26 março 2022

Penacova no dealbar do séc. XX


Entre Dezembro de 2015 e Janeiro de 2016 publicámos neste espaço um conjunto de artigos baseados num Relatório da Câmara de Penacova datado de 11 de Outubro de 1898 e que, posteriormente, foi divulgado na imprensa local.

A dois anos de terminar o século XIX, foi solicitado às Câmaras Municipais do país, um relatório sobre as condições de vida dos “povos”, suas necessidades e aspirações. Deveriam também ser apresentados alguns “meios de remediar ou atenuar o mal presente e preparar a prosperidade futura”.

Assim, durante a vigência de um dos governos presididos por Luciano de Castro, a Câmara de Penacova enviou ao Ministro das Obras Públicas um importante documento que nos poderá ajudar a perceber, em certa medida, o atraso estrutural do concelho.

A parte inicial do relatório faz uma breve caracterização geográfica e tece algumas considerações sobre a situação da agricultura.

“O concelho de Penacova está situado a nordeste de Coimbra e confina pelo Norte com os de Mealhada e de Mortágua; pelo nascente com os de Tábua e Arganil e pelo Sul com o de Poiares. A sua superfície é de 160 km2 aproximadamente; a população é de 18 382 habitantes, isto é, cerca de 114 habitantes por quilómetro quadrado.

O clima é frio e salubre, o solo muito irregular e montanhoso, mas fértil.  Por todo ele se cultivam cereais, especialmente o milho e centeio, havendo também cultura de trigo, cevada e aveia. É considerável a sementeira de batata e feijão. As vinhas davam-se optimamente antes da invasão filoxórica, sendo o vinho de boa qualidade; hoje estão sendo renovadas pela cepa americana, que vegeta excelentemente.

A produção de azeite era ainda há poucos anos muito avultada mas tem decrescido muito, devido à moléstia que seca as oliveiras.

Os castanheiros vegetaram optimamente mas estão igualmente quase extintos pela moléstia que os afecta com grande prejuízo para este concelho.

Há em geral bastantes árvores de fruto das diversas espécies, que se desenvolvem e frutificam bem e os frutos são saborosos, segundo a sua qualidade.

Nos terrenos mais fracos das encostas dá-se bem o pinheiro, sendo grande a extensão desta sementeira e grande o seu rendimento em madeira e lenha.

As terras cultivadas dão boas pastagens. Não há terrenos desaproveitados, a não serem, nas serras, os baldios que são extensos e apenas servem para pastagens de gados, e nas margens dos rios Mondego e Alva os areais em que se pode alargar muito cultura do milho e feijão pela notável fertilidade dos terrenos marginais, enquanto são inundados pelas enchentes.

A riqueza não está acumulada, mas a propriedade, em geral, excessivamente dividida. As terras amanhadas são na sua maior parte regadas com a água das fontes e nascentes que há muitas, ou com a das ribeiras e rios (Mondego e Alva) geralmente abundantes."

Prossegue o documento:

“No reino mineral são dignas de menção as pedreiras de mármore de Sazes e de calcário das freguesias de Sazes e Penacova de que se extrai cal preta de primeira qualidade, e as de granito, para cantaria e mós, das freguesias de Penacova e Friúmes.

Não há neste concelho minas em exploração, não obstante ser carbonífero o terreno ao sul da serra do Bussaco. Estão registadas nesta comarca, no corrente ano, em favor de Carlos Leuschner e outros, dez minas de metais preciosos, carvão, ferro, chumbo e outros metais.

Não há indústrias dignas de serem especialmente mencionadas a não ser as de madeira, lenha, cal e palitos.

Dadas as condições naturais do solo a persistente actividade da população deste concelho, devia a sua riqueza ser muito maior e o bem-estar mais geral. 

Este facto é devido a causas várias, que vamos apontar, algumas das quais são gerais e outras privativas deste concelho.

Começou a crise neste concelho com a abertura da linha férrea da Beira Alta, afectando toda a população das margens do Mondego pela supressão, quase completa, da indústria de barcagem que se fazia entre a Figueira e a Foz do Dão.

Logo a seguir a filoxera devastou as vinhas e outras moléstias secaram grande parte dos olivedos e castanhais, ficando, por estes motivos, muitos braços sem trabalho e muitas famílias sem suficientes meios de subsistência. 

Mas nem se organizaram bandos precatórios [ peditórios na via pública] nem a propriedade foi menos respeitada; desenvolveu-se a emigração extraordinariamente, o que determinou a afluência de capitais, vindos principalmente do Brasil, com que se sustentam muitas famílias e se procura restaurar a cultura da vinha e melhorar todas as outras.”

Depois da caracterização geográfica e sócio-económica do concelho, com referências à situação da indústria, incluindo a extractiva, reconhecia-se que não fosse a emigração para o Brasil Penacova atravessaria uma situação ainda mais grave.

O documento avança algumas soluções para os constrangimentos existentes.

“Diversas medidas legislativas podem, no nosso entender, animar esta regeneração nascente e promover neste concelho uma prosperidade de que ele nunca gozou.

Desde que só pelo trabalho inteligente do homem se aproveita e valoriza a feracidade natural do solo, a primeira coisa que se deve procurar é a economia do tempo; e a este respeito, alguma coisa há a fazer, simplificando muitos serviços.

Por exemplo: pela actual lei do recrutamento estão quase todos os mancebos , maiores de 20 anos, sujeitos ao serviço militar da 2ª reserva, e, em virtude do disposto no regulamento dos serviços de reservas, não podem os reservistas ausentar-se do seu concelho por mais de trinta dias sem participarem, na respectiva administração do concelho, aquele para onde vão residir – um dia perdido; depois, deve o reservista apresentar-se na administração do concelho para onde vai residir dentro de 30 dias – outro dia perdido.Se novamente regressar ao seu concelho passados dois ou três meses terá de perder outros dois dias.

Mas ainda o pior é que em muitos casos (e aqui dá-se isso com os sarreiros, ceifeiros, corticeiros, negociantes de palitos, etc.) os reservistas passam na época própria do ano a exercer a sua profissão por grande parte do país, não se fixando em determinado concelho; estes têm que optar pela transgressão do regulamento, suspeitando-se as consequências, ou pela miséria proveniente da falta de trabalho. Melhor seria exigir apenas a mudança de domicílio quando os reservistas fossem para outro concelho com ânimo de fixar nele a sua residência, tanto mais que podem ser prevenidos pela imprensa periódica ou pelas famílias do seu chamamento ao serviço ou à revista.

Os serviços administrativos nos concelhos e paróquias têm uma ordenação de tal forma complicada que é muitas vezes impossível encontrar pessoal com as suficientes habilitações para bem desempenhar os diversos cargos; e a iniciativa local é entorpecida e esterilizada, especialmente nas corporações de fraca receita, como são muitas câmaras municipais e quase todas as juntas de paróquia, pelas excessivas formalidades que as leis exigem sem vantagem de fiscalização que compense.


Deve dar-se mais liberdade às corporações locais e tudo o que se fizer neste sentido merecerá agradecimento dos povos.”

O relatório realça agora a importância da instrução primária, da enumeração das carências existentes e das propostas de melhoria.

 “Mas, desembaraçada a actividade dos que trabalham de inúteis dispêndios do tempo, é preciso dirigi-la por forma que a produção aumente em quantidade, perfeição de trabalho e valorização. Para o conseguir, são precisas duas condições - a instrução técnica e a facilidade de comunicações.

O trabalho inteligente produz mais e com mais produção. Julgamos por isso de urgente necessidade que se restabeleçam os antigos exames elementares e complementares  nas sedes dos concelhos e as escolas complementares nas mesmas sedes; que se organizem programas adequados a cada concelho para a respectiva escola complementar; que se promova a frequência das escolas, chamando de preferência ao serviço militar os mancebos que não fizeram exame elementar e chamando na falta destes os que obtiveram aquela habilitação; que se tornem obrigatórios para certos empregos os exames elementares e complementares; que se divulguem, quando possível, os conhecimentos elementares de agricultura por meio de manuais práticos distribuídos aos alunos das escolas, etc.

Os decretos de 6 de Maio de 1892 e 22 de Dezembro de 1894 foram verdadeiramente ruinosos para a instrução primária. O número das aprovações nos exames elementares neste concelho foi, respectivamente, nos anos de 1889 a 1891, de 28, 45 e 46.

Nos três anos seguintes o número de aprovações baixou, por virtude do decreto de 6 de Maio, respectivamente a 23, 27 e 24.

No ano de 1891, único em que houve neste concelho exames complementares por ter sido pouco antes criada a respectiva escola, foram aprovados nestes exames 7 alunos. Pois, com a supressão destes exames, nos anos de 1896, 1897 e 1898, foram aprovados no exame de instrução primária elementar do 2º grau, respectivamente, 5, 6 e 3 alunos!

Estes números parecem-nos por demais elucidativos. Viu-se que não só os professores se estimulavam procurando cada um apresentar os seus alunos muito bem habilitados, mas os próprios alunos e seus pais se não poupavam a trabalhos e despesas a fim de que o resultado daquelas provas públicas os honrasse no seu pequeno meio.

As escolas complementares nas sedes do concelho podiam habilitar os filhos dos lavradores e industriais de mediana formatura e adquirir com pequena despesa, além da instrução geral, grande cópia de conhecimentos profissionais sem contraírem os hábitos de luxo a que ficam sujeitos saindo para fora do concelho.

Os programas destas escolas devia variar segundo a necessidade dos concelhos; assim nos concelhos essencialmente agrícolas, como este, se ensinassem melhores processos de preparação de estrumes e adubos, a escolha destes segundo a diversidade dos terrenos e sementeiras, as vantagens da irrigação e drenagem das terras, as vantagens da arborização das encostas, da escolha das castas e enxertia e da criação de gados, etc.

A iniciação dos alunos a estes estudos dispô-los-ia a continuar neles depois de saírem da escola, levando-os a abandonar os processos rotineiros que seus pais geralmente seguem e prepararia em breve uma geração bem orientada. Noutros concelhos teria preferência o estudo da escrituração comercial, do desenho industrial, etc.”

O documento que estamos a citar, reflectindo os problemas e as preocupações dos responsáveis político-administrativos de então, expõe a necessidade de criar mais “postos de trabalho.

 “Assim preparada a população laboriosa, preciso é que lhe não falte o campo onde exerça a sua actividade. Neste sentido deve prover-se ao melhor aproveitamento das terras tornando a agricultura não só mais intensa mas também mais extensa. A propriedade tende a pulverizar-se por sucessivas divisões.

É conveniente estabelecer para o futuro a indivisão das propriedades que não tenham um certo valor ou rendimento; permitir a expropriação dos pequenos prédios encravados; dar, em caso de venda, o direito de preferência aos proprietários confinantes desde que o prédio a vender não tenha um certo valor.

Também neste concelho como em muitos outros , em que o solo é muito irregular e montanhoso e a propriedade excessivamente dividida, os pequenos prédios se acham depreciados, umas vezes por não terem servidão legalmente constituída sobre os prédios vizinhos  e carecerem dela, outras por se acharem onerados com servidões desnecessárias. É da máxima conveniência que a constituição, mudança e cessação de servidões sejam feitas, em regra, no juízo conciliatório, dispondo-se que as custas no juízo de direito sejam pagas pela parte que não quis conciliar-se, todas as vezes que na sentença final seja atendida a petição do autor dentro das bases da proposta conciliatória ou na proporção em que o for.

Deve igualmente simplificar-se o processo para se efectuar o despejo nos prédios rústicos.

Pode alargar-se muito mais a área da cultura neste concelho, já promovendo o aproveitamento dos areais nos rios Mondego e Alva, facilitando o alinhamento e licença para as obras necessárias já  dando aos municípios mais liberdade na administração dos baldios, permitindo às câmaras municipais a demarcação deles e o seu arrendamento, aforamento ou venda, conforme se julgar mais conveniente; e quando os baldios devam ser aproveitados para plantações ou sementeiras de árvores poderem as câmaras chamar os povos vizinhos à sementeira ou plantação das matas comuns, dando  cada fogo um ou dois dias de serviço por ano, e podendo ser divididos pelos mesmos povos os estrumes  e as árvores cortadas para desbaste.

Para o melhor aproveitamento agrícola e industrial das Águas dos Rios Mondego e Alva convirá, talvez, considerar-se o Mondego inavegável nos meses de Verão, do Porto de Gondelim para cima, afim de serem dispensados os proprietários das condições onerosas com que actualmente lhes são concedidas as licenças para construção e aproveitamento dos caneiros, visto ser de importância nula, naquela época, a navegação.

O relatório da Câmara termina com algumas propostas para a melhoria das situações e mesmo de resolução dos problemas.

“Convirá também dispensar igualmente as formalidades e despesas de licença para as obras provisórias que para o mesmo fim hajam de fazer-se. Não devemos esquecer que é raro o agricultor que sabe fazer um requerimento.
A fim de facilitar o crédito rural, entendemos que bastará que as nossas leis sobre o assunto se inspirem noutro pensamento que não o de aumentar o rendimento do selo.

Assim, não devem subsistir algumas taxas da lei do selo incidindo sobre as escrituras de mútuo e fiança do mesmo contrato; e, sobretudo, deve modificar-se o artº 798 do código de processo civil, considerando títulos particulares de mútuo pelo menos até à quantia de 50$000 réis.

Os capitalistas, naturalmente tímidos, mais do que usuários, só emprestam os seus capitais com as garantias que julgam suficientes. Por isso convém que se facilite a cobrança coerciva desses capitais, tornando-a o menos dispendiosa possível, para que o credor tenha o capital seguro com uma hipoteca de pouco maior valor. Nas circunstâncias actuais, quem tenha apenas 50$ ou 60$000 réis em propriedade não acham quem lhe empreste um vintém, porque a cobrança coerciva dele absorvia em selos e custas todo o valor da hipoteca.”

Mudando de assunto e retomando alguns aspectos já abordados, continua o relatório:

“Não há neste concelho grandes indústrias (apesar de poderem aproveitar-se para isso as óptimas quedas de água do Alva e Mondego) nem pode desenvolver-se o comércio e as pequenas indústrias já existentes enquanto não estiverem abertas as estradas real nº 48, desde Penacova até à Raiva, e a distrital nº 73, desde Penacova até à estação do Luso. Aquela liga com Penacova e Coimbra, por caminho curto, seis freguesias deste concelho que se acham separadas por serras quase intransitáveis, e grande parte dos concelhos de Tábua e Arganil. Esta, já construída em parte, atravessando as freguesias de Penacova e Sazes, serve povos de uma região muito fértil, que actualmente tem péssimas estradas, e permite a exploração das pedreiras de mármore de Sazes e de cal de Penacova e Sazes, que se encontram precisamente ao longo do trajecto projectado da mesma estrada.

Sem estas duas construções não é possível fazer prosperar neste concelho a agricultura, comércio e indústria, por causa da enorme dificuldade de transportes.

Ainda julgamos dever chamar a atenção de v. ex.ª para outro assunto de grande importância neste e em muitos concelhos do país.

Durante os últimos anos foi grande a emigração para o Brasil, saindo muitos indivíduos sem passaporte legal.

A emigração clandestina acabou quase completamente depois das medidas repressivas que foram tomadas, mas acham-se no Brasil milhares de portugueses que aqui estão considerados como desertores e sujeitos a penas graves por não haverem cumprido os preceitos da lei do recrutamento, resultando deste estado de coisas, que os que se acham naquelas circunstâncias não regressam nem mandam capitais, com grande prejuízo para eles e para o país. Deve pois estudar-se o modo de remediar tais inconvenientes por forma equitativa.

“Tais são as considerações que submetemos à alta e ilustrada apreciação de V. Exª.“ Deste modo termina o Relatório.

Para conhecimento e apreciação dos leitores mais interessados pelo passado de Penacova, entendemos fazer a sua transcrição integral, que agora fica disponível para quem se interessar em fazer a sua análise crítica.

 

20 fevereiro 2022

Terras de Penacova no "Portugal Antigo e Moderno" [3]: a vila de "Pena-Cóva"

 


Pinho Leal, publicou - entre 1873 e 1890 - a obra em 12 volumes intitulada «Portugal Antigo e Moderno», um dicionário sobre “todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal.” Aqui podemos encontrar muitas referências às principais localidades que hoje fazem parte do concelho de Penacova.

Já fizémos referência à vila de Farinha Podre e às localidades de Travanca e de S. Paio, bem como de Carvalho, Figueira de Lorvão, Friúmes, Lorvão, Paradela e Oliveira do Cunhedo. Hoje, é a vez da sede do concelho. 

“PENA-CÓVA” [assim aparece escrito] é vila e freguesia, cabeça do concelho do seu nome e comarca. Na província do Douro [à época], dista 18 quilómetros a N.E. de Coimbra, 20 da Mealhada, 18 da Lousã e de Mortágua, 12 de Farinha Podre, 6 de Santo André de Poiares e 220 de Lisboa. Tem 680 fogos (em 1757 tinha 397).

Refere o “Portugal Antigo e Moderno” que o concelho de Penacova, era formado pelas 9 freguesias, todas no bispado de Coimbra: Carvalho, Farinha Podre, Figueira de Lorvão, Friúmes, Lorvão, Oliveira do Cunhedo, “Pena-Cóva”, Sazes, e Travanca, num total de 2900 fogos. Chama a atenção para o facto de até 1855 ter só cinco freguesias: Carvalho, Figueira de Lorvão, Lorvão, Penacova e Sazes, totalizando 2100 fogos. Pinho Leal salienta que pertence a este concelho a antiquíssima povoação de “Gondolim” (Vila-Verde).

Refere-se que “D. Sancho I lhe deu foral, em Dezembro de 1192 e que  D. Afonso II o confirmou (em Coimbra a 6 de Novembro de 1219) e ainda que  D. Manuel lhe deu foral novo (em Lisboa a 31 de Dezembro de 1513).  “Foram seus donatários os condes de Odemira e, depois, os senhores de Tentúgal, duques do Cadaval”.

Penacova, refere Pinho Leal, “é uma das mais antigas povoações de Portugal, e talvez da península hispânica, o que se colige do seu próprio nome – Pen - que é cantábrico. Está a vila edificada sobre uma montanha (por cuja base passa o rio Mondego) patenteando a sua nobre vetustez nas muitas ruínas que foram outrora esplêndidas habitações, e tendo em tempos felizes, mais de trezentos fogos, está hoje reduzida a noventa e tantos.”

E prossegue: “Consta que, em tempos remotíssimos, teve um castelo, cujos vestígios se divisam em um escarpado monte, ao S. da vila, onde hoje está a Igreja matriz. Este monte é quási talhado a prumo sobre o Mondego mas, apesar disso, está coberto de oliveiras.”

De acordo com o padre Carvalho da Costa na sua “Chorographia” (diz Pinho Leal), “a primeira notícia d'esta vila data das contendas que os seus moradores tiveram com os monges de Lorvão, em 1105, as quais compôs o conde D. Henrique e diz que D. Sancho I a mandou povoar em 1193.”

No cartório de Lorvão, existia uma escritura de 1086 que era uma doação feita por Piniolo, àquele mosteiro, de uma morada de casas na vila de “Pena-Cóva” e uma vinha em “Ribellas”, que ele havia plantado e regado com o suor do seu corpo. Isto, para sustento dos monges que ali morarem (no mosteiro) e de todos os fiéis que ali concorrem. (…)

Aquando da publicação do “Portugal Antigo e Moderno” ainda existiriam os Paços dos Duques do Cadaval. As justiças de Penacova eram dependentes do ouvidor de Tentúgal e, depois, do corregedor de Coimbra.

Orago: Nossa Senhora da “Assumpção”. Era o Mosteiro de Santa Clara, de Coimbra, que apresentava o prior, que tinha 470$000 réis de rendimento. A Igreja matriz “é um templo vasto e muito decente, com nove altares (sete dos quais são dedicados a Nossa Senhora, nos seus diferentes mistérios.” Refere-se de seguida a Capela de N. Sª da Guia: “No âmbito outrora ocupado pelo castelo, existe a antiga capella de Nossa Senhora da Guia. É um “templozinho” pequeno e pobre e só com um altar. É tradição que esta ermida foi a primitiva Igreja paroquial da vila. Porém, como era pequena, e em sitio incómodo, se construiu, no século XVI, a Igreja actual.” [Não parece que esta informação esteja correcta. No entanto vem sendo referida com frequência].

Ainda sobre esta capela: “diz-se aqui que “Plácido Castanheira de Moura, contador-mor do reino, tinha muita devoção com esta Senhora da Guia, e quis mandar-lhe construir um bom templo; porém, como falecesse antes de realizar o seu desejo, deixou por testamento, à Senhora da Guia, umas fazendas que tinha n'esta vila, para que com o seu rendimento, se reconstruísse a capela, dando lhe maior amplitude.” o que não corresponde à versão de Alves Mendes, no Conimbricense de 1857.

A principal indústria do concelho, “é a navegação do Mondego, à qual se entrega a maior parte dos seus naturais, conduzindo do centro da província, para a Figueira da Foz, [ou vice versa] sal, milho, vinho, azeite, lenhas e outros géneros.”

Sobre a morfologia lê-se aqui que “a serra do Bussaco, atravessa este concelho, de Este a Oeste e, do mesmo modo, a serra de Coimbra. O Mondego corta-as ambas e recebe dentro do seu termo, as ribeiras da Vila, de “Gondolim” e de Lorvão, que todas nascem neste concelho, e a de “Poyares” que o atravessa. Também nele desaguam os regatos de Além do Rio, Abarqueira e Vale-Bom (o de Sazes, desagua na ribeira do Botão).”

15 fevereiro 2022

Penacova no “Portugal Antigo e Moderno” [2]: Carvalho, Figueira, Friúmes, Lorvão, Oliveira, Paradela e Sazes

Pinho Leal, militar, ficou conhecido pela publicação (entre 1873 e 1890) da obra em 12 volumes intitulada «Portugal Antigo e Moderno», uma espécie de dicionário sobre “todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal.” Nesta obra de finais do século XIX podemos encontrar muitas referências às principais localidades que hoje fazem parte do concelho de Penacova.

Já fizemos referência à vila de Farinha Podre e às localidades de Travanca e de S. Paio. Apresentaremos agora Carvalho, Figueira de Lorvão, Friúmes, Lorvão, Oliveira do Cunhedo, Paradela e Sazes. Terras que se situavam, à época, não na Beira Litoral, mas na província do Douro. Concluiremos oportunamente com a vila e freguesia de Penacova. 



CARVALHO 

Esta vila dista 24 quilómetros de Coimbra e 228 ao Norte de Lisboa e situa-se “nas abas da serra do Carvalho, à qual se chama também serra do Cântaro.”

Tem 320 fogos (em 1757 tinha 224). Orago: Nossa Senhora da Conceição. “O morgado do Carvalho, e depois Condes de Oeiras e Marqueses de Pombal, apresentavam aqui o prior, que tinha 200$000 réis."

Acrescenta o Dicionário que “havia aqui próximo uma albergaria, chamada de Santo António do Cântaro, com três camas permanentes e com a obrigação de ter nos meses de Julho, Agosto e Setembro, um cântaro cheio de água e um púcaro para se beber, na dita serra, à qual por isso se dá também o nome de Cântaro.”

Segue-se a referência à antiquíssima albergaria:

“Na larga doação que D. Bartolomeu Domingues fez à Albergaria do Cântaro, junto à vila, em 1215, se determina que todo o que for contra aquela doação, pague o dobro do dano que causar. Esta obra caritativa foi instituída por uma senhora de apelido Carvalho, que atravessando esta serra (do Carvalho ou do Cântaro) lhe morreu um criado à sede. Já se vê que é muito antiga, pois em 1215 já existia esta albergaria. Esta senhora é ascendente dos atuais srs. condes de Oeiras, marqueses de Pombal, por casar em Sernancelhe Diogo de Carvalho com D. Filipa de Seixas, filha e herdeira de João de Figueiredo e de Maria Seixas.”

Refere-se ainda que morgado de Carvalho “foi instituído em 1178 por Domingos Feyo de Carvalho”, sendo “terra realenga” e “governava-se por um juiz ordinário e câmara, confirmada pelo corregedor de Coimbra.”

A serra do Carvalho (ramo da Alcoba, que é ramo da Estrela) é “abundante de árvores e ervas medicinais, e diz Grisley[1] no seu Herbolario, que nela encontrará todas as ervas que Laguna descreve”, apesar de ser “terra pouco fértil.”

Por fim, regista-se que “D. Manuel lhe deu foral em Lisboa, a 8 de Junho de 1514.”                                          

FIGUEIRA DE LORVÃO

Esta freguesia é referida como estando a 12 quilómetros de Coimbra e a 215 ao Norte de Lisboa. Apresentava 400 fogos (em 1757 registaria 228). Salienta-se que é uma terra muito fértil.

S. João Baptista era o Orago da freguesia. Figueira pertencia ao Bispado e Distrito Administrativo de Coimbra.

Eram as freiras de Lorvão que apresentavam o vigário, que tinha 60$000 réis, e o pé d'altar.

O nome Luiza de Jesus é aqui recordado.  Diz-se que aqui nasceu, em 1750, “uma mulher (um monstro) chamada Luiza de Jesus. Em 1772, tendo apenas 22 anos de idade (!) foi por muitas vezes à Roda de Coimbra buscar grande número de expostos, dos quais envenenou 34, só para adquirir 600 réis e o enxoval que a Roda dava a quem levava cada criança! Foi presa e sentenciada à morte, mas parece que morreu na prisão, pois não consta que morresse no patíbulo.” 

Como sabemos, por outras fontes, foi condenada à morte. Depois de “atazanada” pelas ruas de Lisboa, foram-lhe cortadas as mãos ainda em vida, foi garrotada e queimada em 1 de Julho de 1772.

FRIÚMES

A freguesia de Friúmes pertenceu ao concelho de Poiares até 1855 e, desde então, ao concelho de Penacova. Àquela data pertencia à comarca de Coimbra.  O dicionário diz que se situa a 24 quilómetros de Coimbra e a 215 ao Norte de Lisboa, sendo uma “terra fértil”.

Teria 230 fogos (contra os 133 em 1757).

Pertencendo ao Bispado e Distrito Administrativo de Coimbra tinha como Orago S. Mateus. Era o prior de Penacova que apresentava anualmente o Cura, que tinha 30$000 réis de rendimento.

LORVÃO

Lorvão é situa-se a Este de Coimbra, distando 12 quilómetros desta cidade e 215 de Lisboa. Tinha 600 fogos (em 1757 apresentava 380).  O Orago é Nossa Senhora da Esperança, mas havia sido Nossa Senhora da Expectação. Bispado e Distrito Administrativo de Coimbra.

As religiosas de S. Bernardo, “do real mosteiro de Lorvão”, apresentavam o cura (anualmente) e este tinha 80$000 réis de rendimento – refere o Dicionário.

Acrescenta -se aí que esta freguesia, “posto ser um terreno acidentado” era “muito fértil.

“A aldeia é situada em um vale, dividido por um pequeno ribeiro, em cujas margens está também assente o famoso mosteiro.”

De salientar a referência à produção de palitos:

“Fazem-se n'esta freguesia anualmente três a quatro mil cruzados de palitos, para o reino e exportação. Crianças, adultos e velhos, trabalham nesta indústria, e faz pasmar a ligeireza e perfeição com que a executam.”

Segue-se um extenso historial do Mosteiro.

OLIVEIRA DE CUNHEDO

 Freguesia da província do Douro, concelho e comarca de Penacova, distrito administrativo e bispado de Coimbra. Orago: Santa Marinha.

A 30 quilómetros desta cidade e a 240 de Lisboa. Em 1757 tinha 91 fogos.

“Foi antigamente da comarca d'Arganil e do concelho de Farinha Podre. Depois passou para o concelho da Tábua, comarca de Midões, até que passou para o concelho de Penacova, da comarca de Coimbra.

Era o Prior de Penacova que “apresentava anualmente o Cura, que tinha 20$000 réis de côngrua e o pé de altar. É terra fértil.

O Dicionário destaca também o lugar da RAIVA, dizendo que era um aldeia da freguesia de Farinha Podre, no concelho de Penacova, comarca de Coimbra, distando 35 quilómetros desta cidade.

“Situada à beira do Mondego, em lugar bastante agradável, é o termo ordinário da navegação do Mondego, no Estio; mas no Inverno, enquanto há abundância de águas, vão os barcos até à Foz do Dão. Da Raiva, “em carros e em cargas se conduzem os objectos de comércio até ao centro da Beira Baixa.”

PARADELA

À época, Paradela pertencia ao concelho de Arganil, bem como à Comarca desta mesma vila, depois de ter sido do concelho de Farinha Podre, entretanto extinto.

Dista 30 quilómetros de Coimbra e 210 de Lisboa. Tem 150 fogos. Em 1757 tinha apenas 80.

Orago: S. Sebastião, mártir. Bispado e Distrito Administrativo de Coimbra. “O vigário de S. Pedro de Farinha Podre apresentava o cura, que tinha 50$000 réis e o pé de altar.”

É terra fértil.

SAZES

A 18 quilómetros de Coimbra e a 220 de Lisboa. Tinha 220 fogos (em 1768 teria 160). Orago, Santo André, apóstolo. As “freiras bernardas” de Lorvão, e a Sé Apostólica, apresentavam o prior, que tinha 190$000 réis de rendimento.

O dicionário destaca que  “para a diferençar da freguesia seguinte [Sazes da Beira], se diz Sazes de Lorvão."

“É povoação muito antiga, mesmo como paróquia. Em 1152, D. João d'Anaya, bispo de Coimbra, e seu cabido, confirmaram a D. Pedro Gavino e sua mulher, D. Ero Nunes, a doação e liberdade da terça pontifical que a igreja de Sazes lhes tinha feito”, mas “com a proibição de testarem esta terça a qualquer mosteiro ou convento, que não fosse a sua catedral, sob pena de tornar a dita terça para a Sé de Coimbra.”

À semelhança da maioria das terras do concelho, também Sazes  é tido como “ terra fértil”.


[1] Simões de Castro escreveu no seu “Guia histórico do viajante no Bussaco” que “Grisley, insigne herbolário italiano, em um Tratado que da matéria compôs, afirma que, havendo peregrinado a maior parte da Europa, encontrara na serra do Bussaco quási todas as ervas que descreve Laguna sobre Dioscórides, com a excelência de serem vigorosas, sobre as que a herbolária conhece.”

20 janeiro 2022

Conto: A Bela Carvoeira

Administrada por Ulisses Baptista a página do facebook "CARVOEIRA TERRA AMIGA" tem vindo a publicar excelentes apontamentos sobre esta localidade da freguesia de Penacova. Com autorização do autor (como não poderia deixar de ser) publicamos o conto "BELA CARVOEIRA"



A BELA CARVOEIRA

(Conto)

Ulisses Baptista

- Acorda, homem! O teu irmão desespera. Há quanto tempo te chamo, António?
- Ó avó, perdoe-me! Há quanto tempo aqui estou assim?
- Não sei, filho. Essas reuniões com os homens da vila andam a fazer-te mal.
- Não é nada avó.
- Preciso de falar contigo, depois. É coisa séria. Ouviste?
- Está bem, pronto, já sei, avó.

António levantou a cabeça de cima da mesa. Estava a cabecear depois de ter permanecido num sono profundo. Perturbado, pela responsabilidade de ter de ir auxiliar o irmão, levantou-se num repente, pensando em como se havia deixado estar ali naquele propósito. Pegou um pedaço de pão de cima da mesa e saiu porta fora a correr em direção ao rio.
- Até mais, avó, falamos melhor quando regressar.
- Vai com Deus, meu filho. Deus vos abençoe!
Pedro Tomás tinha a barca atracada no Porto da Carvoeira. Trazia sal e pescado. Sardinha ainda fresca, em sal, e bacalhau salgado que chegara da Figueira da Foz. Pedro pediu às mulheres que se encontravam em terra para se aproximarem.
- Levem estas duas cestinhas, foi o que pude arranjar.
As mulheres obedeceram, aproximando-se.
- Homessa, o inverno irá ser duro! -disse a mais velha.
- O trigo é escasso e o vinho este ano é fraco. Chuva a mais, não ajuda a guardar nada. Digam ao António para vir, ele já cá deveria estar. A Foz do Alva espera-nos e temos ainda que carregar a barca. Amanhã partiremos cedo.
Pedro estava distraído a enrolar as cordas e dar alguma ordem ao convés quando António chegou. O barulho de passos próximos fez Pedro desviar a atenção.
- Pareces preocupado! Que te apoquenta? -dirigindo-se ao irmão recém chegado.
- Cansaço apenas. Preciso de um pouco de vinho.
Pedro tirou o espicho à pequena vasilha de madeira e serviu uma malga de vinho ao irmão.
- Não está muito fresco, mas bebe-se.
António provou o vinho fazendo uma careta:
- Podes beber o resto. Não quero mais.
- Não estou a reconhecer-te!
- Está quente, não gosto de vinho quente. Já é fraco. Espero que dure até termos vinho novo.
- Preocupa-me mais o pão. Há pouco centeio. O trigo já vem todo de fora, mas é muito caro no mercado. Não se pode comprar.
- Temos que seguir rio acima. Vamos falando enquanto navegamos. Temos muito que falar.
- É tudo cansaço, homem de Deus?
-Não, é fome, mesmo, e a cabeça tonta do que ouvi, mas preciso contar-te um segredo.
- Novidades? Nunca tiveste segredos comigo. Que segredo é esse?
-Temos agora 35 anos, fazemos diferença de 3 meses, mas nunca questionámos isso.
- Não. Realmente, algo não bate certo.
- Ontem tive uma conversa com a tua avó.
Pedro olhou de soslaio para António, nunca ouvira o irmão referir-se assim à avó de ambos.
- A minha avó e a tua, não?
- Que pensas sobre o nome do lugar?
- Está bem. Há aqui carvoeiros.
- Mas não são assim tantos, há outros ofícios. E os carvoeiros também são camponeses. -retorquiu António.
- Parecemos fidalgos a falar. Deixa-te dessas conversas.
- Bem, a verdade é que os fidalgos parecem gostar muito destas paragens. Eu não sou teu irmão. -disse António, bruscamente.
-Estás parvo. Que conversa é essa?
- É o segredo que te queria contar.
- De quem és filho, então?
- Sou filho de um fidalgo e de uma carvoeira, que, na verdade, nunca o foi.
- E quem te contou isso?
- A tua avó Ana, já te disse. Assim mo contou ela:
" A tua mãe era a mulher mais linda do povoado, morria de amores por um fidalgo que aqui costumava vir às terras de Penacova, mas que se perdia muito por aqui, porque, um dia, meteu os olhos em cima dela, e nunca mais descansou enquanto não a desencaminhou. Para falar a verdade ela também não descansou enquanto ele a não desencaminhou. D. Nuno Mendes Godinho era capitão de ordenanças da casa dos Ataídes, e desde 1421 que as terras de Penacova pertenciam a essa família dos Ataídes, uma gente abastada que também conspirou contra o rei D. João II. Como sabes, o senhor de Penacova é agora Afonso de Noronha, quarto Conde de Odemira, por se ter casado com D. Maria Ataíde, há uma meia dúzia de anos. Afonso de Noronha era filho de Sancho de Noronha, terceiro Conde de Odemira, amigo íntimo e parente de um navegador genovês que esteve a viver no reino alguns anos. O mesmo que dizem que descobriu as Índias Ocidentais. Muitos dessas famílias e de outras da nobreza fugiram para Castela e deram guarida ao dito navegador. Não sei como, este senhor que se encantou com a tua mãe, contava-lhe muitas destas coisas, em segredo. Ele dizia-lhe que temia pela morte, depois do rei D. João II ter descoberto que conspiravam contra ele. Poucos meses antes de tu nasceres, ele nunca mais cá apareceu. Ninguém sabe ao certo se ele foi preso, morto ou também fugiu para Castela. O que toda a gente sabe é que o rei D. João II teve sempre a nobreza debaixo de olho e nunca perdoou o que lhe fizeram, muito menos que os maiores nobres portugueses se tenham acolhido junto dos reis de Castela e tenham partilhado, com eles, os melhores conhecimentos e instrumentos de marear."
- António, isso parece uma história do arco-da-velha. Mas acredito na avó. Porque nunca ninguém nos falou nisso?
- Parece que tiveram medo das consequências. Tinham medo que pudéssemos sofrer represálias. Por isso, adotaram-me como se fosse da família, depois da minha mãe ter morrido quando me pariu.
- O rei D. João II foi um rei justo, todos sabemos. O povo e os mercadores costumam lembrar que só queria o bem da nação. Pena ter morrido novo. - disse Pedro a António.
- Sabes que não ligo muito a essas coisas, não sabes? Acho que nós só existimos para trabalhar para eles, é o que eu acho.
- Não achas também que estas terras que estão em baldio já deveriam estar preparadas para cultivo do tal milho grosso que veio das Índias?
- Acho que sim, e tenho feito pressão para isso junto dos representantes do concelho. Parece que na parte baixa do reino há já campos cheios deste novo cereal. - lembrou António.
- Pelo que se vê, pode ser uma boa ajuda para matar a fome ao povo e ao gado, e há mesmo quem use partes da planta para encher almofadas e colchões.
- Que é uma cultura mais rápida no desenlace, mas um pouco mais necessitada de acompanhamento, isso parece ser também verdade.
- O trabalho é o menos. Se houver o que comer, o povo trabalha. Estamos em Agosto, há carência de trigo, resta-nos, por agora, o centeio e a cevada. O carroceiro Manuel contou-me que há muita fome por lá para a terra dele.
- Por vezes, desespero, Pedro, a vontade que dá é abandonar as terras e ir trabalhar para a urbe. Os terrenos que estão à beira rio só têm servido para pastagens no Verão, por serem muito alagadiços no Inverno. As casas senhoriais continuam a chamar a si essas terras, e é preciso continuar as obras para impedir a passagem de tanta água e o assoreamento.
- Penso que nunca vamos poder usá-las para trigo ou centeio, mas podiam bem servir para o milho grosso. Dizem que esta cultura parece pedir, no tempo quente, muita água, especialmente nos anos mais agrestes.
- Espero que o concelho também se possa desenvolver mais a esse nível. Ainda assim, o esforço maior é sempre do povo. Somos nós que temos de trabalhar quase de graça para eles.
- Deixa-te de política, por agora, e conta lá o que disse mais a avó. Seja como for, não vou deixar de ser teu irmão só por causa disso.
- Nem eu, muito menos. A avó Ana é como se fosse nossa mãe. Ela conhece-nos tão bem. Quando me contou o início fiquei espantado. Aguarda para ouvires o resto:
"D. Nuno Mendes Godinho conheceu a tua mãe, ainda moça, e logo se encantou pela sua figura. Quando chegava perto do povoado, prendia o cavalo, junto à Ermida, num dos dois ciprestes; deixava que o cavalo matasse a sede no bebedouro de pedra e aguardava pela descida das lavadeiras. Quase sempre via a filha do carvoeiro, como era conhecida no povoado. Maria era bela como ele nunca vira beleza igual. Apesar de plebeia, sabia cuidar-se muito bem. Ao entardecer, já lusco fusco, gostava de sentir a água morna do Mondego, no tempo quente, a cair suavemente sobre si, o cabelo escuro, solto e molhado a delinear a curva dos seios, enquanto se aninhava, de cócaras, alagada de água até à cintura. Quase não havia dia que não cumprisse o seu ritual, que era também o ritual de muitas outras mulheres, embora não com a frequência que ela o fazia. Era recatada ao ponto de escolher sempre um local diferente para se furtar aos olhares curiosos, apesar dos mancebos se juntarem, à coca, atrás da vegetação.
Maria era bem torneada, duma elegância desconcertante; trigueira, habituada a ter o sol na pele, fruto do seu contacto com o campo e acostumada às lides domésticas, mas livre para decidir por si o que fazer. O mais triste é que, com ela, aconteceu o mesmo que acontecera à sua mãe, que também morrera quando a dera à luz. Parecia uma maldição. O marido permaneceu num luto amargo, durante mais de uma década, embora sempre preocupado de o esconder da filha, a bela Maria, uma encarnação da mulher, que fora a luz dos seus olhos. Era um pai amável, incapaz de lhe falar com modos graves, mas protetor, e até achava graça aos seus costumes. Chegou a dizer, algumas vezes, a quem lhe falava na filha, que era tão bela que temia um dia que fosse levada por um burguês ou um fidalgo.
E um dia aconteceu que se cruzaram com o olhar. Aqueles olhos amendoados enfeitiçaram o fidalgo. Ela pensava, em segredo, como seria se ele a levasse a cavalgar no seu cavalo; sempre sonhara na liberdade de percorrer os caminhos em torno do lugar, com os cabelos escuros e sedosos ao vento. Costumavam falar às escondidas, apesar de os olhares curiosos os surpreenderem muitas vezes. Eles disfarçavam sempre, e pensavam que ninguém sabia verdadeiramente que estavam enamorados. Um dia fez-lhe uma proposta. Ele sabia que era perigoso ser visto com uma plebeia, mas a sua beleza enlouquecia-o. Maria apaixonou-se pelo seu príncipe e ele chamava à sua donzela, «a bela carvoeira»:
- Queres andar comigo a cavalo? - perguntou D. Nuno a Maria.
- Não. Acho que não estou preparada, disse-lhe Maria com ar trocista.
- Porquê?
- Não sei. Tenho medo.
- Medo de quê, de mim?
- Não. Acho que não és capaz de me fazer mal. - desafiou, Maria, com um sorriso.
- Então, monta. És capaz?
Ela, com uma agilidade de o deixar de boca aberta, montou para o cavalo, atrás das costas de D. Nuno, e agarrou-se a ele com força.
- Estás preparado? Eu estou pronta.
- Segura-te bem!"
Pedro estava surpreendido ao ouvir o irmão contar-lhe o que a avó lhe contara a ele mesmo. Nunca imaginara que ele pudesse ter sangue nobre. A viagem rumo a cima, à Foz do Alva, correra sem sobressaltos. Tinham sido ajudados a descarregar o sal por dois homens do comprador. A barca vazia deslocava-se agora rio abaixo, com fluidez.
- Imaginas o que aconteceu a seguir, não imaginas? - perguntou António.
- A tua mãe casou às escondidas com o fidalgo.
- Achas isso possível? A vida esquentou para eles, mas não a esse ponto.
- Quanto tempo conseguiram viver aquela história de puro amor?
- A avó não sabe ao certo, mas ele engravidou-a pouco tempo depois do primeiro encontro a sério; ele gostava muito também era de conversar com ela, como me contou a avó:
" António, acredita que a tua mãe deve ter conversado muito com este fidalgo; para além de tudo o mais que eles fizeram, mal ou bem feito, eram verdadeiros confidentes um do outro. Ela contou-me estas coisas todas nos últimos meses de gravidez. Implorou-me que a ajudasse e que não deixasse que ninguém te tirasse, nem do ventre, nem depois de nasceres. Tinha escolhido o mesmo nome do pai para te dar quando nascesses. Só te não pusemos esse nome para te proteger.
Como já te disse, depois das conspirações contra D. João II , muitos dos nobres envolvidos, bem como os seus cúmplices, foram mortos ou presos, enquanto aqueles que escaparam procuravam refúgio em Sevilha, ao abrigo da corte castelhana.
A indústria naval precisava de muita madeira e muitas terras do reino estavam a ser exploradas para esse fim. As terras de Penacova tiveram a mesma sorte, e como sabes, ainda hoje é pior.
As cortes querem continuar a viver sempre de forma rica e faustosa, enquanto a população empobrece, com um Império para manter. Mas, como bem sabes, D. Manuel I passou a governar tentando percorrer o mesmo caminho trilhado pelo seu primo e cunhado, que tirara inúmeras regalias à nobreza. A morte de D. João II, em 1495, e a do seu filho Afonso, quatro anos antes, que seria o seu sucessor legítimo, foram vistas como suspeitas. D. Afonso teria sido um sério candidato a governar também a coroa de Castela, uma vez que aquela estava, na altura, a atravessar uma crise de sucessão, e o jovem príncipe havia casado com a herdeira do trono de Castela, D. Isabel.
Ao contrário de seu pai, D. Afonso V, D. João II exercera o seu reinado com pulso de ferro. D. Afonso V, concedera enormes regalias à alta nobreza, teve um reinado bastante longo em que a nobreza se sentiu adulada e privilegiada. Este rei governou alimentando sonhos de expansão, idolatrando e beneficiando também o alto clero. Parece ter ignorado que o mundo estava em mudança, sem dar grande valor ao desenvolvimento mercantil e à modernização que se fazia sentir e que estava a mudar o modo de vida e de pensar das pessoas. Para ele, o esforço feito pelos portugueses nas suas viagens marítimas só poderiam fazer sentido se se cumprissem as suas ilusões fabulosas. Por seu lado, o filho, D. João II, viera a governar de forma arguta e inteligente, pretendendo orientar o reino para a modernidade. Aqueles que não lhe quiseram seguir os passos foram avisados. Entre os seus mais diretos adversários estavam os membros das famílias nobres mais importantes do reino. Quando o rei descobriu a primeira conspiração, mandou cortar a cabeça ao duque de Bragança, cuja família era a mais interessada em tirar D. João II do trono. Na segunda conspiração, poucos meses depois, o principal mentor era o seu primo e cunhado, D. Diogo, duque de Viseu. D. João II queria que o reino se desenvolvesse e, para tal, era necessário conceder direitos aos representantes dos concelhos, sempre com a supervisão do poder central. Era necessário modernizar o reino e continuar a campanha de comercialização com outros povos longínquos, através das novas rotas comerciais marítimas. Quando D. Manuel I chegou ao poder, após a morte do cunhado e primo, embora tentasse continuar com algumas das políticas do anterior governante, apoiou o regresso da maioria dos nobres que tinham estado exilados, e restitui-lhes as terras e os títulos que haviam perdido. Foi um rei que continuou a apoiar a expansão marítima e concedeu forais novos a muitas cidades e vilas, entre as quais, Penacova, em 1514. Foi fruto disso que a região, especialmente nas zonas ribeirinhas, também se começou a desenvolver, tendo começado a ser edificadas obras de reabilitação dos terrenos marginais ao rio Mondego.
Tu nasceste em 1483 e o teu pai nunca mais foi visto por aqui. É natural que tenha sido apanhado pela argúcia de D. João II, e tenha levado por tabela. D. João II era um rei sem medo, que não teve qualquer problema em apunhalar com as próprias mãos o Duque de Viseu. Apesar de algumas das mais altas figuras da nobreza o terem traído, ele descobriu em pouco tempo quem o quis prejudicar porque tinha também homens fortes do lado dele. Na altura todo o reino soube do sucedido e a sua coragem e lealdade ao reino, bem como a sua responsabilidade, para com os seus súbditos, foram muito faladas.
O teu pai pôde muito bem ter sido apanhado nas malhas do poder de D. João II. Só Deus sabe o que ele também teria andado a tramar para isso ter acontecido. Ou até talvez ele possa ter sido vítima por estar do lado errado. Mas a tua mãe manteve sempre uma grande esperança nas promessas e nas palavras de D. Nuno. Ela era ainda jovem quando tu nasceste, tinha acabado de fazer 18 anos. Ele parecia uns anos mais velho. Talvez tivesse mais 10 anos do que ela, mas tinha uma figura imponente e elegante. Acho que ela se apaixonou por ele assim que o viu."
- É uma história triste, irmão! A tua mãe não teve grande sorte, mas viveu a vida intensamente.
- Concordo contigo. E o que tiramos da vida é mesmo isso, vivê-la intensamente.
- E nós? Vamos para Coimbra logo cedo?
- Acho que é melhor não deixar aqui a barca carregada muito tempo. Dormimos duas ou três horas e partimos.
António e Pedro haviam acabado de carregar a barca com a ajuda das mulheres que, durante o dia, tinham também estado a transportar lenha, à cabeça, para o Porto do rio, embora a maioria tivesse chegado de carro de bois. Era um trabalho árduo e esgotante.
Partiram pela madrugada, depois de terem dormido algumas horas na própria barca. Estava uma noite amena, mas com uma leve brisa de vento frio e inconstante, que criava arrepios ocasionais. Só ouviram os galos a cantar já ao passar a Rebordosa, ainda fazia muito escuro.
António ia ao leme quase sonolento, havia largos minutos que sentia uma força enorme a baixar-lhe as pálpebras.
O irmão gritou por ele no meio da escuridão da noite: - António, quero-te ao leme, irmão!
O murmúrio da água a correr foi a única resposta.
- ANTÓNIO, OLHA O LEME!
António não reagiu a tempo, o estrondo da barca, a partir-se em duas contra o penedo bicudo, fê-lo reagir automaticamente e ele sentiu os braços fortes de pedra a jogá-lo borda fora, enquanto embatia com estrondo com a cabeça na água fria, a dor aguda a fazê-lo acordar, definitivamente, ensopado em água.
- Então meu filho, estás melhor? - perguntou-lhe a avó, preocupada.
- Acho que as febres baixaram, mas dói-me a cabeça. Parece que levei um coice de uma mula.
- As cataplasmas de salgueiro devem ter-te feito bem. Espero que fiques bom depressa.
- E a Maria, avó, e o menino?
- Não te preocupes, meu filho, estão bem. É melhor não virem à tua beira. Ainda é cedo. Logo hão-de vir aqui perto da porta para te falar. O teu irmão é que passou há pouco, ainda gritou duas vezes por ti, dali da porta, mas estavas ainda a dormir e parecias bastante agitado, e eu disse-lhe que era melhor passar depois.
- Fez bem avó, tive um sonho terrível.
- Bem me pareceu, pelo tua aflição a respirar.
- Avó, é verdade que a nossa terra se chama assim por causa da minha mãe?
- É verdade, sim. A tua mãe era muito bela e o povo costumava dizer que vinha à terra da carvoeira. Daí passou a dizer apenas que vinha à carvoeira, e o hábito pegou.
- Então e os cravos nas lousas às janelas, não contribuíram para nada?
- Contribuíram para alindar a aldeia toda, porque a tua mãe era muito extremosa nesse gosto de ter sempre cravos bonitos. Foi ela que levou toda a gente a querer enfeitar assim as casas.
- Sabe que sonhei que o meu irmão era Tomás e que nós não éramos irmãos. Que éramos quase da mesma idade. E que eu tinha sido adotado pela família dele.
- Mas tu e ele são bem Godinhos.
- Eu sei avó. Mas nos sonhos tudo é possível. Aquele fidalgo que vinha aí à terra antigamente não se chamava D. Nuno?
- Sim. Mas não mais foi visto por aí.
- No meu sonho, ele era meu pai e a minha mãe era uma rapariga muito bonita da aldeia, filha do meu pai.
A avó de António soltou uma risada meio abafada.
- Bem, na verdade, esse fidalgo quis um dia dar conversa à tua mãe, mas o teu pai era um calmeirão que impunha respeito e era bastante ciumento. Só a presença dele já assustava qualquer um que se atrevesse sequer a aproximar dela. Infelizmente, não conheceste a tua mãe. Foste aleitado por outra mulher e criado por nós.
- E o antigo nome da aldeia, Vila Nova dos laranjais, donde provém?
- Ah, isso é outra história. Mas é melhor descansares, agora. Ainda estás muito fraco. Bebe esta água de freixo morna para te baixar mais as febres. Esse assunto fica para outra altura.
Fim
Carvoeira, terra amiga.

12 janeiro 2022

Penacova no “Portugal Antigo e Moderno” [1]: as terras de Farinha Podre


Pinho Leal (Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal) foi um militar português que ficou conhecido pela publicação (entre 1873 e 1890) de uma extensa obra em 12 volumes intitulada «Portugal Antigo e Moderno». De acordo com o subtítulo, trata-se de um “dicionário geográfico, estatístico, corográfico, heráldico, arqueológico, histórico, biográfico e etimológico de todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal.”

É nesta obra de finais do século XIX que podemos encontrar muitas referências às principais localidades que actualmente fazem parte do concelho de Penacova.

Por hoje, vamos fazer referência à vila de Farinha Podre e às localidades de Travanca e de S. Paio que, recorde-se, estavam integradas à época na província do Douro, pertencendo já ao Bispado e Distrito Administrativo de Coimbra.

FARINHA PODRE

Farinha Podre pertencia ao concelho e comarca de Penacova (depois de ter pertencido à Comarca de Arganil). Sobre a sua localização geográfica é referido que se situa a “220 quilómetros ao N. de Lisboa”, que dista “30 quilómetros de Coimbra” e que “está a 6 quilómetros da margem esquerda do Mondego e 5 do rio Alva.”

Pinho Leal diz que a vila tinha 470 fogos e 1900 habitantes (almas) e recorda que em 1757 tinha apenas 318.

Podemos ler igualmente que “a igreja matriz de Farinha Podre é vasta e sumptuosa. Consta ter sido fundada pelos templários”. O orago é S. Pedro, Apóstolo. Era o “real padroado” que “apresentava o vigário” (isto é, que o nomeava), tendo este 180$000 réis de rendimento anual.

Refere-se também que Farinha Podre “é terra fértil em quase todos os frutos do nosso país e os seus habitantes são muito dados ao negócio de aguardente (de que há aqui 4 fábricas), azeite, vinho, trigo, milho, batatas e vinho, que transportam, pelo Mondego, para várias localidades.”

Farinha Podre - que “nunca teve foral” - foi concelho “que se suprimiu em 1855” e tinha à data 1500 fogos. Este “pequeno concelho” era formado por “frações dos (à época) concelhos de Coimbra, Penacova e dos extintos de Ázere, Óvoa, Pombeiro e Sanguinheda.

Curiosamente, encontramos um dado que é pouco conhecido: Pinho Leal salienta que também a “pequena freguesia de Paço Velho, que apenas tinha 27 fogos”, e que fora,” há muitos anos, suprimida” fazia de igual modo parte do concelho de Farinha Podre.

TRAVANCA DE FARINHA PODRE

Outra freguesia, contígua à de Farinha Podre, era a freguesia de Travanca, pertencente ao concelho de “Pena Cova” do qual distava 12 quilómetros. Travanca pertencia à comarca da Tábua (antiga comarca de Midões).

Refere Pinho Leal que Travanca se situa a 235 quilómetros “ao N. de Lisboa” e a 30 quilómetros “a E. de Coimbra” distando 24 da Lousã, 18 de Arganil e de Santa Comba Dão e 12 de Santo André de Poiares, de Tábua e de Mortágua.

Travanca tinha 125 fogos (em 1768 tinha 65). O Orago é “S. Thiago, apóstolo”. Pertencia também ao bispado e distrito administrativo de Coimbra.

Esclarece o dicionário que Travanca “quando pertenceu ao concelho de Farinha Podre, era da comarca d'Arganil, depois (em 1855) ficou pertencendo ao concelho da Tábua. Pela mudança da sede da comarca de Midões, passou para o concelho de Penacova e comarca de Tábua.”

Era a Sé Apostólica e o Bispo que apresentavam, alternadamente, o prior que tinha 220$000 réis de rendimento anual.

Esclarece-se que a localidade se chama “Travanca de Farinha Podre” porque “está próxima à pequena vila de Farinha Podre, que foi cabeça de um concelho, criado por decreto de 6 de novembro de 1836 e suprimido a 24 de outubro de 1855”.

S. PAIO DE FARINHA PODRE

Por último, temos S. Paio de Farinha Podre, à época pertencente à comarca e concelho de Tábua. Situava-se a “30 quilómetros de Coimbra e 230 ao N. de Lisboa”.

Pertencera ao concelho de Farinha Podre “que foi suprimido em 1855 e era então da comarca de Arganil.” Refere-se ainda que “o vigário da vila de Farinha Podre (S. Pedro) apresentava o cura, que tinha de rendimento 10$500 réis e “o pé d'altar”. Em 1757 tinha 90 fogos e 110 à data da publicação do dicionário. O orago era, naturalmente, S. Paio.

31 dezembro 2021

Nos 120 anos de Nemésio: alguns escritos menos conhecidos sobre Penacova



Nemésio referiu-se a Penacova não apenas nos textos que geralmente são evocados quando se pretende estabelecer a ligação do escritor ao nosso concelho, mas também noutras obras menos citadas. Como sabemos, escreveu sobre os moinhos de vento e sobre lugares e pessoas da nossa região nas crónicas “O Cavalo e a Serra”, “O Velho Domingos” e “Outono no Buçaco” que fazem parte do livro Viagens ao Pé da Porta (1965). Muito conhecida é também a sua alusão a Penacova no Guia de Portugal. No entanto, igualmente na obra O Retrato do Semeador, publicada em 1958, Vitorino Nemésio escreve sobre Penacova, mais concretamente sobre Lorvão. 

Vejamos alguns excertos da crónica datada de 22 de Abril de 1954, onde aborda a decadência do Mosteiro.

Em todos nós ainda ecoa o brado lançado por Herculano há quase cem anos em favor das pobres mulheres recolhidas, à sombra da mole de pedra que os séculos foram reformando ao sabor dos seus gostos, recursos e necessidades, até tomar no século XVIII a forma acaçapada, mas ainda grandiosa que hoje tem.

Herculano que lançara em anos verdes a célebre fórmula cominatória do “camartelo municipal “demolidor de monumentos, não se queixava então de delapidações estéticas, mas do puro abandono de um punhado de mulheres religiosas e inválidas que tinham de esmolar o sustento e de fugir às beiras do asilo, abertas nos tectos desmanchados.

Era uma das muitas consequências do brusco volta-face histórico que, tendo de pôr cobro à desviada e hipertrófica vida conventual do país, acabou por exterminar toda e qualquer forma de existência monástica.

A traça atual de Lorvão está longe de exprimir a espiritualidade beneditina que muito antes de finda a primeira metade do século VIII elegeu aquele retiro entre pinhais e tojos bravios.

Boa parte da história das nossas instituições medievais tem de ser feita pelo tombo de Lorvão escapo à incúria moderna. […] E ainda hoje se podem ver no Museu de arte Sacra de Coimbra, a vetusta cadeira abacial, uma pedra de ara renascente, um pontifical de brocado, um relicário dos Mártires de Marrocos e outros testemunhos vivos de um Lorvão, que no seu sítio, só tem uma linguagem de lajes e de matos sem lanhos desses tempos.

Noutro texto intitulado "A Sombra dos Conventos", de 9 de Abril 1952, deparamo-nos com a descrição do caminho para Lorvão, pela Serra do Dianteiro:

De Coimbra […] deito à velha Lorvão há quase mil anos suplantada por essa mesma Coimbra […]. São 14 quilómetros de pinhal ralo e de urze, nos cocurutos do Dianteiro. Passo pequenas póvoas entanguidas na serra, do florestal Picoto, pelo Casal do Lobo e o Roxo, até para lá da Aveleira. É a cordinha de aldeias que fornece de lenha esquelética os fornos da douta Coimbra. De repente, encovada nos montes, austera, maciça, retelhada, surge a mole do mosteiro.

Evoca também os gloriosos tempos do mosteiro, a par das vicissitudes materiais e humanas por que passou a instituição:

Mas nada daquilo é já o habitáculo que albergou a Rainha Tareja de Leão, neta de D. Afonso Henriques, a Infanta D. Branca que Garrett cantou em verso branco e a D. Maria Brandão do magoado Crisfal.

Muito menos acodem as linhas do mosteiro beneditino que Frei Bernardo de Brito dizia coevo do monge do Monte Cassino[1] e que os mais recuados papiros da Hispânia decoram do nome “laurbanense”.

Aquelas poderosas fiadas de cantaria fenestrada foram niveladas ali por pedreiros do século XVIII, sendo abadessa do mosteiro D. Teófila de Alvim. Os serviços prestados pelos bentos na tomada de Coimbra por Sesnando em 1064 foram apagados num século por turbulências suas ou desmandos profanos na Regra.

Transformado em refúgio de donas e donzelas de prol pela filha de Sancho I, Lorvão até mudou de obediência.

A S. Bento sucedeu S. Bernardo, que os padrinhos cistercienses dos nossos primeiros reis tinham favorecido aqui e que Herculano foi encontrar vestido de casaca nos altares!


Fala depois do triste fim das freiras, da visita de Herculano a Lorvão e à vila de Penacova (1853) e da carta que este dirigiu ao Governo de então:

Assim, a alma do mosteiro antiquíssimo escondeu-se doída e bárbara no mínio[2] do Apocalipse, o códice precioso que as esbulhadas freiras de 1853 ofereceram a Herculano quando depois da sua visita a Lorvão em Julho daquele ano, o poeta de O Mosteiro Deserto protestou contra a mísera situação daquelas pobres mulheres, na célebre carta a António de Serpa Pimentel publicada no Periódico dos Pobres. O governo consignou-lhes 600$000 réis por ano em porções côngruas a descontar até à morte da última […]

O nosso itinerário repete em solidão e aspereza de trilhos a jornada do historiador há noventa e oito anos. São os mesmos outeiros “acumulados uns aos outros”, as mesmas pequenas culturas forçadas pelo mateiro do rapão. Herculano, ante a surpresa do convento ao fundo da bacia de Lorvão, hesita em comparar o vale ao cálice de um lírio, e manda “ver uma flor que tenha um pistilo grosso e curto”, flor com um lado rasgado, que dá escoante às águas.


Chegado a 15 de Julho, a 16 compulsou os documentos do arquivo, visitou o mosteiro por dentro, deu um romântico passeio ao pôr -do -sol pelas encostas; e anota no canhenho, percorrendo a cerca interior: “ os hortejos ou jardinzinhos das freiras defuntas cobertos de urzes: impressão que deve produzir nas freiras vivas”.


Talvez menos triste do que nele, que, mal chegara, gizou mentalmente a comovido artigo que havia de arrancar ao estado os 600$000 réis por ano-doze contos de hoje, pouco mais, para a pitança das pobrinhas [...] Mas que arranque e poder tinha um escritor há cem anos!

A 17 de julho juntavam-se a Herculano o Dr. Ferrer, lente de Direito em Coimbra, e o Dr. Joaquim Correia de Almeida, administrador de Penacova. [...]


Vitorino Nemésio transcreve agora o que Herculano anotara no seu diário: ”Julho 17, Domingo. Chegada do Ferrer e do Correia. A missa. As freiras no coro. As despedidas. Saudades de Lorvão. Viagem para Penacova, caminhos impérvios pelas encostas dos montes.”

“Os sete quilómetros, porém, que deitam de Lorvão a Penacova, não exigiriam tanto; e do convento a Sernelha, Figueira, Telhado, enfim ao alto camarote de penhas sobre a garganta do Mondego, então quase sem água, as emoções da abalada não dariam tempo a sentir os pés doridos da marcha.– comenta Nemésio.

[1] Onde está sepultado S. Bento, nota nossa
[2] Óxido salino de chumbo; vermelhão, zarcão.




14 dezembro 2021

Lorvão: do Museu de 1921 ao Centro Interpretativo de 2021




Acabamos de ler na página do Facebook do Município de Penacova que "a ideia de criação de um espaço museológico que permita divulgar o riquíssimo acervo patrimonial do Mosteiro faz precisamente cem anos, tendo tido origem na Junta de Freguesia de Lorvão."

Viajando um pouco na história, concluímos que, de facto, a criação de um museu de arte em Lorvão foi anunciada em Maio de 1921, sob a responsabilidade da Junta de Paróquia local.

O museu ficaria instalado numa sala do edifício do Mosteiro integrando o valioso património que ainda existia e que fora confiado àquela Junta. Património diminuto, comparado com o que um século antes existira. Depois da extinção das ordens religiosas muitos bens foram ou transferidos para organismos do Estado ou leiloados, beneficiando a maior parte das vezes interesses particulares. Outros foram, literalmente, roubados.

As boas intenções das gentes de Lorvão no sentido da conservação do próprio Mosteiro e da salvaguarda do seu acervo foram, desde o início, alvo de acesa polémica. O Conselho de Arte e Arqueologia tentou mesmo, por via legal, impedir a sua concretização. Também o director do Museu Machado de Castro não escondia, à época,  a intenção de incorporar nos museus nacionais os bens das ordens religiosas extintas.

Recorde-se que por volta de 1920 o sacristão da igreja foi subtraindo, durante mais de um ano, uma valiosa coleção de objectos de arte religiosa que ia vendendo a particulares e colocando nas casas de penhores da cidade de Coimbra. Descoberto e preso o seu autor em finais de 1920 a polícia conseguiu recuperar a maior parte do acervo desaparecido. Foi nesse contexto que, entretanto, a Junta de Paróquia requereu que lhe fossem entregues os objectos roubados.

Conta-se que toda a região "desde Penacova ao Dianteiro, era um perfeito alfobre de antiguidades (...) sendo visitada com frequência por colecionadores e intermediários". O saque já vinha muito de trás. Escrevia "O Despertar" em 1920: "desde a extinção dos frades (1834) até à morte da última freira (1887) o Convento de Lorvão não deixou de ser saqueado pelos gatunos de todas as categorias, pelos próprios capelão e serventuário do convento e da igreja, eclesiásticos e seculares".

A entrada em Lorvão dos objectos recuperados ocorreu no dia 12 de Maio de 1921, com grande pompa, sendo expostos ao público no Domingo seguinte. O júbilo tinha a ver com a recuperação dos bens roubados, em geral, mas também com a luta vitoriosa travada pelo povo de Lorvão no sentido do regresso à origem daquelas preciosidades, contra aqueles que defendiam a sua cedência ao Museu Machado de Castro.

Finalmente, em 10 de Julho do mesmo ano, foi aberto ao público o Museu de Lorvão. Não deixando de se reconhecer que muitos objectos já estavam irremediavelmente na posse de museus de Coimbra e de Lisboa, esperava-se, mesmo assim, que o número de visitantes ao mosteiro aumentasse significativamente. A criação oficial do "Museu Regional e Paroquial de Lorvão" só se concretizou no dia 1 de Julho de 1923.

O Museu foi sobrevivendo, mas as aspirações de conservação e salvaguarda e de atração turística foram ficando pelo caminho. Sem meios técnicos, sem uma rede de estruturas de apoio, acabou por definhar, à semelhança do que aconteceu com a maioria dos museus locais em Portugal.

Em 1981, o Dr. Henrique Coutinho Gouveia defendeu que "a eventual revitalização do Museu [de Lorvão] terá de precedida de uma profunda reestruturação que, ampliando-o, acabe por promover o aproveitamento museológico do próprio Mosteiro, assinalando-lhe como um dos principais objectivos o de vir a proporcionar a compreensão da sua influência na história local e das profundas relações que se estabeleceram com o povoado vizinho. Viria a assumir então um papel de espelho da região, passando a actuar eficazmente na preservação e divulgação do respectivo património e fazendo-se inclusive eco dos seus principais problemas e aspirações (...). "

Adianta a referida página do Facebook que "o executivo municipal deu luz verde ao projeto que permitirá criar o Centro Interpretativo do Mosteiro cisterciense de Lorvão, uma obra inacabada há muitos anos."

11 dezembro 2021

Terras de "Pena Cova" no final do séc. XVII

 



O Promptuario das terras de Portugal com declaração das comarcas a que tocam tem a data de 1689. Trata-se de um manuscrito, actualmente à guarda da Biblioteca do Exército, elaborado por Vicente Ribeiro de Meireles, funcionário da Secretaria da Junta dos Três Estados.

O documento tem 364 páginas e no capítulo “Provedoria de Coimbra” vamos encontrar o nome de diversas localidades, hoje pertencentes ao concelho de Penacova, mas que nos finais do século XVII se encontravam dispersas por variadas circunscrições.

Assim, podemos ler: [grafia original]

 «A vila de Pena Cova de que é donatário o Duque de Cadaval tem ouvidor que faz as eleições, que confirma o Duque; e nesta villa não entra o corregedor da comarca; tem no termo os lugares seguintes: [sempre antecedidos do termo Aldeia]

Chão de Baixo, de Val Gonçallo, Gondelim, Carvalhal de Mansores, Vila Nova, Riba de Baixo, Riba de Cima, Ferradosa, Sanguinho, Felgar, Travasso, Roqueira, Carvoeira, Cazaes, Ervideira, Aboboreira, Aldeia Nova, Ferreira, Villa Cham, Lombada, Alveite Grande, Veade, Couchel, Branca, Pinheiro, Carvalhal de Laborins, Couço, Oliveira do Cunhedo, Venda Nova de Poyares, Pereiro de Baixo, Pereiro de Cima, Pereiro de Além, Crasto, Soutelo, Villar, Miro, Carregal, Val do Tronco, Paradella, Cortiça, Serfreu, Farinha Podre, Quintella, Silvarinho, Val da Vinha, Leborins, Ribeira, Beco, Paredes, Cunhedo, Almassa, Lagares, Travanca d’aquem e Travanca d’alem."

A Vila de Carvalho é da coroa, tem um juiz ordinário, vereadores e procurador que confirma o corregedor da comarca que entra nesta vila por correição; e no seu termo tem os lugares seguintes: 

Aldeia de Carvalho Velho, Aldeia de São Paulo, Aldeia de Carvalhais, Aldeia de Val de la Justa, Aldeia de Lourinhal e Aldeia de Penderada.

Note-se que a “aldeia” de Lorvão, "Figueiro" de Lorvão e Friúmes pertenciam, à época,  ao Termo de Coimbra.

Por sua vez, as aldeias de S. Paio, Cruz do Souto, Castinçal, Sobral, Parada e Val do Barco estavam afectas ao concelho de Óvoa

Este manuscrito refere ainda o Couto de Monte Redondo, nos seguintes termos:
 
“O Couto de Monte Redondo de que é donatária a Casa de Aveiro, tem um juiz ordinário, que confirma o corregedor da Comarca, e entra neste couto por correição, e o crime pertence ao juiz de fora de Coimbra.”

Observações:

Atente-se ao facto de se escrever Pena Cova, o que parece explicar que ainda hoje os penacovenses pronunciem Penacova com as duas tónicas “PE” e “CO”.

Outra curiosidade é “Travanca d’aquém” e “Travanca d’alem”. Ainda não há muitos anos as pessoas dali se referiam a um “Lugar de Além” como sendo a actual Portela. Terá a ver com a Travanca d’Alem?

Alguém saberá dizer onde ficava a aldeia de Chão de Baixo, no termo de Penacova? E “Cazaes”? Terá a ver com Casal?

“Roqueira”, a actual Ronqueira, teria a ver com “roca”?

“Figueiro” de Lorvão? O autor do manuscrito adverte para o facto de os nomes aqui escritos aparecerem por vezes «contra a boa pronunciação e ortografia», para “não se lhe mudar o som com que se nomeiam e são conhecidas”.

Como se verifica, ao termo de Penacova pertenciam muitas terras do actual concelho de Vila Nova de Poiares.

Quanto à actual freguesia de Sazes não conseguimos localizar, de momento, qualquer referência.