Na diocese de Coimbra, em 290 paróquias, apenas em 26 delas não terão entrado os franceses, principalmente aquando da retirada em Março de 1811. Os cálculos das mortes estão subestimados, mas, no mínimo, três mil pessoas foram assassinadas e em consequência da epidemia que se seguiu teriam morrido também 35 mil habitantes da nossa diocese.
Veja-se com atenção o quadro que elaborámos, demonstrativo das mortes, pilhagens e destruição no concelho de Penacova com base nos relatórios paroquiais que consultámos no Arquivo da Universidade de Coimbra:
Afirma a historiadora Maria Antónia Lopes, historiadora e professora na Universidade de Coimbra, que “nunca mais a população portuguesa voltou a sofrer tanto como na terceira invasão francesa” –
Em Maio de 2021 esta investigadora concedeu ao Diário de Notícias uma entrevista que sintetiza esta tragédia da nossa história. Passaremos a transcrevê-la:
“Nunca mais a população
portuguesa voltou a sofrer tanto como na terceira invasão francesa”
– afirma a historiadora Maria Antónia Lopes
ENTREVISTA LEONÍDIO
PAULO FERREIRA
Diário de Notícias
Terça-feira 4/5/2021 15
Das três
invasões ordenadas por Napoleão a Portugal, a terceira, em
1810-1811, comandada pelo marechal Massena, é tida como a mais
terrível para os portugueses. O que a distingue das anteriores?
Foi, sem dúvida, a
mais terrível pelo número de assassínios, violações e
maus-tratos infligidos à população civil, destruição de campos
agrícolas e aldeias, pilhagem sistemática das cidades e vilas,
fugas em pânico de multidões.
O que a distingue? A
política de terra queimada ordenada pelos ingleses: evacuação
total das povoações com destruição de searas, moinhos e tudo o
que não pudesse ser transportado, para vencer os invasores pela
fome. Agora imagine-se a violência de um exército esfomeado, a
deitar mão a tudo o que pode e a perseguir os/as camponeses/as que
encontra para que revelem onde esconderam os víveres. Um médico de
Leiria refere-se ao “horroroso quadro, quando voltei para este
desgraçado território: aldeias desertas, todo o território
inculto, uma solidão espantosa, não aparecendo nem quadrúpedes nem
voláteis, casas incendiadas ou derrotadas, imundícies amontoadas,
vivos agonizantes, esqueletos ambulantes formavam então um
espetáculo estranho, pavoroso e mortificante”. Seguiu-se a
epidemia e os preços dos géneros dispararam. Só muito lentamente a
situação se normalizou. Nunca mais a população civil portuguesa
voltou a sofrer assim. Por isso as invasões persistem na memória
popular. Cresci [no norte da Beira Alta] a ouvir contar histórias
“dos franceses”. A dimensão da tragédia que se viveu em toda a
região centro não tem sido devidamente realçada pela
historiografia.
A região de
Coimbra, e o centro do país em geral, foi a mais afetada pela
guerra, mas não a cidade, certo?
Em 1 de outubro de
1810, quando os franceses entraram em Coimbra depois da batalha do
Buçaco, encontraram a cidade deserta, evacuada por ordem de
Wellesley. Foi saqueada pelas tropas invasoras durante três dias,
até ser reconquistada pelas milícias comandadas pelo coronel Trant.
Só a universidade escapou parcialmente, protegida pelos cuidados
dos oficiais portugueses que integravam o exército napoleónico. Nem
as residências mais humildes foram poupadas. Às pilhagens dos
franceses seguiram-se as do povo que voltara e as dos refugiados. Em
inícios de 1811 viveu-se na cidade um cenário dantesco. Os
habitantes de Miranda do Corvo, Lousã e vizinhanças até ao rio
Alva haviam sido obrigados a retirar para norte do Mondego e
acorreram a Coimbra. Os dirigentes da Misericórdia registam em ata
tratar-se de “uma calamidade incomparável, de que não há memória
nos séculos passados”. Em dezembro de 1811, o provisor da diocese
de Coimbra afirma que a miséria é geral pois em “290 paróquias,
apenas contará 26 delas onde não entrasse o inimigo”. Segundo os
seus cálculos, morreram às mãos dos soldados 3 mil pessoas e em
consequência da epidemia que se seguiu teriam falecido, no mínimo,
35 mil habitantes da diocese. Os cálculos das mortes estão
subestimados. Já contabilizei 3305 civis assassinados, representando
as mulheres quase 30%, e as fontes estão incompletas. Também não
estará muito empolado o número de mortos por doença. Na Figueira
da Foz, onde não houve assassínios porque os invasores não
passaram por aí, terão sucumbido na epidemia umas 4 mil pessoas,
entre naturais e refugiadas. Contudo, a julgar pela distribuição
dos auxílios em 1811, a devastação foi muito maior nos
atuais distritos de Guarda, Leiria, Santarém e Cas-telo Branco. O
assunto carece de investigação.
A violência pior
contra civis aconteceu durante a invasão ou já aquando da retirada,
quando as forças luso-britânicas do general Wellesley, futuro duque
de Wellington, se mostraram superiores às francesas?
A violência contra
os civis aconteceu desde o início, agudizou-se quando os franceses
estiveram imobilizados nas linhas de Torres Vedras e ainda mais na
retirada, a partir de março de 1811. Durante a permanência nas
Linhas de Torres, a pilhagem foi organizada pelas chefias em larga
escala e em zonas distantes. Quando
retiraram, desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do
que o combate, os soldados intensificaram as atrocidades. A 19 e 20
de março, sem encontrarem nada para comer, espalhavam-se por
Pinhanços, Sandomil, Penalva do Castelo, Celorico da Beira, Vila
Cortês, Vinhó, Gouveia, Moimenta da Serra, etc.
Os chefes
militares franceses mostraram-se incapazes de controlar assassínios,
violações e pilhagens pelos soldados? Tentaram, pelo menos?
Nas memórias que
conheço de antigos oficiais franceses não encontro essa
preocupação. Omitem-se homicídios, torturas e violações. E estas
aconteceram em massa. Quanto às pilhagens, eram imprescindíveis e
podiam ser planificadas superiormente, como relata, por exemplo, o
general Marbot. Mas os militares aliados também pilhavam. Segundo
uma testemunha de Arganil, “por onde passou a tormenta nada
absolutamente ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de
hortaliças. E se alguma coisa escapou ao inimigo, o limpou a nossa
tropa e assim mesmo os pobres soldados vão mortos de fome”.
É verdade que a
destruição foi tanta que, no âmbito da estratégia geral de
combate a Napoleão na Europa, a Grã-Bretanha teve de enviar ajuda
humanitária para o seu aliado
Sim, a tragédia
suscitou uma campanha de auxílio na Grã-Bretanha, onde o
parlamento e a população arrecadaram mais de 60 milhões de réis
destinados às vítimas portuguesas da terceira invasão. Para
organizar a repartição das verbas, foi constituída uma comissão
central em Lisboa, a Junta dos Socorros da Subscrição Britânica,
dirigida pelo cônsul inglês. O donativo foi distribuído pela
população miserável (dinheiro e pano para roupa), por lavradores
para sementeiras e por instituições de assistência.
A imagem de
Napoleão foi manchada irremediavelmente no imaginário popular,
apesar de alguns nas elites defenderem as suas ideias, depois desta
terceira invasão?
Sem dúvida, era
inevitável. Surgem por todo o lado folhetos que o diabolizam e isso
foi alimentado e aproveitado pelas forças políticas conservadoras.
Mas parte das elites estava conquistada pelas ideias políticas
liberais, que eram também, não esqueçamos, as dos aliados
ingleses.
O povo sentia-se
abandonado pela família real, que a primeira invasão napoleónica,
em 1807, tinha levado a embarcar para o Brasil?
A avaliar pelos
relatos das testemunhas e as petições das vítimas, não era
assunto que as preocupasse. Referiam-se à tragédia sem invocar as
causas da invasão nem cenários que a tivessem impedido. Era como se
de um terramoto se tratasse, sem outros responsáveis que não a
própria catástrofe.
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Penacova vai, mais uma vez, recriar alguns episódios da Guerra Peninsular ocorridos às nossas portas. Que além do enaltecimento da vitória anglo-lusa no Bussaco, nos lembremos também do "desgraçado" povo humilde do nosso concelho, dos familiares remotos de muitos de nós que foram assassinados, que viram as suas casas incendiadas, que ficaram sem os seus escassos víveres, que viram o património religioso roubado e profanado...