imagem de Nossa Senhora da Moita metida em um
cavernoso tronco de carvalho...”.

Em 1712, o mesmo autor, de modo mais conciso, escrevera no Tomo IV, Livro 2, Título XCII, página 645:

“Os princípios e a origem dessa Santa Imagem se referem mais por tradição do que
escrituras…dizem os moradores e velhos daquele lugar, que os princípios dessa
imagem são de tempo imemoriais”.
“… porque dizem que assim ouviram dos seus antepassados, e a tradição conservam”.
“ …havia uma mata onde fora achada a Santa Imagem metida no tronco de
um carvalho…”.

Dessas obras extraí a passagem para o prefácio do meu romance, ainda não publicado. Para melhor deixá-lo, na revisão optarei pelos verbos utilizado pelo Frei Agostinho. 

Assim a imagem teria sido escondida e depois achada no tronco oco. Sem querer ferir suscetibilidades religiosas, até porque católico sou, o círio que não incluí entre os sagrados escondidos, caso o faça, ao serem encontrados, eu o manterei apagado, porque esse detalhe me parece um ponto que alguém aumentou ao contar o conto.

P.T.JUVENAL SANTOS

https://archive.org/details/santuariomariano07sant_0

https://archive.org/details/santuariomariano04sant_0

26 maio 2023

Alves Mendes: notas para melhor conhecer este ilustre penacovense

 


Alves Mendes é uma das grandes figuras nascidas em Penacova e que deixaram o seu nome inscrito nas páginas da história e da cultura portuguesas. 


Encontramos muitas vezes em jornais e revistas referências a este ilustre penacovense. O primeiro excerto que a seguir transcrevemos foi publicado no jornal “Voz Portucalense” e o segundo num blogue de Penafiel. São elementos interessantes a juntar ao que temos vindo a publicar, quer no Penacova Online, quer no Penacova Actual.


Alves Mendes e a Capela das Almas (Porto)

Alves Mendes é uma figura eminente das letras portuguesas. Nasceu em Penacova e morreu em 4 de Julho de 1904, no Porto. Está sepultado no cemitério do Prado do Repouso. Formado em Teologia, foi cónego da Sé do Porto e professor do Seminário Maior desta cidade.

A sua fama de orador sagrado firmou-se principalmente desde que, em Lisboa pronunciou a oração fúnebre de Alexandre Herculano, por ocasião da transladação dos restos mortais do grande historiador para os Jerónimos. Pregou depois em idênticas solenidades, comemorando a morte de vultos insignes como Fontes Pereira de Melo e Barros Gomes. Uma das suas orações mais notáveis foi pronunciada no Mosteiro da Batalha, quando para ali se fez a transladação dos restos mortais do príncipe de Avis.

Além os discursos Alves Mendes publicou um livro de viagens, "Itália", que originou uma polémica, tendo sido acusado de plagiário de E. Castelar, escritor espanhol que publicou "Recuerdos de Itália". Em discussão acesa com Almeida Silvano sobre filosofia tomista, escreveu: "Um Quadrúpede à Desfilada" e "Tomista ou Tolista", obras que, no género, são verdadeiramente notáveis pelo vigor e sarcasmo da linguagem.

Além de orador sagrado, Alves Mendes foi um burilador de frases e um joalheiro de linguagem. Basta atentar nas frases escritas no seu túmulo, no Cemitério do Repouso.

Pois este escritor notável está duplamente ligado à Rua de Santa Catarina: pelo casamento de Camilo aqui realizado e porque desempenhou o lugar de Provedor da Irmandade das Almas, erecta na Capela das Almas, da mesma rua.

Lê-se no Livro das Actas da Capela das Almas que "No dia 8 de Maio de 1899, pelas oito horas da noite, foi eleito Provedor o Doutor Cónego Alves Mendes". Em 21 de Maio de 1900 volta a ser eleito para o triénio de 1900-1902, o Cónego António Alves Mendes da Silva Ribeiro, Arcediago d'Oliveira (a primeira vez que aparece este título honorífico). Em 2 de Maio de 1903, o Cónego Doutor Alves Mendes, Arcediago d'Oliveira, é reeleito, pela última vez, Provedor da Irmandade das Almas. E a partir deste momento não aparece mais qualquer alusão ao notável orador sacro que faleceu em 4 de Julho de 1904.

Pareceu-nos que uma referência a este escritor e orador sacro, célebre no seu tempo, não ficaria mal, já que o tempo vai diluindo a memória de todos, mesmo dos vultos mais eminentes. O tempo atreve-se a tudo.


Alexandrino Brochado, in “Voz Portucalense”

[Inauguração do culto de uma nova imagem do Sagrado Coração de Jesus no dia 24 de Junho de 1881 em Penafiel]

(…) Na sexta-feira dia 24, as cerimónias religiosas foram presididas pelo cónego da Sé do Porto Alves Mendes, que foi orador tanto da parte de manhã como de tarde.

O padre de seu nome completo, António Alves Mendes da Silva Ribeiro, era um pregador sobejamente conhecido pela elevação dos seus discursos e fascinação do seu estilo. A sua fama de orador sagrado firmou-se principalmente desde que, em Lisboa pronunciou a oração fúnebre de Alexandre Herculano, por ocasião da transladação dos restos mortais do grande historiador para os Jerónimos. Uma das suas orações mais notáveis foi pronunciada no Mosteiro da Batalha, quando para ali se fez a transladação dos restos mortais do príncipe de Avis.

Como escritor e orador sagrado, Alves Mendes foi um burilador de frases e um joalheiro de linguagem.”


in http://penafielterranossa.blogspot.com/2019/03/

19 maio 2023

Lorvão há 75 anos: um retrato animador em vésperas da crise paliteira de 1950

Dois anos antes da grave crise paliteira de 1950, Lorvão era ainda uma pujante localidade com um número apreciável de empresas industriais ligadas ao fabrico de palitos e igualmente  um importante núcleo comercial.

Sob o título “O VALOR DA NOSSA TERRA", escreve o correspondente em Lorvão do jornal Notícias de Penacova (20 de Março de 1948):

 Como já por várias vezes temos escrito, Lorvão é hoje uma terra muito importante. Para que os nossos leitores possam avaliar a veracidade destas palavras, vamos descrever ligeiramente o seu comércio, indústria e outras actividades, associações, repartições, etc.:

A. Baptista, com exportação de palitos dos dentes e negócio de madeira de salgueiro.

António Pisco da Silva, proprietário da marca de palitos dos dentes «Diana.».

Benjamim Luiz Pisco &Irmão, com mercearias, exportação de palitos dos dentes, negócio de madeira de salgueiro e cartonagem privativa.

Manuel Ferreira Pedrosa, com exportação de palitos dos dentes e indústria corticeira.

Manuel Rodrigues Craveiro,com exportação de palitos dos dentes e frutas, cartonagem privativa e negócio de madeira de salgueiro.

Maria Ricardina da Silva, com mercearias, vinhos e outros artigos

Manuel Teixeira de Sousa, com fazendas, mercearias, ferragens, material eléctrico e outros artigos, vinhos e agência funerária.

Manuel da Silva Figueiredo,com mercearias e negócio de madeira de salgueiro.

Ezequiel Simões, com exportação de palitos dos dentes, negocio de madeiras e fábrica privativa de cartonagern.

Manuel da Rosa Ralha, com mercearias e exportação de palitos dos dentes e plantas medicinais.

António Saraiva júnior, com estabelecimento de mercearias.

António Rodrigues Craveiro com mercearias, exportação de diversos produtos portugueses e negócio de madeira de salgueiro.

Justiniano da Silva Figueiredo, com mercearias, vinhos e negócio de madeira de salgueiro

Manuel Rodrigues da Silva com mercearia e miudezas

João Rodrigues da Silva, com mercearias, vinhos e outros ar­tigos.

António de Jesus Borges, com mercearias e vinhos.

Manuel dos Santos David, com mercearias, vinhos e outros arti­gos.

António Ramos, com mercea­rias e vinhos.

Felismino Tomé da Fonseca, com mercearias e vinhos.

Alípio Rodrigues Beato, com mercearias.

Manuel Melquíades da Fon­seca, com louças e negócio de pescado.

Edmar Guimarães Oliveira, em­preiteiro de Obras Públicas.

Manuel dos Santos Fabião, for­necedor de madeira de salgueiro.

Manuel de Sousa Rosa, nego­ciante de madeiras, lenhas e car­vão vegetal.

José Albino da Silva, com ofi­cina de tipografia.

Manuel da Fonseca Craveiro, com oficina de sapataria.

Vergílio da Silva Laranjeira, com oficina de reparação de bi­cicletas e aluguer das mesmas.

Joaquim Fonseca, com barbea­ria.

Manuel Simões Mateus, com barbearia.

José Tomé & Irmão, exporta­dores de palitos •Dálias».

António Tomé da Fonseca & Filhos, exportadores de palitos dos dentes."

E acrescenta o colaboardor dor jornal concelhio:

"Há duas camionetas de car­ga, respectivamente, pertencentes aos Srs. Manuel Ferreira Pedrosa e Armando Pedroso.

Possui ainda Lorvão competentíssimos artistas de sapata­ria, alfaiataria, funilaria, caixotaria, e hábeis operários da construção civil (pedreiros e carpinteiros).

Há também nesta terra mui­tos negociantes ambulantes de palitos dos dentes, sarro, borras de vinho, cravagem de centeio, etc., etc.

É Lorvão é centro fabril da importantíssima indústria dos palitos dos dentes, na qual se empregam muitas centenas de pessoas.

Temos a acrescentar ainda ao que acima fica registado, o seguinte: 

3 associações  (Filarmónica Lorvanense, Associação Recreativa Lorvanense e Grupo Representativo de Lorvão (futebol). 

Estação dos CTT com serviço de encomendas, registos, emissão de vales, telefone, etc.

3 escolas: masculina, feminina e mista.

E, para orgulho de Portugal, do concelho e da nossa terra, encontra-se aqui edificado o venerando e secular Mosteiro de Santa Maria de Lorvão, um dos mais antigos da Península e digno de ser visitado."

07 maio 2023

Notas para a história da Casa de Repouso de Penacova (II)



Todo o turista que passe em Penacova, ganha bem o tempo. visitando com cuidado e atenção o encantador Repou­so de Santo António.

Este lugar inédito e aprazível, levanta-se altaneiro e tri­unfante, enfrentando o pacato e poético Mondego que pregui­çosamente corre, nesta parte do ano, a pouca distância.

Da parte superior do edifí­cio, observa-se o panorama mais original e mais soberbo que o nosso formoso Portugal pode mostrar.

O clima é sublime, com o seu ar fino e saudável e com as suas saborosas e puras águas, é recomendado por bons médicos para a cura de certas doenças.

A fachada principal do edi­fício virada ao Sul, é protegi­do ao Norte por uma frondo­sa mata de eucaliptos que dão no Repouso, uma temperatura constante, e agradabilíssima.

Pode dizer-se com toda a justiça, que o Repouso de Santo António, é um trecho do formoso e deslumbrante Buçaco.

Avaliando detalhadamente todos os recantos lindos e esquisitos, é fácil verificar que as mãos do Divino Mestre, juntou ali um fino e delica­do temperamento, a aformose­ar aquele conjunto artístico e de maravilha!

Também não quero deixar de me referir à parte interior do edifício que está primoro­samente mobilado, vendo-se em todas as dependências, a maior limpeza, muito luxo, o maior conforto e muito bom gosto.

Falando ainda do menu se­manal, devo dizer que é supe­riormente executado, não es­quecendo nunca a saúde e o bem estar dos hóspedes que têm a felicidade de vir para o Repouso de Santo António.

E para concretizar, devo afiançar que todo o hóspede instalado no Repouso, fica sempre com vontade de voltar.

Não posso deixar de falar no salão de recreio que pode rivalizar com qualquer dos nossos melhores casinos. Ali nada falta, para distrair o mais exigente espírito moder­no: dois belos pianos de cau­da, uma boa telefonia, bilhar, ping-pong, quino, jogo das damas, etc.

É muito digna de ver-se a pequena e luxuosa capelinha que fica situada na parte mais interior do edifício.

Todo este recanto extraor­dinário pertence à Ex.ma Se­nhora D. Raymunda de Car­valho. Bem haja pois Sua Ex.a pela enobrecedora obra que fundou e por tão préstimos serviços prestados à sua Penacova adoptiva.


Lorvão, 27/8/ 940

Madalena de Jesus Traça e Madeira

__________________

Texto publicado no Notícias de Penacova nº 360, Agosto de 1940; Madalena de Jesus Traça e Madeira, que seria casada com Ilídio Madeira foi professora em Lorvão,tal como o marido. Eram tios das Professoras Maria da Piedade e Maria Helena Marques.

Recorte de jornal: Dia da Mãe

Um poema de Maria Eduarda Silva dedicado à sua mãe no dia em que faria anos, publicado há muito, muito tempo, no jornal Notícias de Penacova, mas que hoje, DIA DA MÃE, evocamos em jeito de homenagem a todas as Mães que já não temos entre nós e que recordamos com profunda saudade.







24 abril 2023

Forte e Flexível como o Salgueiro

"Forte e Flexível como o Salgueiro" é um conto de Ulisses Baptista que nos transporta para o mundo rural dos anos 50 / 60 do século passado.


Jaime era um moço maciço, enrijecido pelas manhãs de geada e as tarefas de campo que o faziam saltar cedo da cama, quando ia ajudar o avô. Era um rapaz alegre e reinadio, apesar dos tenros anos, apesar da imaturidade misturada com a rebeldia da infância. Ligado à vida ao ar livre, a alegria dos verdes anos era ainda mais evidente com a profusão do verde do campo, com o chilrear da passarada e o cheiro perfumado das plantas silvestres. Gostava especialmente da altura da poda da vinha em que colocava em prática a sua habilidade a torcer o vime de salgueiro que os camponeses usavam para a amarrar, depois da poda de Inverno.

A Primavera estava já a entrar e o avô descuidara um pouco algumas tarefas de campo. O ano entrara chuvoso e ele raramente tinha outra hipótese senão usar os sábados para tratar das fazendas. O emprego semanal como funcionário público não lhe deixava outra alternativa.

Hoje, Jaime ia com o avô Daniel e o Ti Quim, primo em segundo grau e jornaleiro de profissão. Jaime adorava estar na presença dos dois, porque o avô também se tornava, nesses dias, mais divertido e tolerante. Eram dias prazenteiros que passavam rápido. Jaime ajudava com gosto a amarrar os espeques dos corrimões, tanto ao tronco das videiras, como aos arames, e ainda se lembrava bem das palavras do primo Quim a explicar como devia fazer para amarrar com o vime:

- Estás a ver como eu faço? - Perguntava. E depois prosseguia a exemplificar e explicar como só ele sabia: - Pegas na verga com a mão direita, passas por trás do que queres amarrar e torces assim, o dedo gordo da outra mão sempre a ajudar a torcer. Torces 4 ou 5 vezes e depois viras para cima com uma torcedela mais forte. No fim cortas a verga que sobra, com uma navalha ou uma tesoura de poda, e deixas, mais ou menos, o mesmo que ficou em cima. E já está. Ora experimenta!

E Jaime fez e conseguiu à primeira. Ainda não tinha 7 anos quando aprendeu. Agora que já passara algum tempo, era já um mestre do ponto. Mas o avô não lhe deixava ainda atar as vides. Essas, por enquanto, eram apenas para os homens mais velhos.

O Ti Quim, mesmo assim, divertia-se a ensinar o moço, porque ele sempre fora bem mandado e Jaime ainda achava graça às piadas que dizia. Na sua inocência, ia ouvindo as graçolas com duplo sentido do velho e nem sempre captava a marosca. Contudo, estava sempre pronto para ouvir mais. O que ele queria também era fazer piscinas a correr para cá e para lá nos terrenos cheios de erva. Por vezes levavam as cabras e os filhotes e ele andava por ali a saltitar de lado para lado, embora o avô lhe ralhasse para ele estar sossegado. Na presença do primo Quim, porém, o avô tornava-se mais jovial e aceitava melhor as suas folestrias.

O Ti Quim, que estava a arrancar um madeiro duma árvore que havia morrido, fez-lhe uma pergunta, enquanto se aproximava dele, curioso:

-Sabes como é que se arranca um toco?

-Não!

-És cavalo dum lado e és cavalo do outro.

Uh, compreendo!

E aquela frase começava a matracar na cabeça do miúdo, até que acabava por perceber a dança das palavras marotas que o jornaleiro soltava, e depois ia meter-se com ele outra vez:

-Ti Quim, você arranca muitos tocos, não é?

E o velho ria-se com ar divertido.

Quando iam amarrar a vinha que o avô havia podado há uma semana atrás, voltou a chamar Jaime para ao pé de si. E voltou a constatar que ele não esquecera o que lhe ensinara um par de anos antes.

O rapaz ajeita-se com o vime. Já reparaste?

É! Tem jeito, tem. Está farto de pedir que lhe deixe amarrar as vides das videiras, mas vou-lhe dizendo que não. Para agora fica pelos espeques e os arames.

- É humilde e trabalhador!

Ao almoço, Jaime gostava de ficar ali a ouvir as piadas do avô e do jornaleiro. Hoje era um dia especial em que todos iam saboreando a apurada chanfana de cabra que havia sobrado do aniversário do avô Daniel, por ter completado 60 anos. Tinha mandado matar uma das cabras mais velhas que criavam no Curral. Para a sobremesa havia uma "novedade" - como dizia o Ti Quim - que a avó tinha também preparado no forno a lenha. Era o folar da Páscoa. A Páscoa que estava já aí, e o miúdo entrara já de férias da escola.

O Ti Quim olhou para Jaime com ar matreiro.

- Queres cabra, ó cabrito?

E o catraio, inocente, respondeu-lhe que não queria mais, não, senhor.

- Não, primo Quim. Não há cabrito. Os cabritos são meus amigos de brincadeiras. Eu não quero comê-los.

- Pois são. Tens razão, não podes fazer isso. É verdade. Não se faz mal aos amigos.

O avô olhou com ar cúmplice para o primo Quim, como a concordar com eles.

- Tu levaste um valente susto de manhã, quando foste à venda?

Jaime segurou-se com firmeza ao mocho de madeira em que estava sentado.

- O meu avô contou-lhe, não foi?

- Pois foi. Sabes que a gente fala nessas coisas.

- Mas eu pensava que ele ia guardar segredo. Ele disse-lhe que me ia borrando de medo?

- Mais ou menos. Não foi bem assim. Disse o jornaleiro a moderar a conversa.

- Mas não queria que o primo Quim achasse que sou um bebé.

- Não és nada, ora lá! Tu fizeste muito bem em fugir dali. Ainda podia sobrar p'ra ti. Então, conta lá como foi!

- Não teve muita graça, primo Quim. Quando cheguei a casa, ainda tremia todo das pernas. Só via aquele homem alto a partir a garrafa na cabeça do outro a escorrer em sangue.

O avô de Jaime pedira-lhe para ele ir à mercearia junto à capela comprar figos secos e cachaça para o primo Quim matar o bicho. Como era costume, Jaime ia sem sequer protestar. Gostava de percorrer o trajeto até à mercearia em alta velocidade. No entanto, para cima, por segurança, para não quebrar nada, vinha sempre a andar. Mas naquele dia fora uma das exceções.

O rapaz quase sempre se surpreendia com algumas figuras peculiares que ia encontrando pelo caminho. Primeiro, ainda perto de casa, passou pela tola da Lucinda. Um daqueles dias, quando andava à lenha com o avô, ouvira-a falar para um corvo, que, a crocitar lá do alto de um pinheiro, dizia que lhe estava a adivinhar a morte:

- Vai-te embora, ó diabo! Vai-te embora, ó Belzebu!

- Queres-me levar, mas não levas

- Sou mais fina do que tu.

E de costas para o alto do pinheiro, de cu a apontar para o céu, mandava palmadas nas nalgas, repetindo a cantilena.

Quando Jaime passou no Terreiro, em frente ao chafariz, apercebeu-se de Laura a encher o caneco com todo o cuidado. Mas hoje não ia ter tempo de inquietar a pobre alma. Seguiu em frente soltando uma breve saudação:

- Bom dia, Ti Laura! Hoje estou com pressa, pode encher à vontade.

- Bom dia, rapazinho. Ainda bem! Vai com Deus!

Logo a seguir cruzou-se com Manel Silva, o matador de gado, que segurava um tracanaz de triga-milha com os dentes, enquanto debaixo do braço esquerdo prendia a broa e debaixo do outro braço um grande naco de carne gorda de porco, quase só sebo, e um saco de linhagem mal dobrado e todo besuntado.

- Bom dia, Ti Manel!

O matador desempastou uma frase qualquer da boca atravancada de comida, já o moço havia seguido a grande velocidade.

Ao deixar Manel Silva para trás, Jaime já ouvia outro homem a pregar da direção da mercearia. Ao aproximar-se, um sujeito que tinha um nome esquisito e que já tinha visto algumas vezes por ali, estava mais extasiado do que nunca, elevando os braços ao ar, para logo de seguida se baixar como se fosse fazer um vénia barulhenta em que balbuciava impropérios a respeito de alguém.

Jaime entrou a correr para dentro do chão térreo da mercearia e disse bom dia. Ninguém o ouviu. Aguardou um bocado até que o sujeito que barafustava se aproximou agressivo do merceeiro e lhe perguntou: - Onde é que ele foi?

- Acho que foi ali arrear o calhau à Ribeira Velha.

- Ai foi. Deixa-o cá chegar que até se borra.

Enquanto isto, entra o Ti 27. O merceeiro parece que sabia de antemão o que havia de dizer:

- Já hoje são 21. Queres um também?

- Bota lá um pra mim!

O Ti 27 era um homem alto e magro. A cabeça pequena entalada entre duas orelhas proeminentes. Cliente e merceeiro, sorveram num trago o conteúdo dos pequenos copos, quase em simultâneo. Jaime, que olhara de soslaio para o homem recém entrado, não conseguiu evitar um sorriso meio abafado.

Nesse instante, entra Crespim na tasca, acabado de servir o corpo, e, sem sequer poder pestanejar, leva com uma garrafa de vidro na testa. Automaticamente, o sangue escorre-lhe pela cabeça e pelo rosto.

O merceeiro pega num peso de 2 kg que tinha ali à mão e tenta em desespero impedir desfecho ainda mais sério: - Ó caralho, para já ou parto-te os cornos.

O cachopo, vendo tal aparato, sai porta fora, só parando em casa, sem figos, nem cachaça, nem nada.

Jaime começara por contar a história com a ajuda do avô, que ia elucidando o primo Quim. Estava já algo desentusiasmado de falar sobre o assunto, quando se lembrou de outro pormenor:

- Depois também lá entrou aquele homem que tem nome de número. Ó avô, porque é que não tenho nome de número?

- Aquilo é uma alcunha, não é o nome verdadeiro. O nome dele é António.

E o primo Quim colocou um pouco de veneno na conversa:

- Isso é por causa da artilharia.

O avô quis disfarçar e atirou.

- De quem a tola da Lucinda gosta, é desse, do 27.

- Isso tem a ver com o futebol? - Perguntou Jaime, confundido.

O Ti Quim não conseguindo esconder um sorriso matreiro: - Por quê, meu menino?

- Porque noutro dia o homem do rádio dizia que o Eusébio já tinha sido o melhor artilheiro da Europa.

- Ah, esse é um verdadeiro pé canhão. Isso é artilharia da pesada, é outra coisa! - Disse o Ti Quim com uma gargalhada.

- Mas assim o Eusébio arrebenta com as balizas todas.

- Já não era a primeira que caía ao chão. Aquilo é força de pantera, de Pantera Negra.

- Eu gosto do Eusébio, ó primo Quim.

- Isso é que é falar, amigo! Rematou o primo Quim. - Então, e também gostas do Benfica?

- Gosto mais do Benfica que do Sporting.

- O teu avô não vai ficar zangado contigo?

- Ele também não me deixa jogar à bola, diz que dou cabo das biqueiras.

- Ó Daniel, tens de deixar o miúdo jogar à bola com os colegas. Ao que ele corre, ainda vai dar um extremo melhor que o Nené, o rapaz que veio de Moçambique.

- Ele tem é de ir para a fazenda connosco. Isso é que era bom.

- Ó primo Quim, acho que já sei de que clube sou. Sou do Benfica.

-É assim mesmo. És cá dos meus. Um dia ainda vais à bola comigo.

O avô interpôs-se novamente na conversa: - Mete-lhe ideias na cabeça, mete. Voltando ao anterior assunto. - Quis fugir o avô ao tema. - Então e que disse o Ti 27?

- Que eu ouvisse, nada.

O primo Quim galgou mais um degrau na malícia. - Também estou convencido que a Lucinda gosta é do 27. Andam os outros dois à bulha pela galdéria e ela nem quer nenhum dos dois.

- Mas eles andam à luta por uma mulher tão tola?

-É para tu veres. Quando cresceres vê se arrumas uma rapariga com juízo. Aconselhou, divertido, o primo Quim.

- E porque é que ela quer namorar com o Ti 27?

-Já te disse. Deve ser por causa da arma.

- Ai, ele também tem uma arma? Pensava que era só o Crisóstomo Navalhas.

- Ah, não. Pelo visto, o António 27 tem uma arma maior.

- O quê? O Ti Crisóstomo tem uma navalha e o Ti 27 tem uma espada?

- É mais ou menos isso. - Esclareceu o jornaleiro.

O avô Daniel estava atento ao barulho que vinha da cozinha e quis atalhar novamente no assunto.

- Desliga esse rádio, mulher! À hora de comer não se houve música.

Apago já. Ouço só esta canção.

Ouvia-se o vozeirão de Simone de Oliveira a cantar a Desfolhada portuguesa. Jacinta gostava muito de a ouvir, mas trazia-lhe recordações que a emocionavam sobremaneira. Começava logo por mexer com ela no início com aqueles versos "quem faz um filho/ fá-lo por gosto", mas os restantes acabavam com o resto, e a mulher ia buscar recordações ao fundo da alma que haveriam de emanar na forma de dolorosas lágrimas. Lembrava-se daquela desfolhada na eira da quinta da família Serra em que o seu Daniel lhe dera o primeiro beijo. Um beijo que a fizera estremecer, porque já por ele andava encantada. Lembrava-se das tardes e manhãs de Verão em que Daniel ficava ao pé dela a namorar, enquanto ela lavava a roupa no rio Mondego. Lembrava-se da boneca de trapos que fizera para Felicidade, a sua única filha, que havia nascido apenas dois anos depois de dar o primeiro beijo a Daniel. Felicidade que se afastava dela cada vez mais. Restava-lhe o seu amado e único neto.

Com a Desfolhada, Portugal fizera a última participação, até à data, no Festival da Eurovisão. E talvez fosse aquela em que as pessoas tinham depositado mais esperança numa boa classificação. A despeito disso, a desilusão fora grande. A Desfolhada portuguesa arrecadara nem uma mão cheia de pontos e um modesto 15º lugar. Era evidente que a ditadura que esmagava a nação, havia praticamente quatro décadas, estava a ter sérias consequências também a esse nível. Pelo menos, era isso que muita gente pensava e afirmava. Apesar do fracasso na classificação, Simone de Oliveira e toda a comitiva nacional tiveram uma receção quase apoteótica à chegada a Portugal. Mas neste ano não iríamos participar, como protesto contra a politização do festival, nomeadamente, no sistema de votação final. No ano anterior à interpretação da Simone em Madrid, havia sido a Espanha a vencer. Eram fortes as suspeitas sobre o envolvimento do ditador Franco a influenciar a organização e o eventual suborno, pelos vistos, tivera resultados bem positivos.

Jacinta cruzou a passagem que ligava a cozinha à sala de refeições. Trazia um folar da Páscoa que aprendera a fazer com as suas primas dos Casais. A avó de Jaime ainda tinha os olhos chorosos, quando o neto reparou no seu rosto.

Avó voltaste a usar daquela cebola forte?

Era assim que Jacinta disfarçava os seus sentimentos, as suas lágrimas e as suas lembranças, perante o seu querido neto.

O marido, apesar do esforço de Jacinta em esconder, acabou por denunciar a sua tristeza:

- Agora, sempre que ouve essa canção, põe-se a chorar.

- Não é nada. A avozinha é que mexe com a cebola, ela é que sabe.

O primo Quim quis levar para a brincadeira e arriscou uma comparação menos assertiva :

- É como as videiras, Jaime. Também já ficam a chorar depois da poda. É do tempo já estar adiantado. Sabes?

Jacinta não se manifestou mais, mas foi soltando um lamento em forma de ai.

- Ó mulher, podias ir à loja do vinho buscar mais uma picheirita!

- Já lá vou, já lá vou. Ainda tenho de ir tratar dos animais, de ir ao quintal às batatas novas para o jantar e ainda quero ir apanhar a oliveira, o alecrim e um pouco de louro para fazer o meu ramo e o do Jaime, para ir benzer amanhã. Depois fica tarde. Tenho muito para fazer.

- Então vai lá tu, Jaime. Vai lá!

O primo Quim aproveitou a ausência de Jacinta e de Jaime para elogiar o rapaz: - Tens feito um bom trabalho com a educação do miúdo!

- É um rapaz trabalhador e muito esperto. Mas não tem sido nada fácil. Mais para a Jacinta, mas também para mim.

- É uma pena o que vos aconteceu, meu amigo. Mas o pior foi deles. E do miúdo também, coitado, que ficou mais desamparado. Mas vocês têm levado o barco a bom porto. Ele é muito obediente. Há poucos como o Jaime, é um rapaz de boa catadura.

- Também acho que sim, mas são tempos difíceis os que aí vêm. Vai entrar numa idade do caraças. Tenho algum receio, mas cá estarei para o ajudar no que for preciso. E quem dá o pão, também dá a criação.

- Tens razão, pois. É preciso castigar com alguma coisa. É preciso rédea um bocado curta. Mas ele é um bom moço.

Jaime subia, entretanto, as escadas de acesso ao primeiro piso e trazia a picheira cheia de vinho. Era vinho já da nova colheita, e, embora não fosse muito forte, era um bom pingato. Aliás, apesar de Penacova ficar encostada entre duas boas regiões vinícolas (o Dão e a Bairrada), não era frequente haver produção de vinhos excelentes, à exceçao de isso acontecer numa ou noutra terra mais propícia. Quando Daniel decidia fazer a chanfana, costumava comprar um vinho carrascão e graduado, de baga, na Bairrada. De resto, tinham tudo que era preciso: a carne de chiba, o azeite, o sal e o colorau, o louro, a cebola, o alho e o pimentão doce.

Depois era só aquecer o forno a lenha e deixar que a chanfana se cozesse lentamente. E nunca acrescentar vinho cru às caçoilas de barro preto, sem lhe dar tempo para cozinhar várias horas, pois a chanfana não deveria saber a ele. Seria desagradável. A carne assada teria que estar bem apurada. É assim que ela sabe melhor.

Os dois homens ouviram os passos do rapaz a chegar com o vinho.

- Então, Jaime, essa pomada chega cá, ou não?

- Já vai, avô, já vai aqui.

- Ora cá está o meu palheto. Não está muito forte este ano, mas está saboroso. A tua avó vai demorar? É que nós temos de ir para o Chão do Caneiro acabar o trabalho. Amanhã vais benzer o ramo à vila com a tua avó.

Jaime gostava do tempo da Páscoa, ainda mais que do Natal. O tempo também estava alegre, por agora.

Entretanto, havia chegado a avó com uma trouxa de roupa à cabeça.

-Vocês tem de ir embora, meninos. Hoje está um dia bonito, soalheiro. Eu tenho de ir lavar esta roupa ao rio. "Na semana de Ramos lava os teus panos, que na da Paixão lavarás ou não".

- É isso mesmo prima Jacinta, temos de aproveitar enquanto está bom. O Natal foi seco, a Páscoa poderá ser molhada. "Natal ao sol, Páscoa ao carvão".

-Pois, isso é bem verdade, primo Joaquim.

- Vamos lá, vamos lá! Disse o marido já com alguma pressa.

- Até logo, vão lá com Deus.

- Até mais! " Deus não se pôs na cruz por um só". Vamos ao trabalho, Ele há-de ajudar-nos.


SEIS ANOS MAIS TARDE


Jaime crescera bastante, tinha agora 14 anos cheios de força. Já era um rapaz alto, mais alto até que o avô. E mudara um pouco, claro, os seus hábitos. Participava na equipa de futebol da terra e, aos sábados ou domingos, quando havia jogo, fazia tudo para estar presente junto dos seus companheiros de equipa. No entanto, continuava a prestar muito apoio e companhia aos avós. Tinha grande disponibilidade para o trabalho e apurara a habilidade que já todos lhe conheciam desde muito novo. E tinha consciência disso.

Mas, hoje, Jaime, tinha acordado mal disposto, tivera uma breve discussão com o avô e as coisas não lhe estavam a sair como esperava. O avô dera-lhe a notícia que tinham de ir para a fazenda concluir os últimos trabalhos das podas, para não ser como nos outros anos: deixar tudo para as últimas. Estávamos no fim-de-semana anterior ao fim-de-semana do Carnaval. Não era tarde, e o avô de Jaime queria resguardar-se, porque o primo Quim piorara das suas maleitas. Era agora uma amostra do homem dinâmico que já fora. A juntar a isso, afundava-se no vinho e na cachaça. Abusava bastante do consumo, o que se manifestava também no próprio aspeto físico. Surgia sempre com o rosto inchado e vermelhão como uma pichorra. Costumava dizer para o primo Daniel que era dos remédios que tomava para aliviar as dores.

E ele respondia-lhe que, com esses remédios, valia mais beber uns bons canecos de vinho. Aliás, Daniel também já descuidara, ele próprio, esse aspeto e entrara num consumo mais excessivo de álcool. Ambos levavam muito mais tempo para fazer as tarefas que antes era como se fosse quase uma brincadeira, para eles. De tal modo que, Jaime sentia grande orgulho por ser agora o mais rápido de todos. O avô até já o deixava atar a vinha completamente. O rapaz tinha mesmo muita força e sentia prazer em demonstrar isso mesmo junto dos idosos.

Na sexta-feira à tarde, Jaime sugeriu ao avô que o deixasse livre no dia seguinte para ir jogar à bola com os colegas. Mas Daniel não gostou da ideia.

- Ó avô, eu depois vou lá fazer o que ficar por fazer. Preciso de ir jogar à bola com os meus amigos.

- Por quê? São eles que te sustentam?

- Lá está você com as suas coisas. Sabe muito bem que já sou despachado e que fica tudo pronto.

- Não quero saber nada disso. Vais e vais mesmo. Sabes bem que preciso da tua ajuda para não sermos só nós dois. Dois velhos incapazes...

- Vá lá, avô. Deixe lá ir jogar à bola!

- Isso não é importante, o primo Quim também precisa de ser ajudado. Coitado do homem.

- Oh, estou farto de aturar o velho. É sempre a mesma coisa. Já não acho piada nenhuma ao que ele diz. E para mais, parece uma lesma.

- Vamos lá ver a educação. Agora é que vais mesmo... Acho que o homem te merece mais respeito.

Jaime sentiu que perdera o duelo com o avô e não valia a pena protestar. Ficou desiludido, mas lembrou-se que, se conseguisse ser rápido o suficiente, talvez o avô depois o deixasse sair mais cedo, e então, preferiu não protestar mais.

Mas nada correu como Jaime tinha planeado. O primo Quim até parecia estar a fazer de propósito para as coisas não andarem mais depressa. Logo ele que sabia que o tinha incentivado tanto a jogar futebol. E Jaime começou a ficar desapacientado. O rapaz andava numa roda viva, primeiro a juntar as podas da vinha e os paus velhos para fazer pequenos feixes, para usar mais tarde como combustível para aquecer o forno. No final, já tarde, faltava apenas atar a vinha, mas o Ti Quim e o avô não tinham despacho nenhum. O jornaleiro passou junto a Jaime e tentou meter conversa:

- Ó Jaime, já estás um mestre do ponto, rapaz!

- Você é que me saiu um bom ponto. - respondeu fria e bruscamente.

O Ti Quim não gostou da expressão de arrogância que percebeu na resposta de Jaime. Mas engoliu em seco e seguiu caminho. Ia tentar arrancar os tocos de umas videiras velhas que haviam secado.

Jaime compreendeu que o magoara. Porém, sentiu algum prazer momentâneo no modo como tinha tratado o homem. Estava revoltado por já não ir a tempo de jogar futebol nesse dia.

Continuou a trabalhar, mas agora com mais calma. Já tinha perdido a esperança. Porém, a revolta dentro dele tinha-se agravado.

Quando se aproximou do primo Quim e do que ele estava a fazer, este tentou uma nova abordagem:

- Ó Jaime, ainda sabes como é que se arranca um toco? - E respondeu à sua própria pergunta: - És cavalo dum lado e és cavalo do outro!

Repentinamente, o rapaz atirou com ar sarcástico:

- Ó Ti Quim, você é Quim venta!

O Ti Quim não achou piada à tirada e respondeu-lhe sem respeito: - Vai bardamerda!

- Só se for para si.

O jornaleiro perdeu as estribeiras e mandou um monumental tabefe na cara do moço.

Ao longe, o avô já se havia apercebido que algo não estava bem com o relacionamento dos dois, mas olhou e já só viu o neto a correr desenfreado pelo campo fora, em direção ao rio. Ainda lhe mandou um berro, mas não valeu de nada.

Daniel caminhou apressado para junto do primo. Quando chegou à sua beira verificou que não estava bem. Tinha a mão direita agarrada ao peito e abanava a cabeça visivelmente transtornado.

- Então, que se passou, Joaquim, que raio houve para aqui?

- O teu neto foi uma besta e tive que lhe espetar uma lamboirada, e agora saiu a correr por aí abaixo. - E acabou por contar tudo o que havia sucedido ao primo.

- Então, "ele é que deu com as ventas no sedeiro"...Deixa-o cá chegar, que a gente conversa... Mas que tens tu homem, dói-te alguma coisa?

- Aqui uma dor no peito.

- Vê lá isso. Queres ir para casa? É melhor ir embora! Eu vou contigo.

- E o teu neto? Estou tão arrependido...

- Eu desconfio o que ele há-de ter ido fazer. Se é para isto que conquistámos a liberdade!

- Não confundas as coisas. Ai! Eu também não devia ter dito o que disse.

- Descansa! Não penses mais nisso. Ele há-de cá chegar. Vai ter de te pedir desculpas, ai, isso vai!

- Por amor de Deus, não batas no moço. É a última coisa que te peço.

Durante o caminho, a dor de Joaquim foi-se agravando cada vez mais. Sentia já uma enorme falta de ar e perdeu os sentidos ao chegar a casa. Não mais acordou. O óbito foi declarado passado 4 horas, mas Jaime ainda não tinha aparecido.

A avó de Jaime andava numa inquietação, por todo o lado à procura do rapaz, enquanto o marido havia ficado por casa, martirizado pelo falecimento do primo e alerta para o caso de o neto chegar.

Ao longe, Jaime ouviu o sino da capela tocar à morte. Passara bastante tempo ali a ruminar na vida. Um mar de conflitos inundava a sua jovem cabeça. Ao mesmo tempo que tinha receio de voltar a casa, sentia agora uma terrível angústia, e o som lúgubre do sino agudizara ainda mais esse sentimento. Decidiu partir em direção à aldeia. Quando chegou junto ao chafariz, viu Manuel Silva, o matador, a beber água. Jaime passou e andou, mas o homem apercebendo-se do ruído de passos, inquiriu-o:

- Afinal, vais aí rapaz? Os teus avós andam numa aflição por tua causa. Vai para casa, perdido.

Jaime apressou o passo e começou a correr em direção a casa. O coração a pular. Da janela, a avó apercebeu-se da sua chegada, e precipitou-se para ele.

- Oh, meu filho, o que foste fazer, meu Deus.

- Então, avó não chore. Que se passa, por quem tocou o sino à morte?

- Foi o primo, meu filho, foi o primo Quim. Sentiu-se mal do coração.

- Oh, não! Eu não queria que isso acontecesse, meu Deus. Ai, o primo Quim!

- Anda cá para dentro. O teu avô está amargurado. Anda p'ra dentro, meu filho.

- Ó avó, o que vai ser de nós... ?

- Anda p'ra dentro. O teu avô não te faz mal. Eu já falei com ele.

Daniel tinha escutado a mulher, mais atencioso que nunca. Ele nunca fora muito de a ouvir, mas estava agora num estado completamente letárgico. A realidade tinha-o de rastos. Quando o neto chegou ao pé dele, estava com a cabeça encafuada e apoiada entre as palmas das mãos.

- Ó avô, quero pedir-lhe desculpa!

- A quem devias pedir desculpa já cá não está.

- Daniel, não digas isso ao rapaz. Sabes bem que ele não tem culpa.

- Ó avô, perdoe-me, por favor!

- Onde estiveste este tempo todo...? Não te lembraste de nós, que podíamos estar aflitos? Não estou em condições de falar contigo. Vai-te embora, vai descansar, que depois falamos.

Jaime saiu em direção ao quarto de dormir e a avó acompanhou-o.

- Anda cá. Não tens fome? Come broa com alguma coisa. Há azeitonas, marmelada, o que te apetecer. Eu não fiz comer nenhum para a ceia. Depois deita-te na cama. Eu tenho de ir ajudar a velar o primo Quim. Logo falo contigo, se estiveres acordado.

Jaime ficou no quarto. Deitado, começou a olhar o teto, pensando em tudo o que acontecera. A noite caiu como uma laje pesada. A mente do rapaz dava voltas e voltas e não saía do mesmo pensamento. O primo Quim tinha morrido e ele sentia-se culpado pela morte dele. Sentia a cabeça doer como se tivesse um peso enorme em cima dela. Mas, entretanto, foi pensando naquilo que aprendera com o primo Quim, na forma simples, leve e divertida que ele tinha de lhe explicar aquele mundo de gente um pouco estranha, que fizera com que o próprio mundo dele fosse também um pouco mais divertido. Ele que lhe dizia para ser sempre justo com as pessoas e que deveria encontrar uma forma de ser equilibrada, entre a maneira de ser daquelas pessoas, meio esquisitas, que costumava ver pela aldeia. Sorriu a olhar o escuro da noite e pediu-lhe desculpa, primeiro em silêncio, depois proferindo mesmo a frase de forma audível: - Desculpe, Ti Quim! Até sempre.

Tinham ajudado também as palavras da avó a apaziguar mais a mente do rapaz: "Sabes que o primo Quim gostava muito de ti. Era um camponês quase analfabeto, mas, à sua maneira, muito sabedor. Olha que ele nunca dizia uma asneira à tua frente. Tinha sempre muito cuidado.

Quando Jacinta chegou, perto da meia-noite, Jaime e Daniel já haviam adormecido, vencidos pelo cansaço. Foi primeiro ao quarto do neto e cobriu-o cuidadosamente, com a roupa da cama e com carinho, dando-lhe um beijo na face. Depois seguiu para junto de Daniel. O marido acordou quando ela se aproximou da cama.

- Então, mulher? Estava muita gente por lá? Acabei por dormitar um bocado. Amanhã vou cedo contigo.

- Não, não estava muita gente. Estava gente da terra, só, mais nada. Foi de repente, ainda pouca gente sabe.

O enterro foi no dia seguinte. Jaime acompanhou a avó nas cerimónias fúnebres e não saiu da sua companhia. Foi o dia mais difícil da sua curta vida.


21 DE MARÇO DE 2023


Jaime nunca conheceu verdadeiramente os pais. Nem os pais, nem os padrinhos. Havia-os perdido num fatídico acidente de carro, numa viagem de regresso do Santuário de Fátima, quando tinha apenas ano e meio. Pensava muitas vezes neles, mas era mera idealização da sua cabeça. Na verdade, só se lembra de ter visto duas fotos do casamento, e os avós tinham sempre evitado falar no assunto, que se tinha tornado quase um tabu.

Com 16 anos, começou a praticar karaté em Coimbra, incentivado por uma colega de trabalho que viria a tornar-se, primeiro, sua namorada, e depois, sua esposa, Flora, mãe dos seus 3 filhos. Nessa altura já o avô tinha também morrido, resistindo pouco mais de 2 anos à morte do primo Quim. A avó Jacinta foi o único verdadeiro apoio familiar que lhe restou, tendo vivido em casa do neto até falecer, em 2003, com 92 anos.

Jaime, jamais se esquecera das palavras do primo Quim : "Vês como os vimes são fortes mas maleáveis para não partir? Hás-de ser forte e flexível como o salgueiro." Aplicava muito frequentemente esta metáfora, durante as suas aulas como instrutor de artes marciais, a sua principal atividade profissional. No seu pomar, encostado à moradia onde vivia com a sua esposa, plantou um exemplar daquela árvore, também conhecida como vimeiro. Tratava dele e regava-o com bastante frequência. Era como se fosse todo o cuidado que queria ter dado ao primo Quim. Ali pelos meados do inverno podava-lhe os ramos todos e guardava sempre um feixe de vimes que metia dentro de água, para se manterem mais tempo flexíveis. E quando precisava de colocar um tutor numa árvore ou atar a ramada de kiwis, usava-os. Estava a preparar-se para plantar uma árvore no jardim japónico que mandara construir recentemente. A esposa, que era professora primária e praticante de ioga, oferecera-lhe um ácer anão, de cor bordô no dia de aniversário. Tanto ele como Flora adoravam a cultura oriental, especialmente, tudo o que tinha a ver com a nação nipónica. A preferência pelo jardim japónico estava relacionada com as tendências para as escolhas mais ecológicas, com muita poupança, recirculação e depuração de água e criação de um pequeno lago para desenvolvimento de um jardim mais vivo, com a presença de peixes e outros seres vivos aquáticos. No dia da árvore, Jaime gostava de plantar sempre alguma coisa, de preferência uma árvore ou arbusto. Era uma data com muito simbolismo para ele, por vários motivos. Para além de ser um motivo de comunhão com o mundo natural em que punha em prática o tanto que o avô Daniel e o amigo e primo Quim lhe haviam ensinado.

Flora aproximou-se lentamente de Jaime. Ele apercebeu-se do leve ruído da sua chegada, mas simulou estar distraído, sentindo as mãos macias da esposa a tapar-lhe os olhos.

- Que está a fazer o meu pão?

- Estava à espera da minha Flora.

Ela, calmamente, libertou-o do seu abraço meigo.

- Estive a olhar para ti a usar esses vimes do salgueiro. Posso falar disto também no meu trabalho sobre usos ecológicos, para mostrar aos meus alunos.

- Sim, tens razão.

- Ia pedir-te para me explicares como se faz. Há quanto tempo é usada esta planta? O que me souberes dizer, enfim...

- Não sei há quanto tempo, mas podemos investigar sobre isso. E doutros usos para além deste.

- Tem mais usos ainda?

- Sim. Cestaria, por exemplo. E com certeza não há memória disso.

Flora pegou no seu smartphone e ligou os dados móveis. Colocou a palavra vimeiro no motor de busca. Começou a ler um dos sites que lhe apareceu:

- Aqui diz que a planta tem vários nomes. Um deles é salgueiro-francês. O nome científico é Salix viminalis L. "A planta apresenta um ar dramático depois de podada"

- É uma planta "dramática", mesmo a condizer com a tua história.

- Tens razão, não podia ser mais a propósito. É uma planta que me traz tanta recordação.

Prefiro muito mais usar estes métodos para este fim, do que os atuais: fios de plástico, cordéis, etc, etc. É tão mais belo. É rústico, é verdade, mas, mesmo assim, consegue ser tão elegante.

Flora aquiesceu:

- Realmente, há coisas que são intemporais!

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NOTA DE AUTOR

O conto intitulado Forte e Flexível Como o Salgueiro é inspirado numa realidade rural de há cerca de seis ou sete décadas a esta parte. É um trabalho de ficção e as personagens são também fictícias. Qualquer semelhança com factos ocorridos é mera coincidência.

NOTA DO EDITOR 

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