Este intrigante caso, ocorrido em 1838, gerou, naturalmente,
grande perplexidade nas povoações vizinhas, na Cortiça e em Paradela, mas foi na memória das gentes da Ponte da Mucela que ele perdurou durante mais tempo.
É que, no Verão de 1837, chegaram àquela localidade, ponto
de passagem de quem fazia a “estrada da Beira”, num certo dia, já no final da
tarde, dois homens ainda novos, acompanhados de uma rapariga, “carregada de
oiro”, ao pescoço e nas orelhas. Cansados da viagem, comeram e beberam numa
tasca ali existente. E no meio da conversa terão mesmo, para quem quis ouvir,
contado de onde vinham e para onde se dirigiam.
Junto à noite, prosseguiram viagem. Mas...aquela mulher, que
parecia ser solteira, tão nova e adornada daquela maneira, a acompanhar aqueles
dois marmanjos… Não, qualquer coisa ali escapava às pessoas que estavam na
altura na taberna. E, claro, alguém mais bisbilhoteiro, não deixou de os seguir, sorrateiramente, depois
de retomarem a estrada. Conclusão: os viajantes fizeram o caminho normal pela antiga estrada, na direcção
de Mucelão. E o caso ficou por ali.
Chegou o Inverno e, em princípios de Janeiro, eis senão
quando um grupo de caçadores se depararam, no Vale da Ribeira Pequena, com aquele macabro achado. Instalou-se a polvorosa naquelas terras e quando a taberneira
da Ponte da Mucela e outras pessoas foram ver o cadáver, fácil foi concluir-se que
se trataria da infeliz rapariga que, juntamente com os dois homens, comera e
bebera naquele dia de Verão.
A história espalhou-se e foi perdurando no tempo. Não raro
acontecia os viandantes, ao pararem para beber um copo, comentarem: “Com que então, foi aqui que
apareceu uma mulher morta?...” .
Com o tempo tudo acabou por se saber, apesar de na altura as autoridades, ao que parece, não terem investigado o que quer que fosse.
Soube-se que, precisamente em 1837, tinham
chegado à Bobadela dois irmãos vindos do
Alentejo, estranhamente com dinheiro suficiente para comprar propriedades na
terra. Estranho! Naquele tempo as notícias já circulavam, mais
devagar, é certo, mas espalhavam-se rapidamente. E tudo se soube na Ponte da Mucela e redondezas. Foi fácil juntar as peças e concluir: os assassinos só podiam ter sido os tais dois
homens.
E não querem saber que um dos irmãos, muitos anos mais tarde, terá
vindo viver para Paradela de Cortiça, onde até lhe chamavam o Bonadela? Muitas
vezes lhe foi atirada à cara a suspeição do assassínio, mas o homem acabou por morrer, velho e cego, em completa decadência.
Como tive conhecimento desta história? - perguntarão os
leitores. Recentemente, foi publicado em Coimbra um livro que compila artigos
publicados na imprensa regional pelo Padre Doutor Nogueira Gonçalves.
E foi então, ao
consultá-lo, que a páginas tantas, me deparei com o título “Um Velho Crime”,
crónica de 1932 publicada no "Correio de Coimbra".
Acrescenta Nogueira Gonçalves que por detrás da tese do
roubo do ouro, mais óbvia aos olhos do
povo, será plausível acrescentar também um mobile de feição amorosa. Segundo se pensou, a malograda
rapariga ter-se-á apaixonado por um deles e terá feito questão de o acompanhar.
Mas tal sentimento não seria recíproco. Carregar com aquele “fardo”, com aquele empecilho, até à
Bobadela para ser causa de possíveis desavenças familiares, enfim, e sabe-se lá
que mais, porque não desfazerem-se dela, logo ali? Ao que se juntava, claro, o
aliciante de ficarem ricos com tanto ouro que a infeliz ostentava.
“A mania de folhear velhos papéis, obriga-nos a ler dezenas
de documentos inúteis, sem interesse para os nossos estudos, mas traz-nos porém
grandes emoções e, algumas vezes , sentimos
naquela descolorida letra o palpitar de corações antigos e parece até que as
lágrimas derramadas há muito ainda escorrem do papel e nos molham as mãos” – escreve
N. Gonçalves a iniciar a crónica em questão.Foi nessas pesquisas que terá encontrado um registo de óbito
que lhe suscitou curiosidade.
Apesar de não duvidar, fui pesquisar e lá
encontrei, de facto, o assento lavrado pelo Padre J. Cunha:
17 de Maio de 2020. David Gonçalves de Almeida