"Um passeio ao convento de Lorvão entrava no programa das excursões favoritas que ainda há trinta para quarenta anos faziam os estudantes de Coimbra. A inauguração sucessiva de diferentes linhas férreas desviou a atenção da Academia para pontos mais distantes, onde vão por preço modico gastar os dias feriados no seio de suas famílias.
O caminhante seguia então o curso do Mondego ou atravessava a serra do Dianteiro por uma sofrível estrada. Descendo o monte de Santo António dos Olivais passava-se o formoso vale de S. Romão e numa subida bastante íngreme alcançava-se o alto, chamado Espinhaço de Cão, onde um panorama esplêndido convidava o romeiro a descansar. Uma grande parte do valle do Mondego, semeado de vilas e aldeias, a capital da província com os seus monumentos históricos, o oceano rolando as suas ondas sobre a areia fulva e, alguns passos mais adiante, as cumeadas do Bussaco, enfim toda a Bairrada com a sua opulenta vegetação constata um cenário digno de ocupar uma geração de pintores. Caminhava-se então devagar, a pé, num terreno formado de xistos, apalpando as veredas numa descida vagarosa; e dobrando a montanha avistava-se de súbito o profundo vale de Lorvão.
A povoação é pobre; conta uns quinhentos fogos e vive hoje quase exclusivamente da pequena lavoura e de uma indústria caseira: a dos palitos, que apenas vegeta, mesquinhamente explorada por uma usura cruel. A primeira impressão antes de descer ao apertado vale, cortado por um mesquinho regato, era e é ainda hoje a de espanto perante o contraste dos dois elementos: o sagrado e o profano. A enorme construção que a estampa não abrange ainda assim completamente, caindo em ruínas, os dormitórios desabando, os celeiros nus, as cozinhas, os pátios e claustros desertos, mas ainda grandiosos, contrastando com a pobreza do casario da pobríssima aldeia.
Na época de maior esplendor, isto é, no meado do século XVIII, contava Lorvão para cima de cem religiosas, além das noviças e das serventes, e dispunha de um rendimento superior a oitenta mil cruzados. Os dotes que durante o século XVII orçavam por mil cruzados, foram no começo do século XVIII elevados a oitocentos mil reis. Viveu-se entre esses muros com opulência, com certo gosto e amor da arte; e não raras vezes com uma liberdade que provocava escândalos.
Por fim entrou ali o rigor da lei. Extintas as ordens religiosas em 1834, o governo de D. Pedro mandou liquidar as contas. Os monges bernardos que administravam a casa, saíram dali, deixando tudo empenhado; uma divida de cerca de oito contos de reis, destruídas as matas, vendidas as madeiras, e a caixa do dinheiro vazia. Sobreveio o fisco e reclamou vinte e cinco contos de décimas relaxadas, que os venerandos administradores tinham dado como satisfeitas! Daí em diante a situação das religiosas piorou rapidamente. Os foreiros, inquilinos e outros devedores, reconhecendo que os privilégios históricos haviam perdido a sua força, cerceavam ou negavam pagamentos. Procuradores e advogados armaram questões intermináveis, mas rendosas para eles. E contudo, a abadessa de Lorvão ainda era e foi durante anos a mãe dos pobres até 1851. Passados dois anos, porém, alguém pedia uma esmola para ela. Foi Alexandre Herculano.
«Escrevo-lhe do fundo do estreito vale de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro melancólico e mal assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado de indignação.
Descendo a examinar o arquivo das pobres cistercienses, penetrei no claustro por ordem da autoridade eclesiástica. Lá dentro, nesses corredores húmidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pálidas, cujos cabelos eram brancos. Esses cabelos nem todos os destingiu o decurso dos amos: a amargura embranqueceu os mais deles. Quase todas essas faces tem-nas empalidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro.
Estas mulheres ouvem de lá, do seu túmulo, o ruído do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquelas casas de telha vã, negras, gretadas, desaprumadas, com o aspecto miserável da maior parte das aldeias da Beira, vive uma população laboriosa, que até certo ponto se pode chamar abastada, e a que, pelo menos, não falta o pão nem a alegria.
No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto exterior quase indicando opulência, é que não há pão, mas só lágrimas... aqui vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome... Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta espécie de poço perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, metidas entre “quatro paredes húmidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edifício; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por cima das lágrimas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre...
Há poucos dias passou-se em Lorvão uma cena tremenda. Num acesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado delas uma grande ambição; aspiravam à felicidade do mendigo, que pode apelar para a compaixão humana, que pode fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz é demasiado frac e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por esse túmulo de vivos.» (Herculano, Opúsculos, vol. 1, pág. 195 e seg.)
A eloquente carta do grande escritor, publicada então pela imprensa, despertou o governo e produziu algum benefício, o que é muito para louvar, porque o martírio poderia haver-se prolongado por muito tempo.
Só passados vinte e quatro anos é que expirou a ultima freira professa D. Luiza Magdalena Tudella (3 de Julho de 1877). E durante esse longo período de um quarto de século tiveram as freiras à sua disposição, para as empenharem ou venderem, alfaias, quadros, peças de ourivesaria, móveis antigos, louças, azulejos, etc., enfim: objectos de considerável valor de que apareceram restos ainda importantes na Exposição de Arte Ornamental de 1882. Apesar de tudo, as senhoras religiosas resistiram à tentação de se pagarem por suas mãos; apenas nos derradeiros anos da última freira se cometeram abusos a coberto da sua incapacidade mental.
O actual sr. Bispo-Conde, apesar das suas enérgicas providências, encarregando uma comissão de fazer inventario minucioso (Junho de 1877), não conseguiu reaver certas preciosidades, por exemplo, uns relicários medievos de marfim, vendidos para fora do reino por quantias consideráveis.
Emquanto as freiras de Lorvão morriam lentamente à fome em 1853, havia mosteiros cujas habitadoras viviam na opulência e onde o supérfluo se desbaratava de um modo escandaloso. Herculano, que os conhecia bem, porque fôra encarregado de examinar oficialmente os arquivos eclesiásticos do país, declara na mesma carta, já citada: «Na secretaria da justiça encontram-se as provas de que a renda dos bens que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a 200 000$000 reis, e todavia há centenares de freiras que morrem à mingua. São dois factos que não carecem de comentário. É a manifestação mais eloquente de que não há governo nesta terra.» (Loc. cit, pag. 203).
O convento de Lorvão pouco valor tem como obra de arte. As reconstruções alteraram todas as suas feições antigas. Durante a segunda metade do século XVII e todo o século imediato não houve descanso; uma febre de modas e feitios novos apoderou-se das freiras. Pelos anos de 1688 foi sacrificado o claustro velho que, a julgarmos por alguns fragmentos de escultura existentes no Museu do Instituto de Coimbra, devia ainda abrigar restos valiosos de lavores mediévicos.
O claustro novo é banal, pesado, sem graça, se descontarmos umas três capelas em estilo da Renascença que escaparam : S. João Baptista -1602, Nossa Senhora de Nazareth -1603 e a do Calvário – 1644.
A casa do Capitulo, refeitório, dormitórios e outras serventias nada apresentam de notável. O frontispício da igreja, que existiu algum dia, desapareceu sem vestígio! No interior uma grande nave, ampla, de estilo pseudo-clássico do fim do século XVIII, iluminada por uma formosa cúpula na intersecção do cruzeiro com a nave. Belas cantarias, finamente rendilhadas num lavor rococó, muito discreto, que respeitou e pôs em relevo proporções arquitetónicas bem estudadas.
É celebre o côro com as suas majestosas cadeiras de pau santo e nogueira. Neste estilo, não há em todo o reino trabalho superior para documentar a suma perícia de uma escola de entalhadores bem portuguesa. Tinha grande semelhança com este o cadeiral do convento de freiras de S. Bento do Porto (Ave-Maria) há pouco demolido, talvez obra da mesma oficina.
A entrada do côro é vedada por uma grade monumental de ferro forjado e bronze que representa outra obra de arte muito notável. Foi executada em 1784 e custou 7 200$000 réis. Temos visto e comparado os artefactos mais notáveis dos nossos antigos serralheiros dos séculos XVI, XVII e XVIII em repetidas e demoradas excursões, há mais de trinta anos, mas confessamos que esta grade de Lorvão não tem par em Portugal.
Merecia uma estampa especial, assim como as duas urnas de prata lavrada, que guardam os restos das infantas portuguesas D. Teresa e D. Sancha.
São antes dois cofres de grandes dimensões, com o feitio de urnas, forrados de veludo carmesim, cobertos de lavores de prata, recortada em arabescos, guarnecidos de pedras de varias cores. O ourives Manuel Carneiro da Silva, natural do Porto, traçou as duas obras num estilo semelhante, largo, com um grande efeito decorativo, que não exclui primorosos detalhes de buril e cinzel nos desenhos heráldicos e arabescos menores, porque os grandes lavores são batidos a martelo ou repuxados. Custaram ambos perto de oito mil cruzados.
Havendo sido feita a trasladação dos antigos túmulos de pedra para estes cofres em 1715, é de presumir que o trabalho do ourives não seja muito anterior.
Foi uma grande festa que custou grossa quantia, excedida só pela que as religiosas pagaram pela beatificação da infanta D. Teresa (Bula de Clemente XI a 23 de Dezembro de 1705). Esta senhora, cujo casamento com Afonso IX de Leão fôra anulado por impedimento de parentesco, entrou para Lorvão na véspera de Natal de 1200; e para ali fez trasladar os restos de sua irmã D. Sancha (também beatificada) que falecera no mosteiro de Celas (1229), perto de Coimbra, fundação sua.
As lutas destas princesas e ainda de uma terceira irmã D. Mafalda (fundadora do célebre mosteiro de Arouca) com el-rei D. Afonso II, o Gordo, por causa da herança paterna, redundaram em proveito das ordens religiosas que as três ilustres senhoras favoreceram. Ter uma irmã em Lorvão ou Arouca correspondia quase a um título de nobreza. Em Lorvão figurou ainda outra princesa, a infanta D. Branca, filha de D. Afonso III, heroína do famoso poema de Garrett; e ali enclausuraram a célebre inspiradora da écloga Crisfal, do nosso ilustre escritor Cristóvão Falcão, delineada de 1525/30. D. Maria Brandão, filha do opulento Contador da Fazenda do Porto, João Brandão e de D. Brites Pereira, pagou a audácia do seu casamento clandestino com o poeta, entre os muros do cenóbio: «escondida entre serras onde o sol não era visto»... Falcão, transportado em sonho à serra de Lorvão, aí se encontra com a esposa amada:
«a vista no chão pregada,
com o seu cantar pensoso,
e passadas esquecidas
ao tom dele medidas,
vestida de arenoso,
as mãos nas mangas metidas»
(Estrofe 69)
Iríamos longe se fôssemos à resumir somente os casos mais memoráveis da cronica da ilustre casa que ainda teve a honra de hospedar Wellington e o seu estado-maior. Depois a fortuna declina rapidamente, como vimos. E hoje, se não fôra a generosa e esclarecida proteção do actual sr. Bispo-Conde, já o cadeiral do côro teria sido arrancado, fundida a esplêndida grade e os cofres de prata reduzidos a bons... patacos, mesmo sem o auxilio de franceses.
O caminhante seguia então o curso do Mondego ou atravessava a serra do Dianteiro por uma sofrível estrada. Descendo o monte de Santo António dos Olivais passava-se o formoso vale de S. Romão e numa subida bastante íngreme alcançava-se o alto, chamado Espinhaço de Cão, onde um panorama esplêndido convidava o romeiro a descansar. Uma grande parte do valle do Mondego, semeado de vilas e aldeias, a capital da província com os seus monumentos históricos, o oceano rolando as suas ondas sobre a areia fulva e, alguns passos mais adiante, as cumeadas do Bussaco, enfim toda a Bairrada com a sua opulenta vegetação constata um cenário digno de ocupar uma geração de pintores. Caminhava-se então devagar, a pé, num terreno formado de xistos, apalpando as veredas numa descida vagarosa; e dobrando a montanha avistava-se de súbito o profundo vale de Lorvão.
A povoação é pobre; conta uns quinhentos fogos e vive hoje quase exclusivamente da pequena lavoura e de uma indústria caseira: a dos palitos, que apenas vegeta, mesquinhamente explorada por uma usura cruel. A primeira impressão antes de descer ao apertado vale, cortado por um mesquinho regato, era e é ainda hoje a de espanto perante o contraste dos dois elementos: o sagrado e o profano. A enorme construção que a estampa não abrange ainda assim completamente, caindo em ruínas, os dormitórios desabando, os celeiros nus, as cozinhas, os pátios e claustros desertos, mas ainda grandiosos, contrastando com a pobreza do casario da pobríssima aldeia.
Na época de maior esplendor, isto é, no meado do século XVIII, contava Lorvão para cima de cem religiosas, além das noviças e das serventes, e dispunha de um rendimento superior a oitenta mil cruzados. Os dotes que durante o século XVII orçavam por mil cruzados, foram no começo do século XVIII elevados a oitocentos mil reis. Viveu-se entre esses muros com opulência, com certo gosto e amor da arte; e não raras vezes com uma liberdade que provocava escândalos.
Por fim entrou ali o rigor da lei. Extintas as ordens religiosas em 1834, o governo de D. Pedro mandou liquidar as contas. Os monges bernardos que administravam a casa, saíram dali, deixando tudo empenhado; uma divida de cerca de oito contos de reis, destruídas as matas, vendidas as madeiras, e a caixa do dinheiro vazia. Sobreveio o fisco e reclamou vinte e cinco contos de décimas relaxadas, que os venerandos administradores tinham dado como satisfeitas! Daí em diante a situação das religiosas piorou rapidamente. Os foreiros, inquilinos e outros devedores, reconhecendo que os privilégios históricos haviam perdido a sua força, cerceavam ou negavam pagamentos. Procuradores e advogados armaram questões intermináveis, mas rendosas para eles. E contudo, a abadessa de Lorvão ainda era e foi durante anos a mãe dos pobres até 1851. Passados dois anos, porém, alguém pedia uma esmola para ela. Foi Alexandre Herculano.
«Escrevo-lhe do fundo do estreito vale de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro melancólico e mal assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado de indignação.
Descendo a examinar o arquivo das pobres cistercienses, penetrei no claustro por ordem da autoridade eclesiástica. Lá dentro, nesses corredores húmidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pálidas, cujos cabelos eram brancos. Esses cabelos nem todos os destingiu o decurso dos amos: a amargura embranqueceu os mais deles. Quase todas essas faces tem-nas empalidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro.
Estas mulheres ouvem de lá, do seu túmulo, o ruído do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquelas casas de telha vã, negras, gretadas, desaprumadas, com o aspecto miserável da maior parte das aldeias da Beira, vive uma população laboriosa, que até certo ponto se pode chamar abastada, e a que, pelo menos, não falta o pão nem a alegria.
No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto exterior quase indicando opulência, é que não há pão, mas só lágrimas... aqui vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome... Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta espécie de poço perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, metidas entre “quatro paredes húmidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edifício; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por cima das lágrimas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre...
Há poucos dias passou-se em Lorvão uma cena tremenda. Num acesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado delas uma grande ambição; aspiravam à felicidade do mendigo, que pode apelar para a compaixão humana, que pode fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz é demasiado frac e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por esse túmulo de vivos.» (Herculano, Opúsculos, vol. 1, pág. 195 e seg.)
A eloquente carta do grande escritor, publicada então pela imprensa, despertou o governo e produziu algum benefício, o que é muito para louvar, porque o martírio poderia haver-se prolongado por muito tempo.
Só passados vinte e quatro anos é que expirou a ultima freira professa D. Luiza Magdalena Tudella (3 de Julho de 1877). E durante esse longo período de um quarto de século tiveram as freiras à sua disposição, para as empenharem ou venderem, alfaias, quadros, peças de ourivesaria, móveis antigos, louças, azulejos, etc., enfim: objectos de considerável valor de que apareceram restos ainda importantes na Exposição de Arte Ornamental de 1882. Apesar de tudo, as senhoras religiosas resistiram à tentação de se pagarem por suas mãos; apenas nos derradeiros anos da última freira se cometeram abusos a coberto da sua incapacidade mental.
O actual sr. Bispo-Conde, apesar das suas enérgicas providências, encarregando uma comissão de fazer inventario minucioso (Junho de 1877), não conseguiu reaver certas preciosidades, por exemplo, uns relicários medievos de marfim, vendidos para fora do reino por quantias consideráveis.
Emquanto as freiras de Lorvão morriam lentamente à fome em 1853, havia mosteiros cujas habitadoras viviam na opulência e onde o supérfluo se desbaratava de um modo escandaloso. Herculano, que os conhecia bem, porque fôra encarregado de examinar oficialmente os arquivos eclesiásticos do país, declara na mesma carta, já citada: «Na secretaria da justiça encontram-se as provas de que a renda dos bens que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a 200 000$000 reis, e todavia há centenares de freiras que morrem à mingua. São dois factos que não carecem de comentário. É a manifestação mais eloquente de que não há governo nesta terra.» (Loc. cit, pag. 203).
O convento de Lorvão pouco valor tem como obra de arte. As reconstruções alteraram todas as suas feições antigas. Durante a segunda metade do século XVII e todo o século imediato não houve descanso; uma febre de modas e feitios novos apoderou-se das freiras. Pelos anos de 1688 foi sacrificado o claustro velho que, a julgarmos por alguns fragmentos de escultura existentes no Museu do Instituto de Coimbra, devia ainda abrigar restos valiosos de lavores mediévicos.
O claustro novo é banal, pesado, sem graça, se descontarmos umas três capelas em estilo da Renascença que escaparam : S. João Baptista -1602, Nossa Senhora de Nazareth -1603 e a do Calvário – 1644.
A casa do Capitulo, refeitório, dormitórios e outras serventias nada apresentam de notável. O frontispício da igreja, que existiu algum dia, desapareceu sem vestígio! No interior uma grande nave, ampla, de estilo pseudo-clássico do fim do século XVIII, iluminada por uma formosa cúpula na intersecção do cruzeiro com a nave. Belas cantarias, finamente rendilhadas num lavor rococó, muito discreto, que respeitou e pôs em relevo proporções arquitetónicas bem estudadas.
É celebre o côro com as suas majestosas cadeiras de pau santo e nogueira. Neste estilo, não há em todo o reino trabalho superior para documentar a suma perícia de uma escola de entalhadores bem portuguesa. Tinha grande semelhança com este o cadeiral do convento de freiras de S. Bento do Porto (Ave-Maria) há pouco demolido, talvez obra da mesma oficina.
A entrada do côro é vedada por uma grade monumental de ferro forjado e bronze que representa outra obra de arte muito notável. Foi executada em 1784 e custou 7 200$000 réis. Temos visto e comparado os artefactos mais notáveis dos nossos antigos serralheiros dos séculos XVI, XVII e XVIII em repetidas e demoradas excursões, há mais de trinta anos, mas confessamos que esta grade de Lorvão não tem par em Portugal.
Merecia uma estampa especial, assim como as duas urnas de prata lavrada, que guardam os restos das infantas portuguesas D. Teresa e D. Sancha.
São antes dois cofres de grandes dimensões, com o feitio de urnas, forrados de veludo carmesim, cobertos de lavores de prata, recortada em arabescos, guarnecidos de pedras de varias cores. O ourives Manuel Carneiro da Silva, natural do Porto, traçou as duas obras num estilo semelhante, largo, com um grande efeito decorativo, que não exclui primorosos detalhes de buril e cinzel nos desenhos heráldicos e arabescos menores, porque os grandes lavores são batidos a martelo ou repuxados. Custaram ambos perto de oito mil cruzados.
Havendo sido feita a trasladação dos antigos túmulos de pedra para estes cofres em 1715, é de presumir que o trabalho do ourives não seja muito anterior.
Foi uma grande festa que custou grossa quantia, excedida só pela que as religiosas pagaram pela beatificação da infanta D. Teresa (Bula de Clemente XI a 23 de Dezembro de 1705). Esta senhora, cujo casamento com Afonso IX de Leão fôra anulado por impedimento de parentesco, entrou para Lorvão na véspera de Natal de 1200; e para ali fez trasladar os restos de sua irmã D. Sancha (também beatificada) que falecera no mosteiro de Celas (1229), perto de Coimbra, fundação sua.
As lutas destas princesas e ainda de uma terceira irmã D. Mafalda (fundadora do célebre mosteiro de Arouca) com el-rei D. Afonso II, o Gordo, por causa da herança paterna, redundaram em proveito das ordens religiosas que as três ilustres senhoras favoreceram. Ter uma irmã em Lorvão ou Arouca correspondia quase a um título de nobreza. Em Lorvão figurou ainda outra princesa, a infanta D. Branca, filha de D. Afonso III, heroína do famoso poema de Garrett; e ali enclausuraram a célebre inspiradora da écloga Crisfal, do nosso ilustre escritor Cristóvão Falcão, delineada de 1525/30. D. Maria Brandão, filha do opulento Contador da Fazenda do Porto, João Brandão e de D. Brites Pereira, pagou a audácia do seu casamento clandestino com o poeta, entre os muros do cenóbio: «escondida entre serras onde o sol não era visto»... Falcão, transportado em sonho à serra de Lorvão, aí se encontra com a esposa amada:
«a vista no chão pregada,
com o seu cantar pensoso,
e passadas esquecidas
ao tom dele medidas,
vestida de arenoso,
as mãos nas mangas metidas»
(Estrofe 69)
Iríamos longe se fôssemos à resumir somente os casos mais memoráveis da cronica da ilustre casa que ainda teve a honra de hospedar Wellington e o seu estado-maior. Depois a fortuna declina rapidamente, como vimos. E hoje, se não fôra a generosa e esclarecida proteção do actual sr. Bispo-Conde, já o cadeiral do côro teria sido arrancado, fundida a esplêndida grade e os cofres de prata reduzidos a bons... patacos, mesmo sem o auxilio de franceses.
Joaquimde Vasconcelos, “Lorvão” in A arte e a natureza em Portugal: album de photografias com descripções, clichés originaes, copias em phototypia inalteravel, monumentos, obras d'arte, costumes e paisagens / Directores F. Brüt [e] Cunha Moraes. - Porto : Emilio Biel, 1902-1908 (Porto : Typ. de António José da Silva Teixeira). - 8 v. : il. ; 30x40 cm + Catálogo manuscrito
Sem comentários:
Enviar um comentário