Já, por diversas vezes, fizemos referência às crónicas IN ILLO TEMPORE assinadas por Zé do
Mirante. Desta feita, é um texto publicado em 1952 no Notícias de Penacova que nos fala da tradição teatral na vila, tema
que abordámos recentemente. Espaços, pessoas, vivências culturais que nos
transportam à Penacova dos finais do séc. XIX.
"Pequenino, mas um amor de elegância"
"Pequenino, mas um amor de elegância"
“O teatro era onde hoje está instalado o posto da GNR. Pequenino,
mas um amor de elegância. Além da plateia tinha um balcão, em forma de lira,
unicamente reservado às senhoras. Havia somente um cenário, de duas faces-um
pobre, outro rico; o pano de boca era pesado, mas da leveza do coração para os
penacovenses – era o panorama de Penacova, vista da Cheira, pintada pelo
artista António Eliseu; do mesmo era o cenário e toda a decoração do teatro, do
qual não era estranha a a sensibilidade e delicado gosto do Sr. Joaquim
Carvalho.
Não havia mobiliário próprio; mas em dia de récita não
faltava no palco a mais insignificante parcela decorativa ou indumentária dos
figurantes. Com orgulho se poderia afirmar que o nosso teatrinho não
envergonharia qualquer vila provinciana.
Teve três fases - uma brilhante, outra sombria e outra de
escuridão.
Nos dois primeiros períodos, passaram por ali artistas de
Lisboa em digressão pela província e companhias ambulantes, que davam duas ou
três récitas; uma houve que esteve nesta vila quase dois meses, dando dois
espectáculos por semana e sempre casa à
cunha.
"O Morgado de Fafe" foi uma das peças representadas em Penacova por pessoas da terra. |
Nesta foto: João Guedes, Alda Rodrigues e
Ruy Furtado em “O Morgado de Fafe Amoroso”*, de Camilo Castelo Branco, com encenação de António Pedro
(TEP 1958). Fotografia de
Fernando Aroso
Ali se representou o Santo
António, a Senhora da Nazaré, Inês de Castro, Filha do Saltimbanco, Morgadinha de Vale Flor, Burro do Sr. Alcaide, Gaspar Serralheiro; dramas e comédias
então em voga e pelos amadores de Penacova o Morgado de Fafe (lembram-se de D. Raimunda, D. Maria de Melo e Sr.
Alipinho? ). Foi nesse período brilhante que se notaram vocações e habilidades
de amadores locais. Destacamos José Oliveira, pai do Dr. Aristides, candidato a
Medicina e ao Matrimónio…
Aquele amador, logo que pisava o palco, sem dizer uma única palavra,
desarticulava os espectadores, com um nunca acabar de rir! Personagem labrego
ou agalegado, tinham em José Oliveira uma graça, um cómico tal, que algumas
vezes descia o pano, findava a peça sem ele poder dizer o seu recado! Tentava-se o prosseguimento mas
o público não se continha…e era ele que representava a rir, enquanto o José
Oliveira no palco, somente com um simples gesto…era o espectador!
Foi no período da escuridão, com o teatro há anos fechado, aos
ratos, às aranhas, ao pó, que num final de patuscada de chouriços e ovos, tirados
a cantar as Janeiras pelos Reis, que o António Dias lamentava o abandono a que
estava votado o teatro-escola de educação e recreio. Logo ali se constitui uma companhia para animar a Arte e para distracção do povo, já familiarizado como o borralho, a má-língua dos soalheiros
ou a fatídica taberna.
O grupo compunha-se de António Dias, José Alves, Pinheiro,
Augusto (o Pilica), Alípio Flórido,
Duarte Mamede, J. R., Maria, Júlia, Laura e…não me recordo de quem mais. Com
excepção do primeiro, todos os outros nunca tinham pisado o palco e, da Nobre
Arte, só conheciam a dos saltimbancos, ao ar livre do Terreiro, pelo preço de 5
reis, ou pela fuga a tempo de beber um golo de água fresca da fonte…enquanto
durava o peditório. Eu já era familiarizado com o meio teatral, por um dia ser
encarregado de receber os bilhetes que davam acesso ao balcão…
Imediatamente a nova companhia
se responsabilizou com o senhorio pela s rendas em dívida e logo no domingo
seguinte ao dia de Reis – há mais de 50 anos – se tiraram as teias de aranha e
se fez limpeza geral, ficando tudo como um brinquinho, procurando cada um fazer
mais e melhor. Bons tempos!
Escolheram-se peças e figurantes e com o entusiasmo que a
mocidade é capaz, se resolveram dificuldades e se iniciaram os ensaios de forma
a dar-se a primeira récita em sábado de Aleluia.(...)"
*Quatro anos após o sucesso público d’O Morgado de Fafe em Lisboa [1861], e no contexto de assombrosa operosidade criativa, Camilo Castelo Branco publica uma nova comédia de costumes com o mesmo protagonista, O Morgado de Fafe Amoroso [1865], comédia em três actos, cuja acção decorre agora na Foz do Douro, em 1862.
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