Transcrevemos hoje o texto (publicado no folheto alusivo à inauguração do órgão) do Prof. Doutor Nelson Correia Borges, eminente historiador penacovense e o maior especialista da história do Mosteiro de Lorvão. Só se pode dar valor àquilo que se conhece. Com a divulgação deste documento, que constitui uma excelente síntese histórica e artística, pretendemos contribuir para que Lorvão se afirme cada vez mais como Centro Cultural do nosso concelho, da região e do país.
História e Arte
Nota breve
Teve a música grandes cultoras em Lorvão, em
todos os tempos. Abundam na documentação do mosteiro as referências, quer a instrumentos
musicais, quer a instrumentistas e cantoras. Os ofícios de coro exigiam
solenidade, perfeição e gravidade, conforme a determinação dos Capítulos Gerais
da Ordem de Cister e as normas codificadas no Livro de Usos e Cerimónias. O
órgão veio a assumir‑se no decurso do século XVII como instrumento
indispensável ao esplendor das cerimónias litúrgicas, graças aos
aperfeiçoamentos técnicos e estéticos de que foi sendo alvo.
A primeira referência a um órgão de tubos em
Lorvão data de 1668, o que pressupõe a sua anterior existência. Em 1719 a
comunidade decidiu mandar fazer um novo, profundamente remodelado em 1727, na
caixa e nos mecanismos, e com nova reforma em 1742. Não teve muitos anos de uso
este órgão reformado, pois foi desmontado em 1747, durante as obras de
construção do novo coro e quando se pensava em reedificar também a igreja de
forma mais grandiosa. Logo que o coro ficou pronto, cerca de 1748, e começou a
ser utilizado para o ofício divino, procedeu‑se à reinstalação do órgão
desmontado, antes que se pensasse em mandar fazer outro novo, o que só seria
possível depois de concluídas as obras da igreja.
Em 1764, quando se fizeram os retábulos do
antecoro, trabalhava-se igualmente nas tribunas ou varandins em que se viria a
instalar o novo órgão. Mas só vinte anos mais tarde, em 1784, houve
disponibilidade para avançar com a obra. Para o efeito foi contactado o
escultor e organeiro Manuel Machado Teixeira, natural de Braga e estabelecido
em Coimbra, com oficina na rua de Sobre Ribas. Manuel Machado Teixeira era pai
de Joaquim Machado de Castro e de Antônio Xavier Machado e Cerveira. Ao
primeiro comunicou o gosto pela escultura, ao segundo o da organaria. Um e outro
se distinguiram e foram figuras cimeiras na sua arte. Foi certamente devido à
avançada idade de Machado Teixeira que, à obra vultuosa que as cistercienses de
Lorvão pretendiam fazer, se associou Antônio Xavier. O contrato para a sua
execução foi celebrado em 15 de julho de 1785, mas esta sofreu contratempos
vários, como o falecimento de Manuel Machado Teixeira. Também o projeto inicial
foi ultrapassado com a adição de novos registos e outras alterações. Só em 1795
o órgão ficaria pronto e, conforme se pode ver na assinatura que Antônio Xavier
Machado e Cerveira lhe após, tem o nº 47 de fabrico. Importou em mais de sete
contos e seiscentos mil réis, verba avultada que só acabou de ser totalmente liquidada
em 1806, o que denota já algumas dificuldades financeiras na governação do
mosteiro. Com efeito, os tempos já eram bem diferentes da época áurea anterior.
É esta a explicação para o facto de, tanto as caixas do órgão como as tribunas
do antecoro, nunca terem sido pintadas e douradas como estava previsto e era
comum em todas as obras congéneres. Em 1791 levaram três demãos de aparelho,
somente. O douramento e pintura, que lhes emprestariam nova beleza e fulgor
foram sendo adiados para melhores dias, que não mais voltaram. Com isto, o
órgão de Lorvão ficou impedido de transmitir a mensagem estética visual que lhe
fora destinada.
Há que distinguir no órgão a parte de
organaria da de marcenaria, escultura e talha. Quer uma quer outra são do mais
alto nível, o que confere a este instrumento o estatuto de verdadeira obra‑prima
entre os órgãos históricos nacionais. Embora não haja referência documental
direta ao nome do escultor e entalhador, é sabido que António Xavier Machado e
Cerveira se instalou em Lisboa na oficina de Joaquim Machado de Castro, ao
Tesouro Velho, e como era estreita a colaboração profissional entre ambos, é
lógico que, absorvido e entregue aos trabalhos de organaria, deixasse para a
oficina do irmão a fatura da caixa do órgão laurbanense, que ele próprio também
contratara.
Contudo, nem seria necessária esta dedução
documental. Basta olhar para a escultura decorativa, para o filiar estilisticamente
na arte de Machado de Castro. O parentesco é por demais evidente em certos
pormenores que quase têm o valor da marca da sua oficina ou da sua assinatura.
Graciosos anjos‑músicos esvoaçam em movimentos delicados, enquanto outros se
quedam em diversas atitudes, tangendo com brio variados instrumentos.
Especialmente encantador é o relevo em moldura arrendada, da fachada da igreja,
com cinco anjos dispostos assimetricamente, movimentando‑se sobre nuvens em
diferentes e graciosas atitudes e posições. São uma exaltação de Cister,
mostrando ostensivamente os atributos de S. Bernardo: três livros, emblemáticos
dos seus inumeráveis escritos, um báculo, a mitra abacial e uma pena.
Provavelmente teria sido também Machado de Castro o delineador de toda a caixa,
onde se patenteiam bem os princípios estéticos que o norteavam, isto é, os de
um barroco classicista, com algum racionalismo de concepção, decorrente da
filosofia das Luzes e tão característico da época rococó, bem patente na disposição
e articulação dos diversos corpos. Foram utilizadas na execução madeiras de
castanho e pinho de Flandres.
Com este alentado e belo instrumento ficaram
as monjas laurbanenses habilitadas e estimuladas para a prática de música
litúrgica no mais alto grau de perfeição. Muitas delas foram exímias
organistas, como se documente pelos assentos dos livros de óbitos.
Nelson
Correia Borges,
Historiador
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