A associação ECOS (Encontros Culturais e Obras Sociais) levou a efeito, no passado sábado, um programa cultural que teve como objectivos recordar e honrar a coragem e a solidariedade dos habitantes desta localidade, afirmar o orgulho de pertencer a este povo que se sentiu injustiçado e reagiu, e igualmente homenagear aqueles que acabaram por ser mortalmente atingidos.
O evento incluiu Missa em memória das vítimas, exposição documental (fundamentalmente recortes de imprensa) conferência pelos historiadores Prof. Doutor Luís Reis Torgal, que fez um enquadramento social e político daqueles tempos, e Dra. Maria da Luz Rosa, que desenvolveu a evolução dos acontecimentos, recriação teatral pelo Rancho Folclórico Juventude do Roxo, sob a orientação de Sandra Henriques, do grupo de teatro Partículas Soltas, de Penacova, declamação de um poema de Luís Pais Amante, alusivo à “revolta”, inauguração de um mural (autoria de João Carpinteiro Santos) e lanche partilhado.
“Não se tratou de uma revolta premeditada e organizada, mas de uma resposta solidária à prepotência e violência das forças da ordem. Com coragem e determinação, o povo uniu-se em defesa de dois filhos da mesma terra, contra uma lei injusta, saída do autoritarismo de governantes cegos à miséria que grassava por todo o país” – salientou Maria da Luz Rosa na sua intervenção, afirmando ainda: “É a este povo solidário e corajoso, trabalhador e humilde que eu tenho a enorme honra de pertencer. […] Que saibamos continuar a dignificar as nossas raízes e a nossa terra, vivendo aqui ou em qualquer parte do país ou do mundo”.
Transcrevemos, de seguida, a intervenção da Dr.a Maria da Luz Rosa:
Por causa de um cântaro de azeite…
25 de março de 1921, faz hoje 102 anos. Era um dia duplamente santo, sexta feira santa e dia de Nossa Senhora da Anunciação, assinalado por aqui com a devoção das 100 Avé Marias.
A laboriosa população do Roxo, fiel cumpridora dos preceitos católicos, fazia uma pausa no trabalho para celebrar o dia santo de guarda.
Pela manhã, a jovem Alexandrina de Jesus Duarte, a pedido do seu irmão José Duarte, trabalhador como tantos outros da aldeia numa das quintas de Coimbra, saiu de casa com um cântaro de azeite à cabeça com destino àquela cidade.
Ainda no caminho do Roxo para a Carapinheira, foi mandada parar por uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, que vigiava esta zona de fronteira entre o concelho de Penacova e o concelho de Coimbra.
Alexandrina fugiu, regressou à aldeia, pousou o cântaro no cimo das suas escadas, no exterior, e correu a casa do namorado, Bernardo Maia, a pedir auxílio. Este, no vigor da sua juventude, movido pelos sentimentos de obrigação de defesa da sua amada e de revolta pela possibilidade de perder tão precioso produto, dirigiu-se com a rapariga para o local onde tinha ficado o cântaro.
Aí chegados, confrontaram-se com os agentes da GNR, que facilmente tinham reconhecido o cântaro e reclamavam a apreensão do produto e a prisão da rapariga.
Era proibido transacionar azeite de um concelho para outro sem guias, Alexandrina sabia-o e por isso fugiu. Bernardo Maia resistiu à intenção dos elementos da guarda, a discussão começou e o jovem apelou à ajuda da população em defesa da namorada.
Não sendo dia de trabalho e estando a maioria da população em casa, numa aldeia pequena, facilmente se ouviram os tumultos. As pessoas juntaram-se e agiram em solidariedade com o casal. Sentiam, tal como os dois namorados, a injustiça de tirar a gente pobre e trabalhadora um dos poucos produtos que lhes podiam dar algum rendimento, para suportar as despesas do que era necessário e a terra não dava.
Nestas circunstâncias, a GNR retirou-se e regressou a Penacova.
Ainda no mesmo dia uma nova patrulha chegou à aldeia, agora mais reforçada, com “cinco praças e um cabo”, conforme refere a Gazeta de Coimbra de 29 de março de 1921.
Alguns habitantes em alerta rapidamente se juntaram na Eira do Barreiro, onde alguém de entre os populares decidiu tocar o sino a rebate. A aglomeração aumentou e as provocações também. Perante a concentração de pessoas e a incapacidade de impor a ordem, na ausência da colaboração da GNR de Poiares a quem tinham pedido ajuda, também estes militares da GNR de Penacova se retiraram.
Pouco depois, ainda com a população concentrada no largo, chegou o contingente da GNR de Poiares, vindo de outra direção. Mais violentos, mais hostis, disseram ter sido atingidos por paus e pedras e responderam a essa agressão com a força desproporcional das armas de fogo.
Assassinaram Alípio Rodrigues Russo e José Luís da Fonte, deixando-os estendidos no chão1. Este último trespassado por uma bala que, segundo Francisco da Fonseca, num registo sobre os acontecimentos feito em 27 de junho de 1921, ia dirigida a Bernardo Maia.
O namorado da Alexandrina já tinha cumprido serviço militar, era conhecedor de técnicas de combate e, segundo relatos dos contemporâneos, entre ziguezagues e rebolões pela Eira do Barreiro abaixo, conseguiu escapar às balas das autoridades.
Ao contrário, José Luís da Fonte, conhecido como José Carretas, que andava a tirar estrume aos animais e veio à rua ver os tumultos, não tendo ouvido a ordem de recolha obrigatória, por ser muito surdo, foi atingido mortalmente.
A terceira vítima mortal dos confrontos foi António Miguel, que, tendo sido ferido gravemente num braço, foi levado para o Hospital da Universidade, onde, apesar da amputação do braço ferido, viria a morrer em consequência dos graves ferimentos. António Miguel tinha 27 anos.
A notícia foi publicada no jornal Primeiro de Janeiro de 6 de abril de 1921, num resumo de notícias de Coimbra referentes a 2 de abril, mas também o Jornal de Penacova lhe fez referência.
A crueldade, impiedade e desumanidade das forças da ordem foi ao ponto de não permitirem que os familiares das vítimas lhes prestassem homenagem. Os corpos caídos no chão foram recolhidos pelas autoridades e levados para Penacova, onde foram sepultados no cemitério local.
Para além dos mortos, resultaram destes confrontos também vários populares feridos.
No dia seguinte a povoação foi cercada e invadida por um aterrorizador grupo de militares. Segundo o Jornal de Penacova de 02 de abril de 1921, eram “60 praças de infantaria da G.R. com as praças de Penacova e Poiares, e 40 praças de cavalaria” que revolveram tudo o que julgavam poder ser usado para esconderijo: casas de habitação, palheiros, currais de animais, cômoros ou até poços. O Roxo foi completamente varrido. Atos como furar montes de palha nos palheiros com forquilhas ou varas, na esperança de neles detetarem pessoas escondidas, ou cavalos que galopavam em estradas e carreiros, saltavam cômoros ou atropelavam pessoas, ficaram gravados na mente dos contemporâneos para o resto das suas vidas e perduraram na memória coletiva passando de geração em geração.
Desta autêntica caça ao homem resultaram dezenas de presos, 35 segundo a Gazeta de Coimbra ou 55 segundo o Jornal de Penacova, que foram conduzidos sob o comando de uma força de cavalaria para Coimbra. Foram para a inspeção da polícia, como refere o primeiro jornal, ou para o Governo Civil, segundo o jornal do concelho. No dia 29 de março ainda alguns dos detidos estavam a ser interrogados em Coimbra. Os outros já tinham regressado em liberdade, alguns dos quais, segundo a tradição oral, ainda durante o caminho de ida do Roxo a Coimbra.
Aqueles que puderam, se tinham familiares a morar fora da terra, trataram de se por a salvo e sair da aldeia. Isso aconteceu particularmente com as crianças. O meu avô paterno, na altura com 12 anos, fugiu com os irmãos para a Assafarge, para casa da madrinha da irmã Ermelinda. Por lá ficaram várias semanas, sem coragem de regressar à aldeia e os familiares sem tranquilidade para os ir buscar.
Foi a ele que ouvi os primeiros relatos destes acontecimentos, repetidos várias vezes já com a idade mais avançada, às vezes com as lágrimas nos olhos, e sempre com uma recomendação: “-Mas isto não se conta, filha”. Do outro lado da minha família o sofrimento não foi menor. A minha mãe conta que quando ia a Penacova com a minha avó não regressavam sem ir junto ao cemitério local fazer uma oração por alma do, respetivamente, avô e sogro. Diz que a mãe lhe dizia: “- Ó filha, vamos ali rezar um Pai Nosso por alma do avozinho que está ali sepultado”. Mas ficavam sempre do lado de fora do cemitério, porque temiam ser associadas ao familiar que aí jazia e motivar alguma espécie de crítica ou provocação. Tal o terror que ficou gravado na alma da nossa gente.
Segundo documentação interna da Guarda Nacional Republicana, de 10 de setembro de 1921, constante no Arquivo Histórico da GNR, dois dos militares de Poiares que atuaram no Roxo foram agraciados com louvores. O soldado António Correia Ralha foi louvado pelos seus atos de “energia, decisão e coragem (…) atingindo os agressores com tiros certeiros”. Cada um dos militares foi ainda recompensado pela instituição com 10 dias de licença.
Como é evidente, não houve cobertura jornalística dos acontecimentos do Roxo, a versão que passou para os meios de comunicação da época foi a versão que a GNR veiculou. Ninguém veio ouvir a população da aldeia para fazer uma leitura mais completa do sucedido.
Com base na versão das autoridades foi-se criando nessas primeiras décadas uma ideia muito negativa sobre os habitantes do Roxo.
Em 1 maio de 1921, o jornal O Progresso Lorvanense, numa notícia sobre acontecimentos ocorridos numa feira na Aveleira, iniciou o texto dizendo: “Casos há que bem revelam o atraso, cegueira ou malvadez de um povo. Pouco mais de um mês terá decorrido desde que se deram os lamentáveis acontecimentos no Roxo, e dos quais resultou ficarem sem vida três infelizes que nem sequer tiveram sepultura na sua freguesia natal, e já no dia 21 na feira da Aveleira se iam repetindo factos semelhantes. Parece que aquele povo, a respeito de civilização, anda com atrazo de duzentos, trezentos, quatrocentos ou mais anos”.
É este o início da notícia, ao continuar a leitura da mesma constata-se que não envolve nenhum habitante do Roxo, apenas envolve pessoas da Aveleira e de Lorvão, mas a referência aos acontecimentos da nossa aldeia estava lá.
Destaca-se dos vários meios de comunicação que publicaram a notícia o jornal O Despertar, este foi o único, dos meios de comunicação que li, a procurar entender e retratar os dois lados do conflito. Fê-lo na edição do dia 30 de março de 1921, onde refere:
“Os lamentáveis acontecimentos (…) do Roxo, povoação pacata e graciosa (…) dos quais resultou caírem varados pelas balas da força publica dois filhos do povo, teem sido desfavoravelmente comentados, não se encontrando rasão que justifique esses excessos, tão deshumanos como improprios dos nossos dias”. E acrescenta: “(…) desejamos que a corporação da Guarda Nacional Republicana viva mais da força do seu prestigio do que do prestigio da sua força (…) a sua missão, longe de provocar o odio das populações, antes se deve conduzir de forma a conquistar a simpatia pública (…)”. Termina esta notícia defendendo que “ (…) no caso de agora, a Guarda Nacional Republicana excedeu-se deshumanamente, tingindo de sangue e luto um lugarejo, cuja população apenas se exaltou diante duns míseros quartilhos de azeite. Não defendemos, é certo, esse povo pela atitude. Mas devemos-nos todos lembrar que a fome é inimiga das melhores virtudes (…) ao povo não se devem dar balas nem patas de cavalos quando, ele apenas pede pão!”.
Não queremos refazer a História, queremos completá-la. Os vários meios de comunicação que noticiaram os acontecimentos de 1921 no Roxo, embora com algumas contradições, tiveram todos a mesma fonte, a à época jovem GNR que precisava de afirmar a sua autoridade e legitimar a sua atuação.
Para além das contradições, há também mentiras, como aquela noticiada no jornal Primeiro de Janeiro de 27 de março de 1921. Diz que “Os sinos tocaram a rebate reunindo pessoas de várias povoações limítrofes”, referindo-se às aldeias de Dianteiro, Carapinheira e Aveleira, às quais a publicação do Jornal de Penacova afirmava ter sido pedida ajuda. As várias pessoas a quem ouvi o relato dos acontecimentos nunca fizeram referência a qualquer ajuda externa. Questionei recentemente alguns dos habitantes mais idosos e todos eles me disseram que nunca ouviram falar de ajuda de outras aldeias. De facto, dada a imprevisibilidade dos acontecimentos e a inexistência de meios de comunicação como os que hoje temos, não seria possível organizar a ajuda de pessoas externas à aldeia.
Contra paus e pedras com que um agente (segundo o Jornal de Penacova) ou três (segundo a Gazeta de Coimbra) foram agredidos, responderam com balas mortais que deixaram sem vida três filhos da terra. A crueldade chegou ao ponto de fazerem as famílias calar a dor da perda dos seus entes queridos, não permitindo sequer que velassem os corpos ou que estes fossem sepultados junto dos antepassados. Felizmente, sabemos que hoje os valores da GNR são outros e uma situação como a ocorrida no Roxo em 25 de março de 1921 seria completamente intolerável.
Não se tratou de uma revolta premeditada e organizada, mas de uma resposta solidária à prepotência e violência das forças da ordem. Com coragem e determinação, o povo uniu-se em defesa de dois filhos da mesma terra, contra uma lei injusta, saída do autoritarismo de governantes cegos à miséria que grassava por todo o país.
É a este povo solidário e corajoso, trabalhador e humilde que eu tenho a enorme honra de pertencer.
O Roxo não é só lindo pela beleza das suas paisagens, é também lindo pela beleza dos valores das suas gentes.
Somos solidários entre nós, acolhemos bem quem escolhe a aldeia para viver e somos solidários para com outros que fora daqui atravessam momentos difíceis, como aconteceu recentemente com a gigantesca e impressionante onda de solidariedade para com Pedrógão e Arganil.
Que saibamos continuar a dignificar as nossas raízes e a nossa terra, vivendo aqui ou em qualquer parte do país ou do mundo.
Nota: Agradeço ao Eduardo Ferreira e ao Manuel Jesus as pesquisas que efetuaram e os documentos que reuniram e partilharam comigo.
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1. N.R.: Seriam cinco da tarde. Alípio Matias (na imprensa da época identificado como Alípio Rodrigues Russo) e José Luís da Fonte, ambos casados, de 42 e 65 anos, respectivamente. Os corpos das vítimas foram levados pela Guarda para Penacova e sepultados no cemitério da Eirinha, de acordo com o Registo de Óbito da Conservatória de Penacova que, laconicamente, apenas refere: “Ignora-se quaisquer outros esclarecimentos”.
GALERIA FOTOGRÁFICA
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