"Forte e Flexível como o Salgueiro" é um conto de
Ulisses Baptista que nos transporta para o mundo rural dos anos 50 /
60 do século passado.
Jaime era um moço
maciço, enrijecido pelas manhãs de geada e as tarefas de campo que
o faziam saltar cedo da cama, quando ia ajudar o avô. Era um rapaz
alegre e reinadio, apesar dos tenros anos, apesar da imaturidade
misturada com a rebeldia da infância. Ligado à vida ao ar livre, a
alegria dos verdes anos era ainda mais evidente com a profusão do
verde do campo, com o chilrear da passarada e o cheiro perfumado das
plantas silvestres. Gostava especialmente da altura da poda da vinha
em que colocava em prática a sua habilidade a torcer o vime de
salgueiro que os camponeses usavam para a amarrar, depois da poda de
Inverno.
A Primavera estava
já a entrar e o avô descuidara um pouco algumas tarefas de campo. O
ano entrara chuvoso e ele raramente tinha outra hipótese senão usar
os sábados para tratar das fazendas. O emprego semanal como
funcionário público não lhe deixava outra alternativa.
Hoje, Jaime ia com o
avô Daniel e o Ti Quim, primo em segundo grau e jornaleiro de
profissão. Jaime adorava estar na presença dos dois, porque o avô
também se tornava, nesses dias, mais divertido e tolerante. Eram
dias prazenteiros que passavam rápido. Jaime ajudava com gosto a
amarrar os espeques dos corrimões, tanto ao tronco das videiras,
como aos arames, e ainda se lembrava bem das palavras do primo Quim a
explicar como devia fazer para amarrar com o vime:
- Estás a ver como
eu faço? - Perguntava. E depois prosseguia a exemplificar e explicar
como só ele sabia: - Pegas na verga com a mão direita, passas por
trás do que queres amarrar e torces assim, o dedo gordo da outra mão
sempre a ajudar a torcer. Torces 4 ou 5 vezes e depois viras para
cima com uma torcedela mais forte. No fim cortas a verga que sobra,
com uma navalha ou uma tesoura de poda, e deixas, mais ou menos, o
mesmo que ficou em cima. E já está. Ora experimenta!
E Jaime fez e
conseguiu à primeira. Ainda não tinha 7 anos quando aprendeu. Agora
que já passara algum tempo, era já um mestre do ponto. Mas o avô
não lhe deixava ainda atar as vides. Essas, por enquanto, eram
apenas para os homens mais velhos.
O Ti Quim, mesmo
assim, divertia-se a ensinar o moço, porque ele sempre fora bem
mandado e Jaime ainda achava graça às piadas que dizia. Na sua
inocência, ia ouvindo as graçolas com duplo sentido do velho e nem
sempre captava a marosca. Contudo, estava sempre pronto para ouvir
mais. O que ele queria também era fazer piscinas a correr para cá e
para lá nos terrenos cheios de erva. Por vezes levavam as cabras e
os filhotes e ele andava por ali a saltitar de lado para lado, embora
o avô lhe ralhasse para ele estar sossegado. Na presença do primo
Quim, porém, o avô tornava-se mais jovial e aceitava melhor as suas
folestrias.
O Ti Quim, que
estava a arrancar um madeiro duma árvore que havia morrido, fez-lhe
uma pergunta, enquanto se aproximava dele, curioso:
-Sabes como é que
se arranca um toco?
-Não!
-És cavalo dum lado
e és cavalo do outro.
Uh, compreendo!
E aquela frase
começava a matracar na cabeça do miúdo, até que acabava por
perceber a dança das palavras marotas que o jornaleiro soltava, e
depois ia meter-se com ele outra vez:
-Ti Quim, você
arranca muitos tocos, não é?
E o velho ria-se com
ar divertido.
Quando iam amarrar a
vinha que o avô havia podado há uma semana atrás, voltou a chamar
Jaime para ao pé de si. E voltou a constatar que ele não esquecera
o que lhe ensinara um par de anos antes.
O rapaz ajeita-se
com o vime. Já reparaste?
É! Tem jeito, tem.
Está farto de pedir que lhe deixe amarrar as vides das videiras, mas
vou-lhe dizendo que não. Para agora fica pelos espeques e os arames.
- É humilde e
trabalhador!
Ao almoço, Jaime
gostava de ficar ali a ouvir as piadas do avô e do jornaleiro. Hoje
era um dia especial em que todos iam saboreando a apurada chanfana de
cabra que havia sobrado do aniversário do avô Daniel, por ter
completado 60 anos. Tinha mandado matar uma das cabras mais velhas
que criavam no Curral. Para a sobremesa havia uma "novedade"
- como dizia o Ti Quim - que a avó tinha também preparado no forno
a lenha. Era o folar da Páscoa. A Páscoa que estava já aí, e o
miúdo entrara já de férias da escola.
O Ti Quim olhou para
Jaime com ar matreiro.
- Queres cabra, ó
cabrito?
E o catraio,
inocente, respondeu-lhe que não queria mais, não, senhor.
- Não, primo Quim.
Não há cabrito. Os cabritos são meus amigos de brincadeiras. Eu
não quero comê-los.
- Pois são. Tens
razão, não podes fazer isso. É verdade. Não se faz mal aos
amigos.
O avô olhou com ar
cúmplice para o primo Quim, como a concordar com eles.
- Tu levaste um
valente susto de manhã, quando foste à venda?
Jaime segurou-se com
firmeza ao mocho de madeira em que estava sentado.
- O meu avô
contou-lhe, não foi?
- Pois foi. Sabes
que a gente fala nessas coisas.
- Mas eu pensava que
ele ia guardar segredo. Ele disse-lhe que me ia borrando de medo?
- Mais ou menos. Não
foi bem assim. Disse o jornaleiro a moderar a conversa.
- Mas não queria
que o primo Quim achasse que sou um bebé.
- Não és nada, ora
lá! Tu fizeste muito bem em fugir dali. Ainda podia sobrar p'ra ti.
Então, conta lá como foi!
- Não teve muita
graça, primo Quim. Quando cheguei a casa, ainda tremia todo das
pernas. Só via aquele homem alto a partir a garrafa na cabeça do
outro a escorrer em sangue.
O avô de Jaime
pedira-lhe para ele ir à mercearia junto à capela comprar figos
secos e cachaça para o primo Quim matar o bicho. Como era costume,
Jaime ia sem sequer protestar. Gostava de percorrer o trajeto até à
mercearia em alta velocidade. No entanto, para cima, por segurança,
para não quebrar nada, vinha sempre a andar. Mas naquele dia fora
uma das exceções.
O rapaz quase sempre
se surpreendia com algumas figuras peculiares que ia encontrando pelo
caminho. Primeiro, ainda perto de casa, passou pela tola da Lucinda.
Um daqueles dias, quando andava à lenha com o avô, ouvira-a falar
para um corvo, que, a crocitar lá do alto de um pinheiro, dizia que
lhe estava a adivinhar a morte:
- Vai-te embora, ó
diabo! Vai-te embora, ó Belzebu!
- Queres-me levar,
mas não levas
- Sou mais fina do
que tu.
E de costas para o
alto do pinheiro, de cu a apontar para o céu, mandava palmadas nas
nalgas, repetindo a cantilena.
Quando Jaime passou
no Terreiro, em frente ao chafariz, apercebeu-se de Laura a encher o
caneco com todo o cuidado. Mas hoje não ia ter tempo de inquietar a
pobre alma. Seguiu em frente soltando uma breve saudação:
- Bom dia, Ti Laura!
Hoje estou com pressa, pode encher à vontade.
- Bom dia,
rapazinho. Ainda bem! Vai com Deus!
Logo a seguir
cruzou-se com Manel Silva, o matador de gado, que segurava um
tracanaz de triga-milha com os dentes, enquanto debaixo do braço
esquerdo prendia a broa e debaixo do outro braço um grande naco de
carne gorda de porco, quase só sebo, e um saco de linhagem mal
dobrado e todo besuntado.
- Bom dia, Ti Manel!
O matador
desempastou uma frase qualquer da boca atravancada de comida, já o
moço havia seguido a grande velocidade.
Ao deixar Manel
Silva para trás, Jaime já ouvia outro homem a pregar da direção
da mercearia. Ao aproximar-se, um sujeito que tinha um nome esquisito
e que já tinha visto algumas vezes por ali, estava mais extasiado do
que nunca, elevando os braços ao ar, para logo de seguida se baixar
como se fosse fazer um vénia barulhenta em que balbuciava
impropérios a respeito de alguém.
Jaime entrou a
correr para dentro do chão térreo da mercearia e disse bom dia.
Ninguém o ouviu. Aguardou um bocado até que o sujeito que
barafustava se aproximou agressivo do merceeiro e lhe perguntou: -
Onde é que ele foi?
- Acho que foi ali
arrear o calhau à Ribeira Velha.
- Ai foi. Deixa-o cá
chegar que até se borra.
Enquanto isto, entra
o Ti 27. O merceeiro parece que sabia de antemão o que havia de
dizer:
- Já hoje são 21.
Queres um também?
- Bota lá um pra
mim!
O Ti 27 era um homem
alto e magro. A cabeça pequena entalada entre duas orelhas
proeminentes. Cliente e merceeiro, sorveram num trago o conteúdo dos
pequenos copos, quase em simultâneo. Jaime, que olhara de soslaio
para o homem recém entrado, não conseguiu evitar um sorriso meio
abafado.
Nesse instante,
entra Crespim na tasca, acabado de servir o corpo, e, sem sequer
poder pestanejar, leva com uma garrafa de vidro na testa.
Automaticamente, o sangue escorre-lhe pela cabeça e pelo rosto.
O merceeiro pega num
peso de 2 kg que tinha ali à mão e tenta em desespero impedir
desfecho ainda mais sério: - Ó caralho, para já ou parto-te os
cornos.
O cachopo, vendo tal
aparato, sai porta fora, só parando em casa, sem figos, nem cachaça,
nem nada.
Jaime começara por
contar a história com a ajuda do avô, que ia elucidando o primo
Quim. Estava já algo desentusiasmado de falar sobre o assunto,
quando se lembrou de outro pormenor:
- Depois também lá
entrou aquele homem que tem nome de número. Ó avô, porque é que
não tenho nome de número?
- Aquilo é uma
alcunha, não é o nome verdadeiro. O nome dele é António.
E o primo Quim
colocou um pouco de veneno na conversa:
- Isso é por causa
da artilharia.
O avô quis
disfarçar e atirou.
- De quem a tola da
Lucinda gosta, é desse, do 27.
- Isso tem a ver com
o futebol? - Perguntou Jaime, confundido.
O Ti Quim não
conseguindo esconder um sorriso matreiro: - Por quê, meu menino?
- Porque noutro dia
o homem do rádio dizia que o Eusébio já tinha sido o melhor
artilheiro da Europa.
- Ah, esse é um
verdadeiro pé canhão. Isso é artilharia da pesada, é outra coisa!
- Disse o Ti Quim com uma gargalhada.
- Mas assim o
Eusébio arrebenta com as balizas todas.
- Já não era a
primeira que caía ao chão. Aquilo é força de pantera, de Pantera
Negra.
- Eu gosto do
Eusébio, ó primo Quim.
- Isso é que é
falar, amigo! Rematou o primo Quim. - Então, e também gostas do
Benfica?
- Gosto mais do
Benfica que do Sporting.
- O teu avô não
vai ficar zangado contigo?
- Ele também não
me deixa jogar à bola, diz que dou cabo das biqueiras.
- Ó Daniel, tens de
deixar o miúdo jogar à bola com os colegas. Ao que ele corre, ainda
vai dar um extremo melhor que o Nené, o rapaz que veio de
Moçambique.
- Ele tem é de ir
para a fazenda connosco. Isso é que era bom.
- Ó primo Quim,
acho que já sei de que clube sou. Sou do Benfica.
-É assim mesmo. És
cá dos meus. Um dia ainda vais à bola comigo.
O avô interpôs-se
novamente na conversa: - Mete-lhe ideias na cabeça, mete. Voltando
ao anterior assunto. - Quis fugir o avô ao tema. - Então e que
disse o Ti 27?
- Que eu ouvisse,
nada.
O primo Quim galgou
mais um degrau na malícia. - Também estou convencido que a Lucinda
gosta é do 27. Andam os outros dois à bulha pela galdéria e ela
nem quer nenhum dos dois.
- Mas eles andam à
luta por uma mulher tão tola?
-É para tu veres.
Quando cresceres vê se arrumas uma rapariga com juízo. Aconselhou,
divertido, o primo Quim.
- E porque é que
ela quer namorar com o Ti 27?
-Já te disse. Deve
ser por causa da arma.
- Ai, ele também
tem uma arma? Pensava que era só o Crisóstomo Navalhas.
- Ah, não. Pelo
visto, o António 27 tem uma arma maior.
- O quê? O Ti
Crisóstomo tem uma navalha e o Ti 27 tem uma espada?
- É mais ou menos
isso. - Esclareceu o jornaleiro.
O avô Daniel estava
atento ao barulho que vinha da cozinha e quis atalhar novamente no
assunto.
- Desliga esse
rádio, mulher! À hora de comer não se houve música.
Apago já. Ouço só
esta canção.
Ouvia-se o vozeirão
de Simone de Oliveira a cantar a Desfolhada portuguesa. Jacinta
gostava muito de a ouvir, mas trazia-lhe recordações que a
emocionavam sobremaneira. Começava logo por mexer com ela no início
com aqueles versos "quem faz um filho/ fá-lo por gosto",
mas os restantes acabavam com o resto, e a mulher ia buscar
recordações ao fundo da alma que haveriam de emanar na forma de
dolorosas lágrimas. Lembrava-se daquela desfolhada na eira da quinta
da família Serra em que o seu Daniel lhe dera o primeiro beijo. Um
beijo que a fizera estremecer, porque já por ele andava encantada.
Lembrava-se das tardes e manhãs de Verão em que Daniel ficava ao pé
dela a namorar, enquanto ela lavava a roupa no rio Mondego.
Lembrava-se da boneca de trapos que fizera para Felicidade, a sua
única filha, que havia nascido apenas dois anos depois de dar o
primeiro beijo a Daniel. Felicidade que se afastava dela cada vez
mais. Restava-lhe o seu amado e único neto.
Com a Desfolhada,
Portugal fizera a última participação, até à data, no Festival
da Eurovisão. E talvez fosse aquela em que as pessoas tinham
depositado mais esperança numa boa classificação. A despeito
disso, a desilusão fora grande. A Desfolhada portuguesa arrecadara
nem uma mão cheia de pontos e um modesto 15º lugar. Era evidente
que a ditadura que esmagava a nação, havia praticamente quatro
décadas, estava a ter sérias consequências também a esse nível.
Pelo menos, era isso que muita gente pensava e afirmava. Apesar do
fracasso na classificação, Simone de Oliveira e toda a comitiva
nacional tiveram uma receção quase apoteótica à chegada a
Portugal. Mas neste ano não iríamos participar, como protesto
contra a politização do festival, nomeadamente, no sistema de
votação final. No ano anterior à interpretação da Simone em
Madrid, havia sido a Espanha a vencer. Eram fortes as suspeitas sobre
o envolvimento do ditador Franco a influenciar a organização e o
eventual suborno, pelos vistos, tivera resultados bem positivos.
Jacinta cruzou a
passagem que ligava a cozinha à sala de refeições. Trazia um folar
da Páscoa que aprendera a fazer com as suas primas dos Casais. A avó
de Jaime ainda tinha os olhos chorosos, quando o neto reparou no seu
rosto.
Avó voltaste a usar
daquela cebola forte?
Era assim que
Jacinta disfarçava os seus sentimentos, as suas lágrimas e as suas
lembranças, perante o seu querido neto.
O marido, apesar do
esforço de Jacinta em esconder, acabou por denunciar a sua tristeza:
- Agora, sempre que
ouve essa canção, põe-se a chorar.
- Não é nada. A
avozinha é que mexe com a cebola, ela é que sabe.
O primo Quim quis
levar para a brincadeira e arriscou uma comparação menos assertiva
:
- É como as
videiras, Jaime. Também já ficam a chorar depois da poda. É do
tempo já estar adiantado. Sabes?
Jacinta não se
manifestou mais, mas foi soltando um lamento em forma de ai.
- Ó mulher, podias
ir à loja do vinho buscar mais uma picheirita!
- Já lá vou, já
lá vou. Ainda tenho de ir tratar dos animais, de ir ao quintal às
batatas novas para o jantar e ainda quero ir apanhar a oliveira, o
alecrim e um pouco de louro para fazer o meu ramo e o do Jaime, para
ir benzer amanhã. Depois fica tarde. Tenho muito para fazer.
- Então vai lá tu,
Jaime. Vai lá!
O primo Quim
aproveitou a ausência de Jacinta e de Jaime para elogiar o rapaz: -
Tens feito um bom trabalho com a educação do miúdo!
- É um rapaz
trabalhador e muito esperto. Mas não tem sido nada fácil. Mais para
a Jacinta, mas também para mim.
- É uma pena o que
vos aconteceu, meu amigo. Mas o pior foi deles. E do miúdo também,
coitado, que ficou mais desamparado. Mas vocês têm levado o barco a
bom porto. Ele é muito obediente. Há poucos como o Jaime, é um
rapaz de boa catadura.
- Também acho que
sim, mas são tempos difíceis os que aí vêm. Vai entrar numa idade
do caraças. Tenho algum receio, mas cá estarei para o ajudar no que
for preciso. E quem dá o pão, também dá a criação.
- Tens razão, pois.
É preciso castigar com alguma coisa. É preciso rédea um bocado
curta. Mas ele é um bom moço.
Jaime subia,
entretanto, as escadas de acesso ao primeiro piso e trazia a picheira
cheia de vinho. Era vinho já da nova colheita, e, embora não fosse
muito forte, era um bom pingato. Aliás, apesar de Penacova ficar
encostada entre duas boas regiões vinícolas (o Dão e a Bairrada),
não era frequente haver produção de vinhos excelentes, à exceçao
de isso acontecer numa ou noutra terra mais propícia. Quando Daniel
decidia fazer a chanfana, costumava comprar um vinho carrascão e
graduado, de baga, na Bairrada. De resto, tinham tudo que era
preciso: a carne de chiba, o azeite, o sal e o colorau, o louro, a
cebola, o alho e o pimentão doce.
Depois era só
aquecer o forno a lenha e deixar que a chanfana se cozesse
lentamente. E nunca acrescentar vinho cru às caçoilas de barro
preto, sem lhe dar tempo para cozinhar várias horas, pois a chanfana
não deveria saber a ele. Seria desagradável. A carne assada teria
que estar bem apurada. É assim que ela sabe melhor.
Os dois homens
ouviram os passos do rapaz a chegar com o vinho.
- Então, Jaime,
essa pomada chega cá, ou não?
- Já vai, avô, já
vai aqui.
- Ora cá está o
meu palheto. Não está muito forte este ano, mas está saboroso. A
tua avó vai demorar? É que nós temos de ir para o Chão do Caneiro
acabar o trabalho. Amanhã vais benzer o ramo à vila com a tua avó.
Jaime gostava do
tempo da Páscoa, ainda mais que do Natal. O tempo também estava
alegre, por agora.
Entretanto, havia
chegado a avó com uma trouxa de roupa à cabeça.
-Vocês tem de ir
embora, meninos. Hoje está um dia bonito, soalheiro. Eu tenho de ir
lavar esta roupa ao rio. "Na semana de Ramos lava os teus panos,
que na da Paixão lavarás ou não".
- É isso mesmo
prima Jacinta, temos de aproveitar enquanto está bom. O Natal foi
seco, a Páscoa poderá ser molhada. "Natal ao sol, Páscoa ao
carvão".
-Pois, isso é bem
verdade, primo Joaquim.
- Vamos lá, vamos
lá! Disse o marido já com alguma pressa.
- Até logo, vão lá
com Deus.
- Até mais! "
Deus não se pôs na cruz por um só". Vamos ao trabalho, Ele
há-de ajudar-nos.
SEIS ANOS MAIS
TARDE
Jaime crescera
bastante, tinha agora 14 anos cheios de força. Já era um rapaz
alto, mais alto até que o avô. E mudara um pouco, claro, os seus
hábitos. Participava na equipa de futebol da terra e, aos sábados
ou domingos, quando havia jogo, fazia tudo para estar presente junto
dos seus companheiros de equipa. No entanto, continuava a prestar
muito apoio e companhia aos avós. Tinha grande disponibilidade para
o trabalho e apurara a habilidade que já todos lhe conheciam desde
muito novo. E tinha consciência disso.
Mas, hoje, Jaime,
tinha acordado mal disposto, tivera uma breve discussão com o avô e
as coisas não lhe estavam a sair como esperava. O avô dera-lhe a
notícia que tinham de ir para a fazenda concluir os últimos
trabalhos das podas, para não ser como nos outros anos: deixar tudo
para as últimas. Estávamos no fim-de-semana anterior ao
fim-de-semana do Carnaval. Não era tarde, e o avô de Jaime queria
resguardar-se, porque o primo Quim piorara das suas maleitas. Era
agora uma amostra do homem dinâmico que já fora. A juntar a isso,
afundava-se no vinho e na cachaça. Abusava bastante do consumo, o
que se manifestava também no próprio aspeto físico. Surgia sempre
com o rosto inchado e vermelhão como uma pichorra. Costumava dizer
para o primo Daniel que era dos remédios que tomava para aliviar as
dores.
E ele respondia-lhe
que, com esses remédios, valia mais beber uns bons canecos de vinho.
Aliás, Daniel também já descuidara, ele próprio, esse aspeto e
entrara num consumo mais excessivo de álcool. Ambos levavam muito
mais tempo para fazer as tarefas que antes era como se fosse quase
uma brincadeira, para eles. De tal modo que, Jaime sentia grande
orgulho por ser agora o mais rápido de todos. O avô até já o
deixava atar a vinha completamente. O rapaz tinha mesmo muita força
e sentia prazer em demonstrar isso mesmo junto dos idosos.
Na sexta-feira à
tarde, Jaime sugeriu ao avô que o deixasse livre no dia seguinte
para ir jogar à bola com os colegas. Mas Daniel não gostou da
ideia.
- Ó avô, eu depois
vou lá fazer o que ficar por fazer. Preciso de ir jogar à bola com
os meus amigos.
- Por quê? São
eles que te sustentam?
- Lá está você
com as suas coisas. Sabe muito bem que já sou despachado e que fica
tudo pronto.
- Não quero saber
nada disso. Vais e vais mesmo. Sabes bem que preciso da tua ajuda
para não sermos só nós dois. Dois velhos incapazes...
- Vá lá, avô.
Deixe lá ir jogar à bola!
- Isso não é
importante, o primo Quim também precisa de ser ajudado. Coitado do
homem.
- Oh, estou farto de
aturar o velho. É sempre a mesma coisa. Já não acho piada nenhuma
ao que ele diz. E para mais, parece uma lesma.
- Vamos lá ver a
educação. Agora é que vais mesmo... Acho que o homem te merece
mais respeito.
Jaime sentiu que
perdera o duelo com o avô e não valia a pena protestar. Ficou
desiludido, mas lembrou-se que, se conseguisse ser rápido o
suficiente, talvez o avô depois o deixasse sair mais cedo, e então,
preferiu não protestar mais.
Mas nada correu como
Jaime tinha planeado. O primo Quim até parecia estar a fazer de
propósito para as coisas não andarem mais depressa. Logo ele que
sabia que o tinha incentivado tanto a jogar futebol. E Jaime começou
a ficar desapacientado. O rapaz andava numa roda viva, primeiro a
juntar as podas da vinha e os paus velhos para fazer pequenos feixes,
para usar mais tarde como combustível para aquecer o forno. No
final, já tarde, faltava apenas atar a vinha, mas o Ti Quim e o avô
não tinham despacho nenhum. O jornaleiro passou junto a Jaime e
tentou meter conversa:
- Ó Jaime, já
estás um mestre do ponto, rapaz!
- Você é que me
saiu um bom ponto. - respondeu fria e bruscamente.
O Ti Quim não
gostou da expressão de arrogância que percebeu na resposta de
Jaime. Mas engoliu em seco e seguiu caminho. Ia tentar arrancar os
tocos de umas videiras velhas que haviam secado.
Jaime compreendeu
que o magoara. Porém, sentiu algum prazer momentâneo no modo como
tinha tratado o homem. Estava revoltado por já não ir a tempo de
jogar futebol nesse dia.
Continuou a
trabalhar, mas agora com mais calma. Já tinha perdido a esperança.
Porém, a revolta dentro dele tinha-se agravado.
Quando se aproximou
do primo Quim e do que ele estava a fazer, este tentou uma nova
abordagem:
- Ó Jaime, ainda
sabes como é que se arranca um toco? - E respondeu à sua própria
pergunta: - És cavalo dum lado e és cavalo do outro!
Repentinamente, o
rapaz atirou com ar sarcástico:
- Ó Ti Quim, você
é Quim venta!
O Ti Quim não achou
piada à tirada e respondeu-lhe sem respeito: - Vai bardamerda!
- Só se for para
si.
O jornaleiro perdeu
as estribeiras e mandou um monumental tabefe na cara do moço.
Ao longe, o avô já
se havia apercebido que algo não estava bem com o relacionamento dos
dois, mas olhou e já só viu o neto a correr desenfreado pelo campo
fora, em direção ao rio. Ainda lhe mandou um berro, mas não valeu
de nada.
Daniel caminhou
apressado para junto do primo. Quando chegou à sua beira verificou
que não estava bem. Tinha a mão direita agarrada ao peito e abanava
a cabeça visivelmente transtornado.
- Então, que se
passou, Joaquim, que raio houve para aqui?
- O teu neto foi uma
besta e tive que lhe espetar uma lamboirada, e agora saiu a correr
por aí abaixo. - E acabou por contar tudo o que havia sucedido ao
primo.
- Então, "ele
é que deu com as ventas no sedeiro"...Deixa-o cá chegar, que a
gente conversa... Mas que tens tu homem, dói-te alguma coisa?
- Aqui uma dor no
peito.
- Vê lá isso.
Queres ir para casa? É melhor ir embora! Eu vou contigo.
- E o teu neto?
Estou tão arrependido...
- Eu desconfio o que
ele há-de ter ido fazer. Se é para isto que conquistámos a
liberdade!
- Não confundas as
coisas. Ai! Eu também não devia ter dito o que disse.
- Descansa! Não
penses mais nisso. Ele há-de cá chegar. Vai ter de te pedir
desculpas, ai, isso vai!
- Por amor de Deus,
não batas no moço. É a última coisa que te peço.
Durante o caminho, a
dor de Joaquim foi-se agravando cada vez mais. Sentia já uma enorme
falta de ar e perdeu os sentidos ao chegar a casa. Não mais acordou.
O óbito foi declarado passado 4 horas, mas Jaime ainda não tinha
aparecido.
A avó de Jaime
andava numa inquietação, por todo o lado à procura do rapaz,
enquanto o marido havia ficado por casa, martirizado pelo falecimento
do primo e alerta para o caso de o neto chegar.
Ao longe, Jaime
ouviu o sino da capela tocar à morte. Passara bastante tempo ali a
ruminar na vida. Um mar de conflitos inundava a sua jovem cabeça. Ao
mesmo tempo que tinha receio de voltar a casa, sentia agora uma
terrível angústia, e o som lúgubre do sino agudizara ainda mais
esse sentimento. Decidiu partir em direção à aldeia. Quando chegou
junto ao chafariz, viu Manuel Silva, o matador, a beber água. Jaime
passou e andou, mas o homem apercebendo-se do ruído de passos,
inquiriu-o:
- Afinal, vais aí
rapaz? Os teus avós andam numa aflição por tua causa. Vai para
casa, perdido.
Jaime apressou o
passo e começou a correr em direção a casa. O coração a pular.
Da janela, a avó apercebeu-se da sua chegada, e precipitou-se para
ele.
- Oh, meu filho, o
que foste fazer, meu Deus.
- Então, avó não
chore. Que se passa, por quem tocou o sino à morte?
- Foi o primo, meu
filho, foi o primo Quim. Sentiu-se mal do coração.
- Oh, não! Eu não
queria que isso acontecesse, meu Deus. Ai, o primo Quim!
- Anda cá para
dentro. O teu avô está amargurado. Anda p'ra dentro, meu filho.
- Ó avó, o que vai
ser de nós... ?
- Anda p'ra dentro.
O teu avô não te faz mal. Eu já falei com ele.
Daniel tinha
escutado a mulher, mais atencioso que nunca. Ele nunca fora muito de
a ouvir, mas estava agora num estado completamente letárgico. A
realidade tinha-o de rastos. Quando o neto chegou ao pé dele, estava
com a cabeça encafuada e apoiada entre as palmas das mãos.
- Ó avô, quero
pedir-lhe desculpa!
- A quem devias
pedir desculpa já cá não está.
- Daniel, não digas
isso ao rapaz. Sabes bem que ele não tem culpa.
- Ó avô,
perdoe-me, por favor!
- Onde estiveste
este tempo todo...? Não te lembraste de nós, que podíamos estar
aflitos? Não estou em condições de falar contigo. Vai-te embora,
vai descansar, que depois falamos.
Jaime saiu em
direção ao quarto de dormir e a avó acompanhou-o.
- Anda cá. Não
tens fome? Come broa com alguma coisa. Há azeitonas, marmelada, o
que te apetecer. Eu não fiz comer nenhum para a ceia. Depois
deita-te na cama. Eu tenho de ir ajudar a velar o primo Quim. Logo
falo contigo, se estiveres acordado.
Jaime ficou no
quarto. Deitado, começou a olhar o teto, pensando em tudo o que
acontecera. A noite caiu como uma laje pesada. A mente do rapaz dava
voltas e voltas e não saía do mesmo pensamento. O primo Quim tinha
morrido e ele sentia-se culpado pela morte dele. Sentia a cabeça
doer como se tivesse um peso enorme em cima dela. Mas, entretanto,
foi pensando naquilo que aprendera com o primo Quim, na forma
simples, leve e divertida que ele tinha de lhe explicar aquele mundo
de gente um pouco estranha, que fizera com que o próprio mundo dele
fosse também um pouco mais divertido. Ele que lhe dizia para ser
sempre justo com as pessoas e que deveria encontrar uma forma de ser
equilibrada, entre a maneira de ser daquelas pessoas, meio
esquisitas, que costumava ver pela aldeia. Sorriu a olhar o escuro da
noite e pediu-lhe desculpa, primeiro em silêncio, depois proferindo
mesmo a frase de forma audível: - Desculpe, Ti Quim! Até sempre.
Tinham ajudado
também as palavras da avó a apaziguar mais a mente do rapaz: "Sabes
que o primo Quim gostava muito de ti. Era um camponês quase
analfabeto, mas, à sua maneira, muito sabedor. Olha que ele nunca
dizia uma asneira à tua frente. Tinha sempre muito cuidado.
Quando Jacinta
chegou, perto da meia-noite, Jaime e Daniel já haviam adormecido,
vencidos pelo cansaço. Foi primeiro ao quarto do neto e cobriu-o
cuidadosamente, com a roupa da cama e com carinho, dando-lhe um beijo
na face. Depois seguiu para junto de Daniel. O marido acordou quando
ela se aproximou da cama.
- Então, mulher?
Estava muita gente por lá? Acabei por dormitar um bocado. Amanhã
vou cedo contigo.
- Não, não estava
muita gente. Estava gente da terra, só, mais nada. Foi de repente,
ainda pouca gente sabe.
O enterro foi no dia
seguinte. Jaime acompanhou a avó nas cerimónias fúnebres e não
saiu da sua companhia. Foi o dia mais difícil da sua curta vida.
21 DE MARÇO DE 2023
Jaime nunca conheceu
verdadeiramente os pais. Nem os pais, nem os padrinhos. Havia-os
perdido num fatídico acidente de carro, numa viagem de regresso do
Santuário de Fátima, quando tinha apenas ano e meio. Pensava muitas
vezes neles, mas era mera idealização da sua cabeça. Na verdade,
só se lembra de ter visto duas fotos do casamento, e os avós tinham
sempre evitado falar no assunto, que se tinha tornado quase um tabu.
Com 16 anos, começou
a praticar karaté em Coimbra, incentivado por uma colega de trabalho
que viria a tornar-se, primeiro, sua namorada, e depois, sua esposa,
Flora, mãe dos seus 3 filhos. Nessa altura já o avô tinha também
morrido, resistindo pouco mais de 2 anos à morte do primo Quim. A
avó Jacinta foi o único verdadeiro apoio familiar que lhe restou,
tendo vivido em casa do neto até falecer, em 2003, com 92 anos.
Jaime, jamais se
esquecera das palavras do primo Quim : "Vês como os vimes são
fortes mas maleáveis para não partir? Hás-de ser forte e flexível
como o salgueiro." Aplicava muito frequentemente esta metáfora,
durante as suas aulas como instrutor de artes marciais, a sua
principal atividade profissional. No seu pomar, encostado à moradia
onde vivia com a sua esposa, plantou um exemplar daquela árvore,
também conhecida como vimeiro. Tratava dele e regava-o com bastante
frequência. Era como se fosse todo o cuidado que queria ter dado ao
primo Quim. Ali pelos meados do inverno podava-lhe os ramos todos e
guardava sempre um feixe de vimes que metia dentro de água, para se
manterem mais tempo flexíveis. E quando precisava de colocar um
tutor numa árvore ou atar a ramada de kiwis, usava-os. Estava a
preparar-se para plantar uma árvore no jardim japónico que mandara
construir recentemente. A esposa, que era professora primária e
praticante de ioga, oferecera-lhe um ácer anão, de cor bordô no
dia de aniversário. Tanto ele como Flora adoravam a cultura
oriental, especialmente, tudo o que tinha a ver com a nação
nipónica. A preferência pelo jardim japónico estava relacionada
com as tendências para as escolhas mais ecológicas, com muita
poupança, recirculação e depuração de água e criação de um
pequeno lago para desenvolvimento de um jardim mais vivo, com a
presença de peixes e outros seres vivos aquáticos. No dia da
árvore, Jaime gostava de plantar sempre alguma coisa, de preferência
uma árvore ou arbusto. Era uma data com muito simbolismo para ele,
por vários motivos. Para além de ser um motivo de comunhão com o
mundo natural em que punha em prática o tanto que o avô Daniel e o
amigo e primo Quim lhe haviam ensinado.
Flora aproximou-se
lentamente de Jaime. Ele apercebeu-se do leve ruído da sua chegada,
mas simulou estar distraído, sentindo as mãos macias da esposa a
tapar-lhe os olhos.
- Que está a fazer
o meu pão?
- Estava à espera
da minha Flora.
Ela, calmamente,
libertou-o do seu abraço meigo.
- Estive a olhar
para ti a usar esses vimes do salgueiro. Posso falar disto também no
meu trabalho sobre usos ecológicos, para mostrar aos meus alunos.
- Sim, tens razão.
- Ia pedir-te para
me explicares como se faz. Há quanto tempo é usada esta planta? O
que me souberes dizer, enfim...
- Não sei há
quanto tempo, mas podemos investigar sobre isso. E doutros usos para
além deste.
- Tem mais usos
ainda?
- Sim. Cestaria, por
exemplo. E com certeza não há memória disso.
Flora pegou no seu
smartphone e ligou os dados móveis. Colocou a palavra vimeiro no
motor de busca. Começou a ler um dos sites que lhe apareceu:
- Aqui diz que a
planta tem vários nomes. Um deles é salgueiro-francês. O nome
científico é Salix viminalis L. "A planta apresenta um ar
dramático depois de podada"
- É uma planta
"dramática", mesmo a condizer com a tua história.
- Tens razão, não
podia ser mais a propósito. É uma planta que me traz tanta
recordação.
Prefiro muito mais
usar estes métodos para este fim, do que os atuais: fios de
plástico, cordéis, etc, etc. É tão mais belo. É rústico, é
verdade, mas, mesmo assim, consegue ser tão elegante.
Flora aquiesceu:
- Realmente, há
coisas que são intemporais!
________
NOTA DE AUTOR
O conto intitulado
Forte e Flexível Como o Salgueiro é inspirado numa realidade rural
de há cerca de seis ou sete décadas a esta parte. É um trabalho de
ficção e as personagens são também fictícias. Qualquer
semelhança com factos ocorridos é mera coincidência.
NOTA DO EDITOR
Visite também (no Facebook) a página CARVOEIRA, TERRA AMIGA