31 março 2023

Roxo: Centenário da "Revolta do Azeite"

A associação ECOS (Encontros Culturais e Obras Sociais) levou a efeito, no passado sábado, um programa cultural que teve como objectivos recordar e honrar a coragem e a solidariedade dos habitantes desta localidade, afirmar o orgulho de pertencer a este povo que se sentiu injustiçado e reagiu, e igualmente homenagear aqueles que acabaram por ser mortalmente atingidos.

O evento incluiu Missa em memória das vítimas, exposição documental (fundamentalmente recortes de imprensa) conferência pelos historiadores Prof. Doutor Luís Reis Torgal, que fez um enquadramento social e político daqueles tempos, e Dra. Maria da Luz Rosa, que desenvolveu a evolução dos acontecimentos, recriação teatral pelo Rancho Folclórico Juventude do Roxo, sob a orientação de Sandra Henriques, do grupo de teatro Partículas Soltas, de Penacova, declamação de um poema de Luís Pais Amante, alusivo à “revolta”, inauguração de um mural (autoria de João Carpinteiro Santos) e lanche partilhado. 

“Não se tratou de uma revolta premeditada e organizada, mas de uma resposta solidária à prepotência e violência das forças da ordem. Com coragem e determinação, o povo uniu-se em defesa de dois filhos da mesma terra, contra uma lei injusta, saída do autoritarismo de governantes cegos à miséria que grassava por todo o país” – salientou Maria da Luz Rosa na sua intervenção, afirmando ainda: “É a este povo solidário e corajoso, trabalhador e humilde que eu tenho a enorme honra de pertencer. […] Que saibamos continuar a dignificar as nossas raízes e a nossa terra, vivendo aqui ou em qualquer parte do país ou do mundo”.

Transcrevemos, de seguida, a intervenção da Dr.a Maria da Luz Rosa:

              

                                             Por causa de um cântaro de azeite…

25 de março de 1921, faz hoje 102 anos. Era um dia duplamente santo, sexta feira santa e dia de Nossa Senhora da Anunciação, assinalado por aqui com a devoção das 100 Avé Marias.

A laboriosa população do Roxo, fiel cumpridora dos preceitos católicos, fazia uma pausa no trabalho para celebrar o dia santo de guarda.

Pela manhã, a jovem Alexandrina de Jesus Duarte, a pedido do seu irmão José Duarte, trabalhador como tantos outros da aldeia numa das quintas de Coimbra, saiu de casa com um cântaro de azeite à cabeça com destino àquela cidade.

Ainda no caminho do Roxo para a Carapinheira, foi mandada parar por uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, que vigiava esta zona de fronteira entre o concelho de Penacova e o concelho de Coimbra.

Alexandrina fugiu, regressou à aldeia, pousou o cântaro no cimo das suas escadas, no exterior, e correu a casa do namorado, Bernardo Maia, a pedir auxílio. Este, no vigor da sua juventude, movido pelos sentimentos de obrigação de defesa da sua amada e de revolta pela possibilidade de perder tão precioso produto, dirigiu-se com a rapariga para o local onde tinha ficado o cântaro.

Aí chegados, confrontaram-se com os agentes da GNR, que facilmente tinham reconhecido o cântaro e reclamavam a apreensão do produto e a prisão da rapariga.

Era proibido transacionar azeite de um concelho para outro sem guias, Alexandrina sabia-o e por isso fugiu. Bernardo Maia resistiu à intenção dos elementos da guarda, a discussão começou e o jovem apelou à ajuda da população em defesa da namorada.

Não sendo dia de trabalho e estando a maioria da população em casa, numa aldeia pequena, facilmente se ouviram os tumultos. As pessoas juntaram-se e agiram em solidariedade com o casal. Sentiam, tal como os dois namorados, a injustiça de tirar a gente pobre e trabalhadora um dos poucos produtos que lhes podiam dar algum rendimento, para suportar as despesas do que era necessário e a terra não dava.

Nestas circunstâncias, a GNR retirou-se e regressou a Penacova.

Ainda no mesmo dia uma nova patrulha chegou à aldeia, agora mais reforçada, com “cinco praças e um cabo”, conforme refere a Gazeta de Coimbra de 29 de março de 1921.

Alguns habitantes em alerta rapidamente se juntaram na Eira do Barreiro, onde alguém de entre os populares decidiu tocar o sino a rebate. A aglomeração aumentou e as provocações também. Perante a concentração de pessoas e a incapacidade de impor a ordem, na ausência da colaboração da GNR de Poiares a quem tinham pedido ajuda, também estes militares da GNR de Penacova se retiraram.

Pouco depois, ainda com a população concentrada no largo, chegou o contingente da GNR de Poiares, vindo de outra direção. Mais violentos, mais hostis, disseram ter sido atingidos por paus e pedras e responderam a essa agressão com a força desproporcional das armas de fogo.

Assassinaram Alípio Rodrigues Russo e José Luís da Fonte, deixando-os estendidos no chão1. Este último trespassado por uma bala que, segundo Francisco da Fonseca, num registo sobre os acontecimentos feito em 27 de junho de 1921, ia dirigida a Bernardo Maia.

O namorado da Alexandrina já tinha cumprido serviço militar, era conhecedor de técnicas de combate e, segundo relatos dos contemporâneos, entre ziguezagues e rebolões pela Eira do Barreiro abaixo, conseguiu escapar às balas das autoridades.

Ao contrário, José Luís da Fonte, conhecido como José Carretas, que andava a tirar estrume aos animais e veio à rua ver os tumultos, não tendo ouvido a ordem de recolha obrigatória, por ser muito surdo, foi atingido mortalmente.

A terceira vítima mortal dos confrontos foi António Miguel, que, tendo sido ferido gravemente num braço, foi levado para o Hospital da Universidade, onde, apesar da amputação do braço ferido, viria a morrer em consequência dos graves ferimentos. António Miguel tinha 27 anos.

A notícia foi publicada no jornal Primeiro de Janeiro de 6 de abril de 1921, num resumo de notícias de Coimbra referentes a 2 de abril, mas também o Jornal de Penacova lhe fez referência.

A crueldade, impiedade e desumanidade das forças da ordem foi ao ponto de não permitirem que os familiares das vítimas lhes prestassem homenagem. Os corpos caídos no chão foram recolhidos pelas autoridades e levados para Penacova, onde foram sepultados no cemitério local.

Para além dos mortos, resultaram destes confrontos também vários populares feridos.

No dia seguinte a povoação foi cercada e invadida por um aterrorizador grupo de militares. Segundo o Jornal de Penacova de 02 de abril de 1921, eram “60 praças de infantaria da G.R. com as praças de Penacova e Poiares, e 40 praças de cavalaria” que revolveram tudo o que julgavam poder ser usado para esconderijo: casas de habitação, palheiros, currais de animais, cômoros ou até poços. O Roxo foi completamente varrido. Atos como furar montes de palha nos palheiros com forquilhas ou varas, na esperança de neles detetarem pessoas escondidas, ou cavalos que galopavam em estradas e carreiros, saltavam cômoros ou atropelavam pessoas, ficaram gravados na mente dos contemporâneos para o resto das suas vidas e perduraram na memória coletiva passando de geração em geração.

Desta autêntica caça ao homem resultaram dezenas de presos, 35 segundo a Gazeta de Coimbra ou 55 segundo o Jornal de Penacova, que foram conduzidos sob o comando de uma força de cavalaria para Coimbra. Foram para a inspeção da polícia, como refere o primeiro jornal, ou para o Governo Civil, segundo o jornal do concelho. No dia 29 de março ainda alguns dos detidos estavam a ser interrogados em Coimbra. Os outros já tinham regressado em liberdade, alguns dos quais, segundo a tradição oral, ainda durante o caminho de ida do Roxo a Coimbra.

Aqueles que puderam, se tinham familiares a morar fora da terra, trataram de se por a salvo e sair da aldeia. Isso aconteceu particularmente com as crianças. O meu avô paterno, na altura com 12 anos, fugiu com os irmãos para a Assafarge, para casa da madrinha da irmã Ermelinda. Por lá ficaram várias semanas, sem coragem de regressar à aldeia e os familiares sem tranquilidade para os ir buscar.

Foi a ele que ouvi os primeiros relatos destes acontecimentos, repetidos várias vezes já com a idade mais avançada, às vezes com as lágrimas nos olhos, e sempre com uma recomendação: “-Mas isto não se conta, filha”. Do outro lado da minha família o sofrimento não foi menor. A minha mãe conta que quando ia a Penacova com a minha avó não regressavam sem ir junto ao cemitério local fazer uma oração por alma do, respetivamente, avô e sogro. Diz que a mãe lhe dizia: “- Ó filha, vamos ali rezar um Pai Nosso por alma do avozinho que está ali sepultado”. Mas ficavam sempre do lado de fora do cemitério, porque temiam ser associadas ao familiar que aí jazia e motivar alguma espécie de crítica ou provocação. Tal o terror que ficou gravado na alma da nossa gente.


Segundo documentação interna da Guarda Nacional Republicana, de 10 de setembro de 1921, constante no Arquivo Histórico da GNR, dois dos militares de Poiares que atuaram no Roxo foram agraciados com louvores. O soldado António Correia Ralha foi louvado pelos seus atos de “energia, decisão e coragem (…) atingindo os agressores com tiros certeiros”. Cada um dos militares foi ainda recompensado pela instituição com 10 dias de licença.

Como é evidente, não houve cobertura jornalística dos acontecimentos do Roxo, a versão que passou para os meios de comunicação da época foi a versão que a GNR veiculou. Ninguém veio ouvir a população da aldeia para fazer uma leitura mais completa do sucedido.

Com base na versão das autoridades foi-se criando nessas primeiras décadas uma ideia muito negativa sobre os habitantes do Roxo.

Em 1 maio de 1921, o jornal O Progresso Lorvanense, numa notícia sobre acontecimentos ocorridos numa feira na Aveleira, iniciou o texto dizendo: “Casos há que bem revelam o atraso, cegueira ou malvadez de um povo. Pouco mais de um mês terá decorrido desde que se deram os lamentáveis acontecimentos no Roxo, e dos quais resultou ficarem sem vida três infelizes que nem sequer tiveram sepultura na sua freguesia natal, e já no dia 21 na feira da Aveleira se iam repetindo factos semelhantes. Parece que aquele povo, a respeito de civilização, anda com atrazo de duzentos, trezentos, quatrocentos ou mais anos”.

É este o início da notícia, ao continuar a leitura da mesma constata-se que não envolve nenhum habitante do Roxo, apenas envolve pessoas da Aveleira e de Lorvão, mas a referência aos acontecimentos da nossa aldeia estava lá.

Destaca-se dos vários meios de comunicação que publicaram a notícia o jornal O Despertar, este foi o único, dos meios de comunicação que li, a procurar entender e retratar os dois lados do conflito. Fê-lo na edição do dia 30 de março de 1921, onde refere:

“Os lamentáveis acontecimentos (…) do Roxo, povoação pacata e graciosa (…) dos quais resultou caírem varados pelas balas da força publica dois filhos do povo, teem sido desfavoravelmente comentados, não se encontrando rasão que justifique esses excessos, tão deshumanos como improprios dos nossos dias”. E acrescenta: “(…) desejamos que a corporação da Guarda Nacional Republicana viva mais da força do seu prestigio do que do prestigio da sua força (…) a sua missão, longe de provocar o odio das populações, antes se deve conduzir de forma a conquistar a simpatia pública (…)”. Termina esta notícia defendendo que “ (…) no caso de agora, a Guarda Nacional Republicana excedeu-se deshumanamente, tingindo de sangue e luto um lugarejo, cuja população apenas se exaltou diante duns míseros quartilhos de azeite. Não defendemos, é certo, esse povo pela atitude. Mas devemos-nos todos lembrar que a fome é inimiga das melhores virtudes (…) ao povo não se devem dar balas nem patas de cavalos quando, ele apenas pede pão!”.

Não queremos refazer a História, queremos completá-la. Os vários meios de comunicação que noticiaram os acontecimentos de 1921 no Roxo, embora com algumas contradições, tiveram todos a mesma fonte, a à época jovem GNR que precisava de afirmar a sua autoridade e legitimar a sua atuação.

Para além das contradições, há também mentiras, como aquela noticiada no jornal Primeiro de Janeiro de 27 de março de 1921. Diz que “Os sinos tocaram a rebate reunindo pessoas de várias povoações limítrofes”, referindo-se às aldeias de Dianteiro, Carapinheira e Aveleira, às quais a publicação do Jornal de Penacova afirmava ter sido pedida ajuda. As várias pessoas a quem ouvi o relato dos acontecimentos nunca fizeram referência a qualquer ajuda externa. Questionei recentemente alguns dos habitantes mais idosos e todos eles me disseram que nunca ouviram falar de ajuda de outras aldeias. De facto, dada a imprevisibilidade dos acontecimentos e a inexistência de meios de comunicação como os que hoje temos, não seria possível organizar a ajuda de pessoas externas à aldeia.

Contra paus e pedras com que um agente (segundo o Jornal de Penacova) ou três (segundo a Gazeta de Coimbra) foram agredidos, responderam com balas mortais que deixaram sem vida três filhos da terra. A crueldade chegou ao ponto de fazerem as famílias calar a dor da perda dos seus entes queridos, não permitindo sequer que velassem os corpos ou que estes fossem sepultados junto dos antepassados. Felizmente, sabemos que hoje os valores da GNR são outros e uma situação como a ocorrida no Roxo em 25 de março de 1921 seria completamente intolerável.

Não se tratou de uma revolta premeditada e organizada, mas de uma resposta solidária à prepotência e violência das forças da ordem. Com coragem e determinação, o povo uniu-se em defesa de dois filhos da mesma terra, contra uma lei injusta, saída do autoritarismo de governantes cegos à miséria que grassava por todo o país.

É a este povo solidário e corajoso, trabalhador e humilde que eu tenho a enorme honra de pertencer.

O Roxo não é só lindo pela beleza das suas paisagens, é também lindo pela beleza dos valores das suas gentes.

Somos solidários entre nós, acolhemos bem quem escolhe a aldeia para viver e somos solidários para com outros que fora daqui atravessam momentos difíceis, como aconteceu recentemente com a gigantesca e impressionante onda de solidariedade para com Pedrógão e Arganil.

Que saibamos continuar a dignificar as nossas raízes e a nossa terra, vivendo aqui ou em qualquer parte do país ou do mundo.

Nota: Agradeço ao Eduardo Ferreira e ao Manuel Jesus as pesquisas que efetuaram e os documentos que reuniram e partilharam comigo.
__________

1. N.R.: Seriam cinco da tarde. Alípio Matias (na imprensa da época identificado como Alípio Rodrigues Russo) e José Luís da Fonte, ambos casados, de 42 e 65 anos, respectivamente. Os corpos das vítimas foram levados pela Guarda para Penacova e sepultados no cemitério da Eirinha, de acordo com o Registo de Óbito da Conservatória de Penacova que, laconicamente, apenas refere: “Ignora-se quaisquer outros esclarecimentos”.

GALERIA FOTOGRÁFICA 















































23 março 2023

Lugares, monumentos e sítios de Penacova (13): Capela de S. João

Capela de S. João, 2023

A capela de S. João, na vila de Penacova, datada de finais do século XVI, integra-se no tipo de arquitectura Maneirista / Barroca.

Com uma planta longitudinal simples, apresenta telhado de duas águas, nave, capela-mor e alpendre.

O alpendre tem 3 arcos, tendo o do lado da estrada sido aberto aquando da abertura do arruamento contíguo ;

O espaço interior tem cobertura de madeira, sendo iluminado por quatro frestas, duas nas paredes laterais e duas na frontaria. Umas apresentam molduras barrocas da segunda metade do séc. XVIII e outras são de remate contracurvado.

A fachada principal, que está voltada a Sul, pode ser descrita como “de pano único entre cunhais apilastrados e empena triangular, rasgada ao centro por um arco de volta inteira.”

A porta de entrada é rectangular. A verga tem a inscrição “S. SEBASTIANVS / 1581”, depreendendo-se que originariamente era dedicada àquele Santo, cuja imagem, em pedra, marca presença no retábulo maneirista, também daquela rocha.

O retábulo que tem dois nichos entre três pilastras e as imagens de São Sebastião, como referimos, e também em pedra, a de São João Baptista, em tamanho maior que a do outro Santo.
_______
Fontes: 
Inventário Artístico de Portugal
Direção-Geral do Património Cultural









04 março 2023

Município marcou presença na BTL: apresentado novo vídeo promocional



O Município de Penacova estreou na BTL (Bolsa de Turismo de Lisboa) um novo vídeo promocional, ao mesmo tempo que apresentou os eventos para 2023 e o projeto do  Hotel em Lorvão (hotel de cinco estrelas que está previsto “nascer” no Mosteiro de Lorvão, monumento nacional que vai ser transformado em unidade hoteleira de luxo através de um investimento privado de 11 milhões de euros.

A apresentação teve lugar no stand da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC), na Feira Internacional de Lisboa (FIL) e foi replicada, na parte da tarde, no stand do Turismo Centro Portugal. A Casa do Concelho de Penacova recebeu a comitiva do Município de Penacova para assistir à mesma apresentação. Durante as apresentações, a pastelaria "O Mosteiro", de Lorvão, e a "Rota da Bairrada" farão, respetivamente, uma degustação de doces conventuais e de vinhos.

ver Fonte

 

27 fevereiro 2023

Personalidades (2): Abel Rodrigues da Costa


Abel Rodrigues da Costa nasceu em Penacova no dia 20 de Agosto de 1902. Neto paterno de Bento da Costa e Maria Carolina e materno de Luís Rodrigues Perpéctuo e Ana de Jesus. Os pais, Libório da Costa, barqueiro, e Maria Cândida, doméstica, eram naturais e residentes  na vila.  

Emigrou para o Brasil quando tinha 21 anos, onde já se encontravam dois irmãos. No Rio de Janeiro destacou-se como empresário da indústria de carnes verdes, celebrizando-se com a marca “O Porco que Ri”. A firma “Abel Rodrigues da Costa & Cª Lda” era proprietária do “Açougue Universal” e das filiais “Grande Açougue da Lapa” e “Salsicharia Olímpica”.

Além da actividade empresarial, foi presidente da Casa das Beiras e Beneficência Portuguesa e membro das direcções  do Ginásio Clube Português e do Clube Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

Abel Rodrigues da Costa foi condecorado em 1953 pelo Estado Português com a distinção de “Cavaleiro da Ordem de Benemerência”.

Visitava a sua terra natal com bastante frequência, contribuindo com avultadas verbas para a concretização de muitas obras públicas, apoio a instituições e donativos regulares a pessoas carenciadas. A ele muito ficaram a dever a Câmara Municipal, os Bombeiros, a Misericórdia (principalmente  o Hospital), a Filarmónica, a Igreja e as Capelas.

Em 1947, o Comendador Abel Rodrigues da Costa ofereceu à Câmara 30 000$00 para o ajardinamento do Terreiro e, mais tarde, 500 contos para apoio construção de parque de estacionamento entre a Pensão Avenida e a Capela de S. João.

Em 1946, a 15 de Agosto, aquando da sua primeira visita depois de ter emigrado, foi homenageado no Salão Nobre dos Paços do Concelho. 

Na segunda metade da década de cinquenta do século passado, foi atribuído o nome da Abel Rodrigues da Costa à artéria que liga a capela de S. João à Igreja Matriz. Também nesta altura, mais do que a placa toponímica, se entendeu que seria de toda a justiça a edificação de um busto em local central da vila. Proposta  que nunca chegou a ver a luz do dia.

Em 1951, no contexto do Cortejo de Oferendas para o Hospital da Misericórdia, coordenou no Brasil uma subscrição que rendeu 70 000$00, uma verba bastante significativa para a época.

Visitou novamente Penacova em 1952. Recebido entusiástica e solenemente em 7 de Junho foi homenageado, na hora de voltar ao Brasil, com um Jantar de Despedida que teve lugar na Pensão Avenida. 

Em 1956 veio a Penacova e voltaria em 1969  mais uma vez à sua terra natal oferecendo 5000$00 à Misericórdia e dinheiro para ser distribuído pelo Natal a pessoas necessitadas. Aos Bombeiros ofereceu o seu automóvel para ser sorteado em favor da Corporação. Deixou ainda  200 contos para a estrada no interior da Cheira e 1000$00 para o Notícias de Penacova. 

No dia do 80º aniversário, em 1982, Abel Rodrigues da Costa encontrava-se em Penacova. A Câmara, presidida pelo Dr. Joaquim Leitão Couto, prestou-lhe uma homenagem, visitando-o na sua residência e manifestando-lhe o reconhecimento concelhio pelo apoio ao Hospital da Misericórdia, ao embelezamento do Mirante, aos Bombeiros e a muitos penacovenses com dificuldades económicas. 

A ele se deveu também a compra de todo o equipamento para a sala de operações do Hospital (1951), o apoio ao Asilo de Figueira de Lorvão e a abertura da avenida de acesso ao Mirante (1951)  e, mais tarde, o financiamento da construção da estrada para o Penedo do Castro (1973). 

Quando já era viúvo de Vita Soares Perpéctuo, o Comendador e Grande Benemérito de Penacova, Abel Rodrigues da Costa, faleceu no Rio de Janeiro em 5 de Novembro de 1990, 

11 fevereiro 2023

Personalidades (1): Manuel de Oliveira Cabral

 


Nasceu na Covilhã a 15 de Setembro de 1890 e morreu em S. Martinho do Porto em 30 de Outubro de 1974, terra onde casara, em 1916, com Estefânia Cabreira. 

Na capital do norte, onde viveu muitos anos, dirigiu o suplemento infantil de “O Comércio do Porto”. O nomes Estefânia Cabreira e Oliveira Cabral ficaram impressos na capa de muitas obras de carácter didáctico, em especial manuais escolares e colectâneas de música e poesia para crianças. Quem frequentou a escola primária nos anos trinta terá muito provavelmente estudado pelo “ Bom Amigo” e pelo “ Cantinho Florido”, livros de leitura para a 1ª e 4ª classes, respectivamente.


Professor, escritor e pedagogo muito conhecido na sua época, Oliveira Cabral também deixou marcas indeléveis em Penacova. A “esta aprazível estância de repouso” como escreveu um dia, veio passar, nas décadas de 40/50 muitas das suas férias. Ainda hoje este casal é recordado por algumas pessoas, especialmente pelos saraus culturais que promoviam. Além disso, Oliveira Cabral foi um dos grandes impulsionadores do grupo “ Os Amigos de Penacova” que viria a dar origem à Sociedade de Propaganda e Progresso de Penacova. Também nos jornais da região, Notícias de Penacova e Correio de Coimbra, ficaram muitos dos seus escritos. Ainda no Natal de 1960 - e cremos que terá sido das últimas colaborações no Notícias de Penacova – podemos ler uma poesia sua, ilustrada por Guida Ottolini, neta de Roque Gameiro. No “Notícias de Penacova” de 30 de Agosto de 1952, escrevia, sob o título “ Parabéns bom povo de Penacova”, felicitando os penacovenses, na pessoa do presidente da Câmara, Francisco Martins, pela criação de uma Biblioteca Popular, à qual prometia oferecer algumas obras, sugerindo a criação de uma secção infantil. Neste artigo, Oliveira Cabral levanta a questão duma presumível doação testamentária de livros à Câmara de Penacova por parte de Emídio da Silva, facto de que pouco se sabia.

Também no mesmo ano e no mesmo periódico, Manuel do Freixo, pseudónimo de Manuel Vieira dos Santos, escreve sobre Oliveira Cabral, rendendo-lhe homenagem e manifestando o seu agradecimento pela acção que desenvolvera em prol de Penacova. Conta o Arcipreste Manuel dos Santos que fora aquando da primeira homenagem a Abel Rodrigues da Costa que Oliveira Cabral lhe prendera a atenção, ao propor a atribuição do nome daquele benemérito a uma artéria da vila, o que acabou por acontecer, como sabemos. Neste artigo a que estamos a fazer referência, Manuel do Freixo, não esquece a fundação de “ Os Amigos de Penacova” e o seu esforço por “ orientar Penacova no sentido turístico “, salientando nesse aspecto, a publicação duma “ pagela artística” intitulada “ Algumas Palavras sobre Penacova”. Para o articulista, esta iniciativa onde revela o quanto aquele “aprecia, admira e estima tudo o que diz respeito à alcandorada vilazinha de sua predilecção”.

O folheto abre com uma vista geral de Penacova, tirada a partir da zona do Penedo do Castro, aparecendo depois uma gravura sobre o quadro de Eugénio Moreira “ A Ferreirinha ou a Gioconda de Penacova” – que hoje podemos apreciar no Museu Soares dos Reis – enquadrada por um texto do escritor Antero de Figueiredo nas suas “Jornadas em Portugal”. Da “pagela” faz parte também o conhecido cartaz com o slogan “ Penacova - Zona de Turismo - A 25 Km de Coimbra”. É também aqui que Oliveira Cabral publica as quadras “Penacova,a Linda”, inspiradas num trecho de um livro de Raul Proença.

Em Outubro de 1950, Oliveira Cabral publica no Notícias de Penacova uma Carta Aberta ao Presidente da Câmara, onde faz questão de esclarecer que “ não é natural de Penacova, não tem interesses na vila ou na região” e que, por isso “ fala desapaixonadamente”. Começa por louvar a iniciativa da Câmara ao editar cartazes de promoção turística, dos quais teve conhecimento no café Guarani, na cidade do Porto e os quais lhe suscitaram alguns reparos sobre o Turismo em Penacova. “ O turismo quer alegria para os olhos e higiene para a saúde” – escreve a dado momento. Assim, vem alertar para “ o estado lastimoso em que se encontra a muralha de suporte em frente da Pensão Avenida” – onde geralmente se hospedava - e para a poeira que os carros levantam quando atravessam a vila. Depois de sugerir o asfaltamento da estrada até à Casa do Repouso, conclui com alguma ironia dizendo que o cartaz “ pode levar algumas pessoas ao engano, mas…só uma vez!”.

Oliveira Cabral, uma figura interventiva em Penacova, que não sendo penacovense, tal como Emídio da Silva, Simões de Castro, Vitorino Nemésio e alguns mais, procurou ser um embaixador desta terra cheia de potencialidades turísticas. 

Escreveu, em 1947, referindo-se a Penacova, a profª Eduarda Silva, que com ele conviveu enquanto jovem:

Sem uma alma cheia de poesia 
Que te cantasse em versos sem rival 
Tua beleza decerto esquecia 
Quem acha belo o nosso Portugal 

E entre tantos que tem cantado 
a tua formosura sem igual  
Um nome com carinho tens guardado 
Porque te ama – Oliveira Cabral

David Almeida
publicado no jornal Nova Esperança, Jan 2011

23 janeiro 2023

Lugares, monumentos e sítios de Penacova (12): Capela de Santo António


A capela de Santo António situa-se a Sul da vila, implantada em terreno de acentuada inclinação, envolvido por amplo adro, parcialmente cercado por baixo muro, com um coreto octogonal em alvenaria de onde se podem apreciar excelentes panorâmicas sobre o Mondego.

Trata-se de uma construção do séc. XVII (com planta longitudinal, simples, com coberturas diferenciadas) enquadrável no tipo de arquitectura maneirista vernácula, apesar de ter sofrido algumas modificações. Fachada principal com alpendre com seis colunas toscanas (quatro na frente e uma a meio de cada lado) em cantaria e pavimento com seixos. 

 No chão da capela-mor existe uma campa, com evidentes sinais de desgaste, tendo uma faixa envolvente decorada e brasão sumido. Apresenta os seguintes dizeres:

 ESTA SEPVLTURA HE DE / MANOEL.DE PAIVA.NATV / RAL.DE COINBRA.../ FES QVATRO.FILHOS BO(NS) / LETERADOS E (HV(M) DELES. (F)OI / IOÃO.DE PAIVA PRIOR DESTA / IGREIA.LHE.MANDOV.FAZER /ESTA SEPVLTVRA.FALECEO / A 21.DE DEZEMBRO.DE.1621. 

 O retábulo secundário é dos sécs. XVII/XVIII, com esculturas de Santo António e S. Francisco, do mesmo período. O púlpito é cilíndrico e, numa mísula, vê-se um Anjo da Anunciação, de pedra, do séc. XVI, manuelino; numa outra, uma Virgem de madeira, dos XVII/XVIII. 

A capela é detentora de um cálice de prata sem ornatos, onde, no listel de base, se lê: “ESTE CALIX HE DA IRMANDADE DE SANTO ANTONIO FOI FEITO ERA D. 1664 a.” 

 Fontes: "Inventário Artístico de Portugal", vol IV, 1953 e Plano Director Municipal



19 janeiro 2023

"Basta que os penacovenses tenham a iniciativa dos suissos”




A longa teoria de estrangeiros que todos os anos percorre sistematicamente a Suissa, sob as tirânicas imposições dos Baedecker (1), dos Kook, e de outros Dracons das vilegiaturas (2), a par de excursões extremamente pitorescas, sofrem a desilusão de muitas ascensões e caminhadas que não valem o tempo que perderam.

Pode-se dizer que não há na Suissa um recanto de vale, uma dobra de terreno, um píncaro de monte que não seja visitado por milhares de forasteiros que, mal chega o verão, invadem por todos os lados este afortunado país e por ele se espalham numa ânsia de subir às suas montanhas, ou de bordejar nos seus lagos pelo simples prazer da vista, pela necessidade de fortalecer os pulmões ou de acalmar os nervos.

Mas em cada cantinho de vale, em cada socalco de terreno, assim como nos vértices das montanhas, esse vai-vem formidável de estrangeiros encontra sempre uma pousada, um albergue, uma hospedaria confortável, quando não depara com um desses grandiosos edifícios, que abundam na Suissa, tanto á beira dos lagos como nas regiões alpinas e que, sob os nomes de Palace Hotel, Grand Hotel, Kurhauss Hotel, proporcionam aos seus hóspedes, além de bom alojamento e boa comida, os atractivos dos seus hall sumptuosos e dos seus salões de festas onde se realizam bailes, concertos e soirées dramáticas que em alguns desses hotéis chegam a dar a ilusão de festas particulares elegantíssimas.

A Suissa, que explora como nenhum outro país a indústria das viagens entendeu que, antes do caminho de ferro, do funiculare até da própria estrada, quando se não podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, é mister começar por construir o hotel…

Quantos hotéis teve e tem ainda a Suissa que apenas são acessíveis por estradas e até por simples caminhos, enquanto a tracção mecânica não pode ser estabelecida em condições económicas de provável êxito?…

O hotel, principalmente o bom, é muitas vezes a única razão de ser de algumas vilegiaturas suissas que tanto andam na voga!…

Porque em Portugal as hospedarias são na maioria más, as camas duras e o asseio escasso, e muitas vezes nem boas nem más existem, o estrangeiro, em geral, limita a Lisboa e seus arredores, as poucas viagens que faz ao nosso país, que, mesmo dos próprios portugueses, não é inteiramente conhecido.

Há distritos e até províncias onde, à excepção do viajante do comércio e dos funcionários civis ou militares que viajam por obrigação, raríssimos são os viajantes de recreio que se têm aventurado a ir até lá!

O próprio Minho, que é a província mais percorrida nas viagens de prazer, tem tanta aldeia formosa e mesmo vilas das mais pitorescas, que nós não conhecemos!...

Nestas condições ainda há poucos anos se encontrava uma das regiões mais encantadoras do distrito de Coimbra, a qual nem mesmo com as estradas do reino estava sequer ligada !

Referimo-nos à região de Penacova-Lorvão, nos contrafortes da Serra do Bussaco e na margem direita do Mondego.

O desleixo dos governos e as frequentes alternativas da política não permitiram ainda até hoje que fosse concluída a estrada do Bussaco a Penacova, nem tão pouco a que liga esta vila com Lorvão, que continua acessível apenas por uma íngreme e tortuosa ladeira!

Mas já se pode ir a Penacova por Coimbra e a estrada que lá nos conduz levará ali todos os estrangeiros que visitem Portugal, quando esta região estiver nas condições de os hospedar. Esta estrada por si só vale a viagem, quando o panorama que se goza em Penacova, do Penedo do Castro ou do Mirante Emygdio da Silva não sejam dos mais deslumbrantes que é dado contemplar aos que percorrem o mundo na demanda do pitoresco e do belo surpreendente !

A estrada de Coimbra a Penacova segue a margem direita do Mondego, cingindo- se tanto quanto possível ás ondulações da encosta e à linha caprichosa do talweg desse rio que percorre uma das regiões mais pitorescas e variadas, ora espraiando-se por campos feracissimos através de hortas e laranjais, ora apertado entre aprumados alcantis onde a vegetação nem sempre consegue ocultar os maciços de rocha que se destacam majestosos daquela paisagem luxuriante.

Essa estrada, que nem mesmo uma fita cinematográfica seria capaz de reproduzir, é com efeito um dos mais belos trechos do Portugal pitoresco e não conhecemos muitas que sob este aspecto se lhe avantagem na Europa dos touristes.

E’ no meio deste cenário deslumbrante e cheio de contrastes flagrantes, que surge a vila de Penacova, debruçada sobre o Mondego, que domina de grande altura, abrangendo por isso um vasto panorama em que os olhos se perdem extasiados num horizonte longínquo que serve de esfumada moldura a uma imensa paisagem, ora retalhada de pinhais ou sobrepujada de penedias que dão ao quadro uma tonalidade grave e austera, ora entrecortada de pomares, de vinhas e de milheirais, numa harmonia quase geométrica que é felizmente quebrada aqui e acolá, perto ou longe, inúmeras vezes, pela casaria branca das vilas, das aldeias e dos lugarejos que põe manchas alegres e dá vida e animação a esta grandiosa tela do maior e mais divino dos mestres - a Natureza! E através de todo esse tranquilo e ridente quadro descobre-se sempre o curso do poético Mondego, que ora veste o coturno trágico ao passar Entre Penedos, ora desliza na amenidade da paisagem coimbrã espraiando-se pelos campos a jusante de Penacova.

Uma vez ligada a Lorvão e ao Bussaco pelas estradas que estão em adiantada construção, Penacova fica ocupando o vértice de um triângulo de vilegiatura que há-de constituir um percurso de turismo obrigatório, dependendo apenas da edificação de um hotel simples e moderno a fixação dessas colónias ambulantes. . .

Não faltam para isso atractivos à linda vila, e não é de certo o menor deles a visita ao histórico mosteiro de Lorvão que fica a meia hora de distância, pelo ramal da estrada que está em construção.

Centro de numerosas excursões, como qualquer dos outros vértices do triângulo que tem por base Coimbra-Bussaco, a região penacovense pode ser um dia tão afamada como algumas estações da Suissa.

Basta para isso que os penacovenses tenham a iniciativa dos Suissos.

L. MANO


 _______________________

(1) Karl Baedeker (Essen, 3 de novembro de 1801 — Koblenz, 4 de outubro de 1859, notação contemporânea: Karl Bædeker) foi um editor alemão e fundador do mundialmente famoso e ainda hoje publicado Guia de Viagem Baedeker.

 (2) Temporada que se passa fora da zona de habitação habitual, a banhos, no campo ou viajando, para descansar dos trabalhos habituais.






20 dezembro 2022

Lugares, monumentos e sítios de Penacova (11): Quinta da Ribeira

Todo este local serve de enquadramento a uma quinta barroca, do séc. XVIII, de arquitetura civil, residencial e agrícola. “Possui uma integração na paisagem conseguida de forma harmoniosa. Adapta-se e desenvolve-se em socalcos formando terraços interligados, percorrendo a encosta e desfrutando de uma vista panorâmica sobre o vale" (PDM). Mais se acrescenta que este enquadramento rural, destacado, se encontra próximo de uma ribeira e é envolvido por vegetação arbórea.

Por sua vez, Cecília Matias (2001), do IGESPAR, afirma que se trata de uma “casa unifamiliar barroca representativa da casa nobre portuguesa da época e área geográfica em que se inscreve, pela implantação em terraços e inserção na natureza, assim como, pela conjugação da casa, capela e pátio formando uma unidade própria.”

A casa integra residência, capela, mirante e também uma pérgola; a residência é formada por dois pisos, telhado de duas águas, “fachada principal longitudinal, sóbria, decorada apenas nas janelas do andar nobre com molduras de cantaria de verga curva e avental”. O rés-do-chão inclui cozinhas, celeiros, adegas e arrecadações. No andar nobre há salas e quartos sendo as portas pintadas a marmoreado; por sua vez, a capela é constituída por um “corpo definido por pilastras com empena a romper linha da cobertura, assinalada por dois fogaréus a prolongar as duas pilastras da fachada, que acentuam a verticalidade, e cruz central; portal com cornija forte sobrepujada por pinhas, moldura de recorte curvo; acima óculo quadrilobado.”

De acordo com o já referido acima, esta Quinta é do século XVIII. Investigámos alguns aspectos genealógicos e concluímos que esta casa pertenceu ao casal José Cardoso, nascido em 1718, e Maria Assunção dos Santos, esta natural de Palmazes. Deste casal nasceu, em 1736, precisamente nesta Quinta da Ribeira, o capitão José Cardoso dos Santos, avô materno de David Ubaldo Leitão, bisavô do Conselheiro Alípio Leitão.

01 dezembro 2022

O rio Mondego na poesia de Ulisses Baptista

Regresso às Origens é o título do novo livro de poesia de Ulisses Baptista, autor penacovense. Já em 2012 havia publicado Meu Rio de Prata, uma “Breve História de Penacova e suas Tradições”, de acordo com o subtítulo desta obra, toda ela traduzida em estrofes de quatro versos, num total de cento e oitenta e três.

Agora, além da temática do Rio Mondego, Ulisses Baptista, Engenheiro do Ambiente, reúne um conjunto de cinquenta e um poemas onde se cruzam recordações de infância, passada na Carvoeira, preocupações ambientais e sentimentos perante a Vida e a Natureza.

Além das duas poesias sobre o Mondego, que transcrevemos, encontramos também o poema “Lembranças do Mondego”. Fica um excerto: “Nunca julguei que um dia ao te domar / O Homem, que tem voz no meu lamento / Servisse pra tão só te ver passar”.

Ulisses Baptista vem publicando textos em prosa e em verso na página do Facebook “Carvoeira, terra amiga”, de que é administrador. Um espaço que tem como conteúdo as “histórias e as lendas”, bem como, “fotos e factos sobre a Carvoeira, seus lugares e suas gentes”.


MONDEGO, MEU RIO DE PRATA

Meu rio de prata,
Outrora fecundo,
Morro de saudade,
Por não me rever
No que te fizeram.
Que é feito de ti
Meu rio de prata?
Águas cristalinas
E areias tantas,
Taludes orlados
Com moitas de junco.
Meu rio de prata,
Outrora fecundo,
Que há em ti que eu veja:
Um simples canal,
E ao largo os montes
E o azul do céu,
Não em ti espelhado.
Mas tu, um príncipe folião,
Perdeste a garra
Neste canhão.
Meu rio de prata,
Bem que eu te queria
Como eras dantes:
Seixos roliços
Postos ao acaso
E tapetes de erva,
Que pisei descalço,
Porque era criança.
E criança fui
E em ti me fiz homem
E assim me deixaste,
Meu rio de prata,
Outrora fecundo.


MONDEGO

Tinhas as orlas espraiadas
Em linhas ténues nas areias,
As curvas pouco fechadas
No correr das tuas veias.
Por ti se encantaram povos,
Distantes na madrugada,
Que vieram trazer aos novos
Mensagens de paz velada.
Revoltoso no Inverno,
Quando inundava as terras,
E as águas, num inferno,
Vinham do cimo das serras.
No auge da estação quente,
A cor da prata no leito,
Límpido e transparente,
Num panorama perfeito.
Em ti refletiam as cores,
O celeste azul do céu,
As praias desses amores
Que tanto poeta escreveu.

E quando a força bruta
Trouxe o mal que te quebrou,
A beleza, em forma astuta,
Ainda assim nos encantou.



16 novembro 2022

Lugares, monumentos e sítios de Penacova (10): Cruzeiro / Pelourinho


O Cruzeiro de Penacova tem como antecedente o antigo pelourinho, entretanto transformado, tendo a primitiva função judicial dado lugar a um marco de carácter religioso.

Refere o “Inventário Artístico de Portugal” que o cruzeiro é do séc. XVIII. A coluna, geralmente referida como tendo características dóricas, assenta sobre degraus de grandes silhares medievais siglados, provenientes do castelo. É encimada por uma cruz latina, substituindo o remate e o capitel que desapareceram. O monumento foi desmontado em 1950, para rectificação da rua, tendo sido reerguido passados dois anos.

Em 1933, quando foram classificados todos os pelourinhos que ainda o não tinham sido, foi considerado como Imóvel de Interesse Público.

08 novembro 2022

Vida e obra de António José de Almeida: fragmentos (1)

EVOCANDO O 93º ANIVERSÁRIO DA SUA MORTE E O CENTENÁRIO DA VISITA PRESIDENCIAL AO BRASIL transcrevemos as referências feitas a António José de Almeida, ilustre penacovense, pela REVISTA DA SEMANA na edição de 9 de Novembro de 1929 publicada no Rio de Janeiro 


Um grande vulto que desaparece

“A morte do eminente estadista português António José de Almeida, ocorrida em fins da semana última, repercutiu dolorosamente na alma brasileira, por isso que o grande morto – figura inconfundível de revolucionário, de médico, de orador – era para os Brasileiros um vulto quase familiar: era um “cidadão carioca”, título que lhe foi conferido quando da sua honrosa visita, na qualidade de Presidente de Portugal, ao Brasil. Homenageando a memória do grande morto, reproduzimos nesta página dupla alguns aspectos fotográficos tirados há sete anos, quando da visita de António José de Almeida ao Rio de Janeiro, publicando em outro lugar a nota de redacção sobre o pensamento do eminente estadista.

 ***
“Com a morte do Dr. António José de Almeida, perdeu Portugal uma das figuras mais belas, mais luminosas da sua Política. E a nobre língua de Camões e de Eça de Queiroz – do poeta genial e do artista perfeito – apagou-se numa das suas mais altas fulgurações, num dos seus surtos solares de maior esplendor verbal . Porque se extinguiu para sempre o fogo estelar daquela voz e o turbilhão de ouro daquele espírito. Quem quer que o ouvisse sentia o fascínio do milagre. O talento é chama, o génio é incêndio criador de mundo e é dele que nasce a harmonia das coisas – na frase divina de Pitágoras.

Os fins do século XIX, que assistiram aos últimos esplêndidos crepúsculos da palavra arrebatadora de Emílio Castelar, na Espanha, iluminaram-se de súbito com a oratória flamejante do moço português que, ainda envolto no mistério da sua capa negra de “Coimbra Doutora”, lançava já no silêncio das multidões atónitas o gesto da fascinação maravilhosa e o sortilégio delicioso das imagens resplandecentes.

Aos vinte e quatro anos, surgiu António José dos bancos obscuros de estudante para a batalha, para a epopeia da Inteligência. A imprensa e a tribuna foram o seu largo campo de acção. Portugal lentamente despertava, a sua alma iluminava-se de princípios novos, de ideias novas. E António José ia ser o orador jovem, capaz de traduzir vigorosamente as aspirações e transformações da sua pátria. Ele aparecia assim, na agitação intelectual e social do país, como um renovador, um perdulário de ideias, um semeador de valores espirituais.

Revestido do fulgor da sua palavra como de uma armadura de aço faiscante – era ela o apóstolo do povo, o cavaleiro iluminado das multidões sem voz e sem defesa; e quando subia à tribuna, envolto numa auréola de predestinado, era como se realmente na sua voz se acendessem todas as vozes obscuras da pátria, todas as angústias anónimas do povo.

Ardente como um condottiere, sendo sempre a figura de primacial simpatia em todas as revoluções, republicano a sonhar uma República de nobreza e de liberdade, António José foi o poeta da acção, o idealista do progresso, arrecadando da forte e nobre alma portuguesa – que dera ao mundo os épicos navegadores do século XVI – estos de heroísmo e intensas vibrações patrióticas.

Esse irmão peninsular de Danton, talvez mesmo enamorado um tanto romanticamente das figuras violentas e decorativas da revolução Francesa, foi – na sua dialéctica luminosa e na grandeza demosténica do seu verbo um esplêndido espírito revolucionário, um eloquoentíssimo professor de energia.

Todavia, ao invés de cobrir a face com a máscara de ferro da acção fria e calculista, preferiu cobri-la com a máscara de ouro da beleza brilhante e imaginosa, tornando-se assim em toda a sua vida política um prodigioso fascinador, um harmonista cintilante de períodos rútilos, capaz de dominar pela suprema música da sua inteligência a multidão imensa e inquietante – que é uma serpente de mil cabeças.

Os brasileiros que tiveram a fortuna de ouvi-lo, quando da sua viagem ao Brasil em 1922, de certo não esqueceram a lapidar maravilha dos seus improvisos, a prestidigitação sonora das suas imagens que sugeriam um microcosmo de lendas, frases de diamantes e de rosas, cheias do sortílego poder de transformar miríades de vocábulos inertes em miríades de cintilações de pensamento.

Agora, está morto o homem extraordinário. A morte capaz de todos os sacrilégios, transformou numa fria boca de mármore aquela boca onde turbilhonaram tempestades de sóis e harmonias universais.”

in Revista da Semana, Ano XXX, nº 47, 9 de Novembro de 1929









23 outubro 2022

Lugares, monumentos e sítios de Penacova (9): Penedo do Castro


O Penedo do Castro ("do" e não "de", como por vezes se diz)  é um dos locais mais emblemáticos de Penacova no que se refere às panorâmicas que a vila e seus arredores nos oferecem.

Aquando do 24º aniversário da inauguração daquele miradouro, Emídio da Silva endereçou ao jornal “Notícias de Penacova” uma carta onde recorda as circunstâncias em que este miradouro natural foi valorizado e dignificado: “A Câmara Municipal de 1908, presidida pelo Dr. José Albino Ferreira (…) aprovou por aclamação a proposta do seu presidente, dando o nome de Penedo do Castro à levantada penha que domina o povo da Cheira e de cujo nível se desfruta um dos mais grandiosos panoramas circulares do nosso país.”

A lápide, em calcário, ali colocada em 1908, foi desenhada pelo arquitecto Raúl Lino. Também conhecido por Penedo da Cheira, consta que também já fora designado por Penedo do Cambo. A nova designação é uma homenagem ao Dr. Augusto Mendes Simões de Castro (1845-1932), amigo e propagandista de Penacova, que tantas vezes terá calcorreado os caminhos de Penacova, de Lorvão e do Buçaco, desvendando muito da história e arqueologia do nosso concelho.



09 outubro 2022

Lorvão: o olhar de Joaquim de Vasconcelos no dealbar do séc. XX






"Um passeio ao convento de Lorvão entrava no programa das excursões favoritas que ainda há trinta para quarenta anos faziam os estudantes de Coimbra. A inauguração sucessiva de diferentes linhas férreas desviou a atenção da Academia para pontos mais distantes, onde vão por preço modico gastar os dias feriados no seio de suas famílias.

O caminhante seguia então o curso do Mondego ou atravessava a serra do Dianteiro por uma sofrível estrada. Descendo o monte de Santo António dos Olivais passava-se o formoso vale de S. Romão e numa subida bastante íngreme alcançava-se o alto, chamado Espinhaço de Cão, onde um panorama esplêndido convidava o romeiro a descansar. Uma grande parte do valle do Mondego, semeado de vilas e aldeias, a capital da província com os seus monumentos históricos, o oceano rolando as suas ondas sobre a areia fulva e, alguns passos mais adiante, as cumeadas do Bussaco, enfim toda a Bairrada com a sua opulenta vegetação constata um cenário digno de ocupar uma geração de pintores. Caminhava-se então devagar, a pé, num terreno formado de xistos, apalpando as veredas numa descida vagarosa; e dobrando a montanha avistava-se de súbito o profundo vale de Lorvão.

A povoação é pobre; conta uns quinhentos fogos e vive hoje quase exclusivamente da pequena lavoura e de uma indústria caseira: a dos palitos, que apenas vegeta, mesquinhamente explorada por uma usura cruel. A primeira impressão antes de descer ao apertado vale, cortado por um mesquinho regato, era e é ainda hoje a de espanto perante o contraste dos dois elementos: o sagrado e o profano. A enorme construção que a estampa não abrange ainda assim completamente, caindo em ruínas, os dormitórios desabando, os celeiros nus, as cozinhas, os pátios e claustros desertos, mas ainda grandiosos, contrastando com a pobreza do casario da pobríssima aldeia.

Na época de maior esplendor, isto é, no meado do século XVIII, contava Lorvão para cima de cem religiosas, além das noviças e das serventes, e dispunha de um rendimento superior a oitenta mil cruzados. Os dotes que durante o século XVII orçavam por mil cruzados, foram no começo do século XVIII elevados a oitocentos mil reis. Viveu-se entre esses muros com opulência, com certo gosto e amor da arte; e não raras vezes com uma liberdade que provocava escândalos.

Por fim entrou ali o rigor da lei. Extintas as ordens religiosas em 1834, o governo de D. Pedro mandou liquidar as contas. Os monges bernardos que administravam a casa, saíram dali, deixando tudo empenhado; uma divida de cerca de oito contos de reis, destruídas as matas, vendidas as madeiras, e a caixa do dinheiro vazia. Sobreveio o fisco e reclamou vinte e cinco contos de décimas relaxadas, que os venerandos administradores tinham dado como satisfeitas! Daí em diante a situação das religiosas piorou rapidamente. Os foreiros, inquilinos e outros devedores, reconhecendo que os privilégios históricos haviam perdido a sua força, cerceavam ou negavam pagamentos. Procuradores e advogados armaram questões intermináveis, mas rendosas para eles. E contudo, a abadessa de Lorvão ainda era e foi durante anos a mãe dos pobres até 1851. Passados dois anos, porém, alguém pedia uma esmola para ela. Foi Alexandre Herculano.

«Escrevo-lhe do fundo do estreito vale de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro melancólico e mal assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado de indignação.

Descendo a examinar o arquivo das pobres cistercienses, penetrei no claustro por ordem da autoridade eclesiástica. Lá dentro, nesses corredores húmidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pálidas, cujos cabelos eram brancos. Esses cabelos nem todos os destingiu o decurso dos amos: a amargura embranqueceu os mais deles. Quase todas essas faces tem-nas empalidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro.

Estas mulheres ouvem de lá, do seu túmulo, o ruído do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquelas casas de telha vã, negras, gretadas, desaprumadas, com o aspecto miserável da maior parte das aldeias da Beira, vive uma população laboriosa, que até certo ponto se pode chamar abastada, e a que, pelo menos, não falta o pão nem a alegria.

No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto exterior quase indicando opulência, é que não há pão, mas só lágrimas... aqui vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome... Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta espécie de poço perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, metidas entre “quatro paredes húmidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edifício; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por cima das lágrimas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre...

Há poucos dias passou-se em Lorvão uma cena tremenda. Num acesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado delas uma grande ambição; aspiravam à felicidade do mendigo, que pode apelar para a compaixão humana, que pode fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz é demasiado frac e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por esse túmulo de vivos.» (Herculano, Opúsculos, vol. 1, pág. 195 e seg.)

A eloquente carta do grande escritor, publicada então pela imprensa, despertou o governo e produziu algum benefício, o que é muito para louvar, porque o martírio poderia haver-se prolongado por muito tempo.

Só passados vinte e quatro anos é que expirou a ultima freira professa D. Luiza Magdalena Tudella (3 de Julho de 1877). E durante esse longo período de um quarto de século tiveram as freiras à sua disposição, para as empenharem ou venderem, alfaias, quadros, peças de ourivesaria, móveis antigos, louças, azulejos, etc., enfim: objectos de considerável valor de que apareceram restos ainda importantes na Exposição de Arte Ornamental de 1882. Apesar de tudo, as senhoras religiosas resistiram à tentação de se pagarem por suas mãos; apenas nos derradeiros anos da última freira se cometeram abusos a coberto da sua incapacidade mental.

O actual sr. Bispo-Conde, apesar das suas enérgicas providências, encarregando uma comissão de fazer inventario minucioso (Junho de 1877), não conseguiu reaver certas preciosidades, por exemplo, uns relicários medievos de marfim, vendidos para fora do reino por quantias consideráveis.

Emquanto as freiras de Lorvão morriam lentamente à fome em 1853, havia mosteiros cujas habitadoras viviam na opulência e onde o supérfluo se desbaratava de um modo escandaloso. Herculano, que os conhecia bem, porque fôra encarregado de examinar oficialmente os arquivos eclesiásticos do país, declara na mesma carta, já citada: «Na secretaria da justiça encontram-se as provas de que a renda dos bens que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a 200 000$000 reis, e todavia há centenares de freiras que morrem à mingua. São dois factos que não carecem de comentário. É a manifestação mais eloquente de que não há governo nesta terra.» (Loc. cit, pag. 203).

O convento de Lorvão pouco valor tem como obra de arte. As reconstruções alteraram todas as suas feições antigas. Durante a segunda metade do século XVII e todo o século imediato não houve descanso; uma febre de modas e feitios novos apoderou-se das freiras. Pelos anos de 1688 foi sacrificado o claustro velho que, a julgarmos por alguns fragmentos de escultura existentes no Museu do Instituto de Coimbra, devia ainda abrigar restos valiosos de lavores mediévicos.

O claustro novo é banal, pesado, sem graça, se descontarmos umas três capelas em estilo da Renascença que escaparam : S. João Baptista -1602, Nossa Senhora de Nazareth -1603 e a do Calvário – 1644.

A casa do Capitulo, refeitório, dormitórios e outras serventias nada apresentam de notável. O frontispício da igreja, que existiu algum dia, desapareceu sem vestígio! No interior uma grande nave, ampla, de estilo pseudo-clássico do fim do século XVIII, iluminada por uma formosa cúpula na intersecção do cruzeiro com a nave. Belas cantarias, finamente rendilhadas num lavor rococó, muito discreto, que respeitou e pôs em relevo proporções arquitetónicas bem estudadas.

É celebre o côro com as suas majestosas cadeiras de pau santo e nogueira. Neste estilo, não há em todo o reino trabalho superior para documentar a suma perícia de uma escola de entalhadores bem portuguesa. Tinha grande semelhança com este o cadeiral do convento de freiras de S. Bento do Porto (Ave-Maria) há pouco demolido, talvez obra da mesma oficina.

A entrada do côro é vedada por uma grade monumental de ferro forjado e bronze que representa outra obra de arte muito notável. Foi executada em 1784 e custou 7 200$000 réis. Temos visto e comparado os artefactos mais notáveis dos nossos antigos serralheiros dos séculos XVI, XVII e XVIII em repetidas e demoradas excursões, há mais de trinta anos, mas confessamos que esta grade de Lorvão não tem par em Portugal.

Merecia uma estampa especial, assim como as duas urnas de prata lavrada, que guardam os restos das infantas portuguesas D. Teresa e D. Sancha.

São antes dois cofres de grandes dimensões, com o feitio de urnas, forrados de veludo carmesim, cobertos de lavores de prata, recortada em arabescos, guarnecidos de pedras de varias cores. O ourives Manuel Carneiro da Silva, natural do Porto, traçou as duas obras num estilo semelhante, largo, com um grande efeito decorativo, que não exclui primorosos detalhes de buril e cinzel nos desenhos heráldicos e arabescos menores, porque os grandes lavores são batidos a martelo ou repuxados. Custaram ambos perto de oito mil cruzados.

Havendo sido feita a trasladação dos antigos túmulos de pedra para estes cofres em 1715, é de presumir que o trabalho do ourives não seja muito anterior.

Foi uma grande festa que custou grossa quantia, excedida só pela que as religiosas pagaram pela beatificação da infanta D. Teresa (Bula de Clemente XI a 23 de Dezembro de 1705). Esta senhora, cujo casamento com Afonso IX de Leão fôra anulado por impedimento de parentesco, entrou para Lorvão na véspera de Natal de 1200; e para ali fez trasladar os restos de sua irmã D. Sancha (também beatificada) que falecera no mosteiro de Celas (1229), perto de Coimbra, fundação sua.

As lutas destas princesas e ainda de uma terceira irmã D. Mafalda (fundadora do célebre mosteiro de Arouca) com el-rei D. Afonso II, o Gordo, por causa da herança paterna, redundaram em proveito das ordens religiosas que as três ilustres senhoras favoreceram. Ter uma irmã em Lorvão ou Arouca correspondia quase a um título de nobreza. Em Lorvão figurou ainda outra princesa, a infanta D. Branca, filha de D. Afonso III, heroína do famoso poema de Garrett; e ali enclausuraram a célebre inspiradora da écloga Crisfal, do nosso ilustre escritor Cristóvão Falcão, delineada de 1525/30. D. Maria Brandão, filha do opulento Contador da Fazenda do Porto, João Brandão e de D. Brites Pereira, pagou a audácia do seu casamento clandestino com o poeta, entre os muros do cenóbio: «escondida entre serras onde o sol não era visto»... Falcão, transportado em sonho à serra de Lorvão, aí se encontra com a esposa amada:

«a vista no chão pregada,
com o seu cantar pensoso,
e passadas esquecidas
ao tom dele medidas,
vestida de arenoso,
as mãos nas mangas metidas»
                                                     (Estrofe 69)

Iríamos longe se fôssemos à resumir somente os casos mais memoráveis da cronica da ilustre casa que ainda teve a honra de hospedar Wellington e o seu estado-maior. Depois a fortuna declina rapidamente, como vimos. E hoje, se não fôra a generosa e esclarecida proteção do actual sr. Bispo-Conde, já o cadeiral do côro teria sido arrancado, fundida a esplêndida grade e os cofres de prata reduzidos a bons... patacos, mesmo sem o auxilio de franceses.


Joaquimde Vasconcelos, “Lorvão” in A arte e a natureza em Portugal: album de photografias com descripções, clichés originaes, copias em phototypia inalteravel, monumentos, obras d'arte, costumes e paisagens / Directores F. Brüt [e] Cunha Moraes. - Porto : Emilio Biel, 1902-1908 (Porto : Typ. de António José da Silva Teixeira). - 8 v. : il. ; 30x40 cm + Catálogo manuscrito





30 setembro 2022

Lorvão 1900: "população depauperada ...rebanho sem pastor"



Nos inícios do séc. XX foram publicados 8 volumes de uma obra intitulada A ARTE E A NATUREZA EM PORTUGAL - Album de photographias com descripções; clichés originais; copias em phototypia inalterável; monumentos, obras d’arte, costumes, paisagens.

Lorvão está aí bem representado. Temos um texto assinado por Joaquim [António da Fonseca] de Vasconcelos (1849 -1936) que foi um historiador e crítico de arte e foi casado com Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Há também 4 interessantes fotografias: vista geral do Mosteiro, interior da Igreja, vista do Cadeiral e Órgão e grupo de Paliteiras.

Além da descrição do conjunto arquitetónico e artístico, é também feita uma referência especial à indústria dos palitos. Escreve J. Vasconcelos:

“A indústria dos palitos é antiga na localidade. Tanto as freiras como os frades sabiam apreciar as vantagens de tão úteis acessórios (eles principalmente).

Como mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos monges brancos. Cinco frades Bernardos administravam as grossas rendas da casa. Refere-se que certa vez, não sabendo explicar plausivelmente o dispêndio de uma verba de 600$000 reis, escreveram numas contas irrisórias, que mostravam anualmente à abadessa: Palitos - 6004000 reis (Herculano, Opúsculos, pág. 200).

O pobre operário da aldeia não engorda, porém, com semelhante industria caseira; basta olhar para esses rostos tristes, resignados. E contudo são mãos hábeis, dedos subtis os que desencantam das varas do salgueiro (salix alba) os palitos finos, chamados marquezinhos, e entalham os frisados, os de flor ou os bordados, porque, conquanto seja mínimo o proveito, nem por isso se cansam nos seus primores.

Calcula-se o número de operários, incluindo grande número de mulheres, em uns mil, distribuídos por Coimbra (cidade), Lorvão e Penacova; a produção em uma dúzia de contos. O material de que o fabricante se serve é o mais modesto possível; consiste numa navalha afiada, na coura, isto é, um pedaço de cabedal, que protege o joelho, e ao qual está ligado um pedaço de chifre sobre o qual se trabalham as varas do salgueiro |.

É triste, profundamente triste, escrevíamos nós há mais de vinte anos (1879), que as singulares aptidões naturais de tanta, tão boa e tão modesta gente, como as dos concelhos citados, esteja reduzida a fabricar palitos mais ou menos frisados! [sublinhado nosso]

Pois não se está vendo que desse mesmo grupo saem os violeiros de Coimbra, entalhadores consumados noutra industria tradicional, os cesteiros e canastreiros da região aludida.

... Estas coincidências serão um acaso? Cada especialidade poderia render dezenas de contos, e fixar uma população depauperada - rebanho sem pastor - que vai entregar-se nas mãos dos engajadores de emigrantes... [sublinhado nosso]

Por fortuna, a atenção de alguns espíritos esclarecidos vai-se concentrando há anos nas questões que interessam a vida intima, tradicional do povo português. As indústrias caseiras constituíam uma parte da poesia do seu lar e por certo a melhor escola que alimentava a sua arte.

Mas não será tardio já, esse auxilio?"

Joaquim de Vasconcellos

26 setembro 2022

Buçaco: grafia e origem do termo



Existem diversas explicações para a origem deste topónimo. Desde as concepções mais ingénuas, como aquela em que se diz que um pastor tinha o hábito de mandar o cão BUSCAR o SACO, daí Busca Saco, ...Bus...Saco, BUSSACO, até àquela que conta que um escravo negro, a que chamavam BOÇAL (em castelhano  “negro recém-chegado do seu país”) ou BUÇAL, fugira ao seu senhor e se foi esconder numa gruta da Mata, tornando-se ladrão e assassino. Transportando um SACO, atacava as gentes das redondezas. Então, de BUÇAL + SACO teria resultado BUSSACO. Ora, tal não pode ser porque os negros só aparecem como escravos entre nós depois dos Descobrimentos e BUZACO aparece já escrito em documentos do séc. X. Há ainda quem diga que um devoto ancião que ali procurava sossego e silêncio [ali “nem chus nem bus] costumava dizer: “daquele monte SACO BUS”, isto é, “tenho silêncio”. Invertendo... deu BUSSACO! Também não convence.

Em que ficamos, então?

De acordo com a versão mais corrente o termo será derivado de “Bosque Sagrado” ou “Bosque Sacro”, ou de “Sublaco” ou “Subiaco”, um nome atribuído pelos beneditinos da Vacariça em memória da gruta do “Subiaco”, perto de Roma, onde S. Bento fizera penitência.

Há uma terra em Arcos de Valdevez (S. Vicente de Távora) chamado Buçaco e também existe Bussacos em Figueiró-Paços de Ferreira. (Cf Jorge Paiva, A Crise Ambiental).

Também no sudoeste da França, há dois topónimos: Bussac-sur-Charante (diz-se no site da localidade que Bussac» virá do latim «Buxus») e Bussac-Forêt. A Infopédia também remete para o baixo-latim [campus] Bucciacus, 'campo de Buccius'. Para alguns autores, na origem deste topónimo está um termo celta com a terminação genitiva (Bucci-acum): "terra de..." ou "terra dos...".

Sobre a grafia, deve escrever-se Buçaco ou Bussaco?

O termo foi tendo várias grafias: BUZACO, BUZZACO, BUSSACO e BUÇACO. Em “Ciberdúvidas da Língua Portuguesa” diz-se que antes da reforma ortográfica de 1911, era muito frequente escrever Bussaco. O “Mappa de Portugal Antigo e Moderno”, publicado em 1762, regista Bussaco. Depois de 1911 (e principalmente com o acordo ortográfico de 1945), a grafia do topónimo passou a ser Buçaco. A grafia com ç é mais coerente com a história do termo desde o século X («monte buzaco», num documento do mosteiro de Lorvão, do ano 919 , época a que parecem remontar as primeiras atestações). Na Idade Média, a palavra era, escrita não com com s ou ss, mas, sim, com z (por exemplo, nos séculos X e XI), dando mais tarde lugar ao grafema ç.

No caso de Buçaco, a etimologia é controversa, mas a documentação existente sugere que, até ao século XVI, este topónimo se escrevia com ç. Tal levou a que, com a reforma ortográfica de 1911, Buçaco passasse a ser a forma correcta, como que restaurando a escrita medieval.

Contudo, a grafia Bussaco permanece nalgumas situações: «Palace Hotel do Bussaco», «Fundação da Mata do "Bussaco"», «Casas do Bussaco». refrigerantes “Bussaco”… Em síntese – escreve Carlos Rocha - a forma correcta actual é Buçaco, mas, para fins comerciais, turísticos ou no âmbito da cultura local, é possível usar a forma adoptada a partir do século XVII , Bussaco.


07 setembro 2022

Lugares, monumentos e sítios de Penacova (8): Mont'Alto



No dia 8 de Setembro, data da grande Romaria, o “Dia das Sete Senhoras” ou de Nossa Senhora da Natividade, muitas famílias rumavam (e rumam ainda hoje) ao Mont’Alto, movidos pela Fé, mas também pelo Convívio. Tudo convida a estender a toalha e partilhar os deliciosos comes e bebes que neste dia não faltam. 

No livro “Coimbra e Região” (1987) Nelson Correia Borges faz referência a esta “capelinha” que “é um encanto na sua singeleza de ermidinha bem portuguesa”.  A Romaria da Senhora do Mont’Alto era uma das mais concorridas da região. As "Informações Paroquiais" de 1721 referem que os moradores da Vila do Botão e de S. João de Figueira (de Lorvão), vinham todos os anos em procissão (…) em cumprimento de “um voto antiquíssimo” trazendo as ofertas em tabuleiros. 

Aquele documento do séc. XVIII fala também da existência na encosta do monte de umas “pedras redondas” que tinham propriedade milagrosas.

O local está também associado à Batalha do Bussaco, dado que o general inglês Arthur Wellesley, Duque de Wellington, terá mandado colocar algumas peças de artilharia junto à capela, ponto estratégico militar.

Do alto do monte, quando os eucaliptos ainda não dominavam as encostas, gozava-se dum soberbo panorama sobre o vale do Mondego.  

Em 1994 foi projectada a construção, no recinto da capela, de um miradouro de 10 metros de altura, encimado por um cruzeiro, obra que certamente permitiria admirar a vastidão da paisagem circundante. Ainda chegou a ser lançada uma campanha de angariação de fundos, mas a iniciativa não foi avante. Quem sabe...não fosse, afinal, má ideia construir uns passadiços ao longo da encosta, retomando a ideia dos antigos carreiros,  culminando com um miradouro acima da copa das árvores circundantes...






2º Centenário da Independência do Brasil: a Visita de António José de Almeida àquele "país irmão"

Faz agora 100 anos. Por estes dias, o Presidente de Portugal estava no Brasil. A primeira Visita de Estado, após a independência, coube a António José de Almeida. A ida ao país irmão era desejada havia muito tempo. Estivera para ser D. Carlos, o primeiro a fazê-lo. Só mais tarde, com a comemoração do 1º Centenário da Independência do Brasil, a 7 de Setembro de 1922, data do famoso “grito do Ipiranga”, se deu essa deslocação.

A viagem teve alguns contratempos. Um deles foi o facto de o navio que levou o nosso presidente ter chegado com mais de uma semana de atraso. O convite havia sido feito com muita antecedência, mas os preparativos terão ficado para a última hora.

A primeira viagem de um chefe de Estado ao Brasil fez-se num "recauchutado" navio. Um antiquado paquete alemão, entretanto rebaptizado de “Porto” necessitou de grandes reparações mas mesmo assim as obras atrasaram-se e a partida foi sendo sucessivamente adiada. Pouco tempo depois de sair de Lisboa, teve de aportar às Canárias, devido a uma avaria. Avarias que se multiplicaram em todo o trajecto e a lentidão era tal que se chegou a pensar que havia falsificação do carvão!

No dia previsto para a chegada, 7 de Setembro, ainda a comitiva estava a meio do caminho. Na Rio de Janeiro iniciaram-se as comemorações do 1º Centenário da Independência e inaugurou-se uma exposição internacional (os nossos pavilhões não estavam prontos e tiveram de ser cobertos para não dar mau aspecto...). E mais grave: o único chefe de Estado convidado - António José de Almeida – não estava presente.

Apesar de todas estas contrariedades, António José de Almeida terá reagido com enorme calma e sentido de Estado. A viagem havia sido acompanhada com muita ansiedade dos dois lados do Atlântico e os brasileiros prepararam uma recepção apoteótica. O Presidente Português foi recebido por milhares de pessoas em todos os locais onde se deslocou, muito bem acolhido pelas entidades oficiais e civis. A retribuição revestiu-se de enorme simpatia (uma das características de António José de Almeida) a que se juntaram muitos discursos que arrebataram as plateias, confirmando perante os brasileiros a expectativa criada de grande orador. Muitas cerimónias tiveram lugar onde não faltaram grandiosos banquetes.

A viagem ficou marcada , mais pelos afectos do que pelos ganhos políticos, já que do ponto de vista oficial apenas três tratados de pouca relevância foram assinados.


UM DOS DISCURSOS DE ANTÓNIO JOSÉ DE ALMEIDA NO BRASIL

Provavelmente poucas pessoas conhecerão o discurso no palácio do Catete  por ocasião do Banquete oferecido pelo Presidente do Brasil. Aqui fica, tendo como fonte a Revista da Semana de 1922,  publicada no Brasil.


Senhor Presidente:

A emancipação política da grande pátria que é hoje o Brasil foi um facto espontâneo e normal, consequência de uma evolução inexorável, que nehuma força seria capaz de impedir.

A independência do Brasil não data do grito de Ypiranga, como à primeira vista podia supor-se; ela partiu de
mais longe, porque se vinha formando lentamente na consciência nacional, visto que, de facto, o Brasil apesar de colónia, foi desde cedo nação, tendo mais condições de vida própria do que tantos outros povos que, ao longo da história, com aparência de independentes, mais não foram do que organismos subordinados a outros mais poderosos que os dominaram.

O nervosismo, mais feito afinal de desolação e despeito do que de má vontade, que em Portugal se manifestou logo após o acto definitivo da Independência, deasapareceu sem demora, porque aqueles que lá lutavam contra uma forma de governo retrógrada e reacionária compreenderam que, se para eles a fórmula da própria independência individual e colectiva era a revolução liberal, aqui, no Brasil, a revolta contra a mesma opressão só podia revestir um aspecto: o da independência.

Como V. Ex. acaba de dizer com firme exactidão e escrupulosa verdade, Portugal descobriu, povoou e defendeu contra a cobiça dos estrangeiros o vasto território do Brasil. O Brasil independente de hoje tem pois que agradecer a Portugal o facto de ele lhe ter legado, intacto, à custa de torrentes de sangue e torrentes de lágrimas, tamanho e tão rico património. Mas Portugal tem que agradecer ao Brasil independente de hoje a energia, a bravura, a inteligência e o amor da raça com que ele tem sustentado,
aumentando-a, desenvolvendo-a e dourando-a de uma maior magestade e beleza, a obra que foi a maior glória do seu grande passado.

Creio que estamos pagos perante a história.

Nenhum povo deve menosprezar as honradas origens que teve, e nenhum povo tem o direito de olhar, com ressentimento ou tristeza sequer, a separação do seu todo daquela parte que, no exacto cumprimento dos destinos históricos, uma vez sentiu em si a acção das forças indomáveis que a levaram ao legítimo afastamento.

É esse o motivo que determinou V. Ex. a render, neste momento, um sentido culto a Portugal. É essa a razão que me impele, a mim, a prestar profunda e comovida homenagem ao Brasil. V. Ex. o disse: o Sete de Setembro é uma data luso-brasileira, e celebrá-lo é realizar uma festa da raça. Em verdade, nesta data há glória que chegue para todos. Somente eu, senhor Presidente, doutor Epitácio Pessoa, devo declarar francamente que não vim aqui com mandato da minha Pátria para tomar a porção de glória que lhe pertence. Eu vim aqui no exclusivo intuito de reconhecer aquela outra, e bem grande ela é, que cabe em partilha ao Brasil.

É nesta missão de que venho investido e que teve ontem tão auspicioso início na maneira inexcedível de entusiasmo e carinho com que V. Ex., o seu governo, as autoridades civis e militares e o povo quiseram receber-me, ao entrar nesta formosa cidade, estou reconhecendo, por mim próprio, o que já sabia por depoimentos alheios, isto é que o Brasil tem sabido criar uma civilização própria que é, em parte, feita da velha tradição portuguesa, em parte devida ao forte e sadio ambiente americano, mas sobretudo é o resultado do esforço intrépido e inteligente dos homens resolutos que o povoam e na verdade se formaram um estado de alma, colectivo, poderoso e resplandecente, a que com justeza se deve chamar brasilidade - força nova, serena e ousada que está intervindo eficazmente nos destinos do mundo.

Brasil e Portugal são duas pátrias irmãs, cada uma vivendo em sua casa, tendo um passado até há cem anos comum e um futuro em muitos pontos diverso, mas em tantos outros equivalente.

Os brasileiros sentem-se em Portugal como na sua Pátria.

Os portugueses, em vastos núcleos de trabalhadores, sentem-se no Brasil como na sua própria terra. As mesmas constituições republicanas, embora sob aspecto diferente, governam e dirigem as duas nações que tem dado provas, ambas elas de amar sinceramente a democracia.

Uma língua incomparável, que retine o melhor ouro da linguagem humana e dispõe de um poder plástico sem igual, serve - maravilhoso instrumento de civilização e solidariedade - os dois povos, que se sentem presos nas espiras desse verbo quasi divino.

Que outra coisa é precisa para que eles auxiliem sempre e se entendam cada vez mais. Creio que coisa nenhuma, já que o sentimento fraterno que enleia os corações, perenemente alvoroçados pela estima comum, é tão forte que em caso nenhum a vontade dos homens o pode quebra. E o nosso encontro aqui, senhor Presidente, é um eloquente testemunho dessa esplêndida realidade.

Senhor Presidente, em nome da nação portuguesa e no meu próprio nome, agradeço a V. Ex. e ao Brasil a entusiástica e comovida recepção que me fizeram e de que guardarei perdurável recordação, e erguendo a minha taça em honra de V. Ex. e do grande povo de que é chefe eminente, faço votos sinceros pelas suas mútuas felicidades."