Paulo Figueiredo |
Os doentes do Lorvão e o café da D. Tila
Já não bastavam os politiqueiros apressadamente convertidos
aos modernos paradigmas da Saúde (e doença) Mental que, acerca do Hospital
Psiquiátrico do Lorvão (HPL), bramaram que “ não se podia chamar àquilo um
hospital” – apesar de nunca se terem informado do que lá se fazia.
Não bastavam os indivíduos denunciantes de uma pretensa
“acumulação de doentes sem os tentarem reabilitar” – mas que nunca foram ao
Lorvão, apesar de lhe terem apontado as “más condições climáticas”, seja lá
isso o que for.
Eis que vem agora o presidente da Fundação ADFP (Miranda do
Corvo), – para onde os doentes do sexo masculino (ex)residentes no Lorvão foram
conduzidos, num processo de trans-institucionalização (i.e, transitaram de uma
instituição para outra) – dizer que os doentes estariam “impedidos de uma vida
em contacto com a comunidade” e, que, ao contrário do que sucedia no Lorvão
(infere-se), “a ADFP aposta em cuidados dedicados aos doentes mentais graves
que apostem na humanização, no respeito e na dignidade da pessoa”, considerando
que “a segregação e a “guetização” são práticas condenáveis, que a ADFP
pretende contrariar, investindo nas pessoas, com bondade” (sic). Na mesma
notícia, o sr. presidente triunfantemente anuncia a efectivação, no passado dia
9 de Novembro, de uma acção terapêutica de grande importância : alguns doentes
saíram da instituição (onde chegaram em Julho, 4 meses atrás, pelo que se
depreende da demorada preparação desta acção anti-gueto) e … “foram de manhã ao
café da aldeia, ao café da D. Tila” !! Zelosamente acompanhados por uma
psicóloga e assistente social, imagine-se !! Alegremo-nos : este enorme e
“bondoso” benefício irá passar a ser realizado semanalmente.
Cada um é livre de se pôr em “bicos de pés” – o ridículo do
teor da notícia irá encarregar-se de o fazer cair. Mas não denegrindo uma
Instituição (e os seus trabalhadores) que durante muitos anos cuidou seriamente
dos seus doentes :
- É inumerável o rol de actividades sócio-ludo-terapêuticas
dirigidas aos seus doentes residentes pelo HPL. Meticulosamente planeadas, com
pré-definição dos objectivos e rigorosa avaliação posterior do seu alcance.
Documentadas em filmes e fotografias, para ver e comentar no dia seguinte em
reunião colectiva dos participantes, altura em que se debatia e votava o local
da próxima acção. Numerosíssimas idas à praia, às feiras, aos mercados – e que
lições retirámos da efusivamente risonha interacção entre as peixeiras da
Figueira da Foz e os doentes !! Sempre procurando diluir o estigma nas ruas,
nos restaurantes, nos transportes públicos. Mas espante-se, sr. presidente, com
os tortuosos caminhos da dita “guetização” promovida pelo Lorvão : semana de
férias anual, na praia, em locais como a Quinta da Fonte Quente (Tocha), na
Figueira da Foz e no Algarve (instalações do INATEL); EXPO 98 e, mais tarde,
outras visitas ao Oceanário; Jardim Zoológico em Lisboa; Bracalândia (Braga);
Badoca Parque e Festa da Flor (Alentejo); cruzeiro no rio Douro; Sea Life,
oceanário (Porto); Serra da Estrela; assistir a jogos de futebol (em Coimbra e
Lisboa) e a peças de teatro; ida a Santiago de Compostela (Espanha), por vários
dias. Impossível citá-las a todas, sendo que muitas foram sucessivamente
repetidas por desejo expresso dos doentes – como é o caso das idas anuais ao
Santuário de Fátima. Note-se que o esforço e profissionalismo dos funcionários
(pessoal auxiliar, médicos, administrativos, psicólogos, enfermeiros,
assistentes sociais, administrativos, motoristas, terapeutas ocupacionais,
capelão – toda a gente colaborava !!) possibilitou que, em muitas destas
actividades, a mobilização dos doentes residentes fosse total. Não eram 5
doentes (como surge na foto que ilustra a notícia, certamente obtida no café da
D. Tila…), eram muitos mais – acções houve que mobilizaram cerca de 200 pessoas
!!
- Entre muitas outras actividades (como a alfabetização,
música e a ginástica/desporto) há que citar ainda o treino de autonomia pessoal
e independência funcional (comunicação interpessoal, fazer compras, utilização
de serviços públicos, etc) intensivamente praticado no HPL. Obviamente,
admitimos que o rol das actividades de osmose do contexto vivencial
institucional com o exterior desenvolvidas no HPL, apesar de impressionante
pela variedade, dimensão e rigor científico, nunca poderá ser comparado às
“bondosas” (sic) idas semanais dos doentes ao café da D. Tila…
Mas a dita “guetização” verificada no Hospital do Lorvão
teve ainda uma outra dimensão, provavelmente ainda mais importante, incentivada
pelos técnicos mas potenciada pela notável inserção da Instituição na
comunidade circundante. Todos os dias (sublinhado) os doentes circulavam
livremente pela vila, frequentando o banco, a cabeleireira, as lojas, as
mercearias, os cafés e, por vezes, os restaurantes; eram tratados
familiarmente, pelo nome próprio, pelos habitantes do Lorvão, que “adoptaram”
alguns deles de tal forma que regularmente os convidavam para almoçar e passar
festividades como o Natal. O que justifica as lágrimas da população do Lorvão
aquando da definitiva partida dos “seus” doentes e Amigos; e que hoje, quando
escrevo estas linhas frontais e indignadas, comoverá muita gente no funeral do
Mário Abreu (o “Má”, como era carinhosamente conhecido), um dos doentes mais
populares e queridos do Lorvão.
É esta idiossincrasia que torna o Lorvão único, no sentir
unânime de quem por lá passou, funcionários e doentes. Pelos 50 anos do seu
importantíssimo papel na assistência psiquiátrica ao povo pobre das serras e
dos campos, merece ser tratado com dignidade e respeito. Nós – e sabemos que connosco
muita gente que indelevelmente considera o HPL como tendo sido a sua “casa” –
cá estaremos sempre para denunciar a injustiça e a mentira com que alguns
arrogantemente pretendem reescrever a História.
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