quinta-feira, janeiro 20, 2022

Conto: A Bela Carvoeira

Administrada por Ulisses Baptista a página do facebook "CARVOEIRA TERRA AMIGA" tem vindo a publicar excelentes apontamentos sobre esta localidade da freguesia de Penacova. Com autorização do autor (como não poderia deixar de ser) publicamos o conto "BELA CARVOEIRA"



A BELA CARVOEIRA

(Conto)

Ulisses Baptista

- Acorda, homem! O teu irmão desespera. Há quanto tempo te chamo, António?
- Ó avó, perdoe-me! Há quanto tempo aqui estou assim?
- Não sei, filho. Essas reuniões com os homens da vila andam a fazer-te mal.
- Não é nada avó.
- Preciso de falar contigo, depois. É coisa séria. Ouviste?
- Está bem, pronto, já sei, avó.

António levantou a cabeça de cima da mesa. Estava a cabecear depois de ter permanecido num sono profundo. Perturbado, pela responsabilidade de ter de ir auxiliar o irmão, levantou-se num repente, pensando em como se havia deixado estar ali naquele propósito. Pegou um pedaço de pão de cima da mesa e saiu porta fora a correr em direção ao rio.
- Até mais, avó, falamos melhor quando regressar.
- Vai com Deus, meu filho. Deus vos abençoe!
Pedro Tomás tinha a barca atracada no Porto da Carvoeira. Trazia sal e pescado. Sardinha ainda fresca, em sal, e bacalhau salgado que chegara da Figueira da Foz. Pedro pediu às mulheres que se encontravam em terra para se aproximarem.
- Levem estas duas cestinhas, foi o que pude arranjar.
As mulheres obedeceram, aproximando-se.
- Homessa, o inverno irá ser duro! -disse a mais velha.
- O trigo é escasso e o vinho este ano é fraco. Chuva a mais, não ajuda a guardar nada. Digam ao António para vir, ele já cá deveria estar. A Foz do Alva espera-nos e temos ainda que carregar a barca. Amanhã partiremos cedo.
Pedro estava distraído a enrolar as cordas e dar alguma ordem ao convés quando António chegou. O barulho de passos próximos fez Pedro desviar a atenção.
- Pareces preocupado! Que te apoquenta? -dirigindo-se ao irmão recém chegado.
- Cansaço apenas. Preciso de um pouco de vinho.
Pedro tirou o espicho à pequena vasilha de madeira e serviu uma malga de vinho ao irmão.
- Não está muito fresco, mas bebe-se.
António provou o vinho fazendo uma careta:
- Podes beber o resto. Não quero mais.
- Não estou a reconhecer-te!
- Está quente, não gosto de vinho quente. Já é fraco. Espero que dure até termos vinho novo.
- Preocupa-me mais o pão. Há pouco centeio. O trigo já vem todo de fora, mas é muito caro no mercado. Não se pode comprar.
- Temos que seguir rio acima. Vamos falando enquanto navegamos. Temos muito que falar.
- É tudo cansaço, homem de Deus?
-Não, é fome, mesmo, e a cabeça tonta do que ouvi, mas preciso contar-te um segredo.
- Novidades? Nunca tiveste segredos comigo. Que segredo é esse?
-Temos agora 35 anos, fazemos diferença de 3 meses, mas nunca questionámos isso.
- Não. Realmente, algo não bate certo.
- Ontem tive uma conversa com a tua avó.
Pedro olhou de soslaio para António, nunca ouvira o irmão referir-se assim à avó de ambos.
- A minha avó e a tua, não?
- Que pensas sobre o nome do lugar?
- Está bem. Há aqui carvoeiros.
- Mas não são assim tantos, há outros ofícios. E os carvoeiros também são camponeses. -retorquiu António.
- Parecemos fidalgos a falar. Deixa-te dessas conversas.
- Bem, a verdade é que os fidalgos parecem gostar muito destas paragens. Eu não sou teu irmão. -disse António, bruscamente.
-Estás parvo. Que conversa é essa?
- É o segredo que te queria contar.
- De quem és filho, então?
- Sou filho de um fidalgo e de uma carvoeira, que, na verdade, nunca o foi.
- E quem te contou isso?
- A tua avó Ana, já te disse. Assim mo contou ela:
" A tua mãe era a mulher mais linda do povoado, morria de amores por um fidalgo que aqui costumava vir às terras de Penacova, mas que se perdia muito por aqui, porque, um dia, meteu os olhos em cima dela, e nunca mais descansou enquanto não a desencaminhou. Para falar a verdade ela também não descansou enquanto ele a não desencaminhou. D. Nuno Mendes Godinho era capitão de ordenanças da casa dos Ataídes, e desde 1421 que as terras de Penacova pertenciam a essa família dos Ataídes, uma gente abastada que também conspirou contra o rei D. João II. Como sabes, o senhor de Penacova é agora Afonso de Noronha, quarto Conde de Odemira, por se ter casado com D. Maria Ataíde, há uma meia dúzia de anos. Afonso de Noronha era filho de Sancho de Noronha, terceiro Conde de Odemira, amigo íntimo e parente de um navegador genovês que esteve a viver no reino alguns anos. O mesmo que dizem que descobriu as Índias Ocidentais. Muitos dessas famílias e de outras da nobreza fugiram para Castela e deram guarida ao dito navegador. Não sei como, este senhor que se encantou com a tua mãe, contava-lhe muitas destas coisas, em segredo. Ele dizia-lhe que temia pela morte, depois do rei D. João II ter descoberto que conspiravam contra ele. Poucos meses antes de tu nasceres, ele nunca mais cá apareceu. Ninguém sabe ao certo se ele foi preso, morto ou também fugiu para Castela. O que toda a gente sabe é que o rei D. João II teve sempre a nobreza debaixo de olho e nunca perdoou o que lhe fizeram, muito menos que os maiores nobres portugueses se tenham acolhido junto dos reis de Castela e tenham partilhado, com eles, os melhores conhecimentos e instrumentos de marear."
- António, isso parece uma história do arco-da-velha. Mas acredito na avó. Porque nunca ninguém nos falou nisso?
- Parece que tiveram medo das consequências. Tinham medo que pudéssemos sofrer represálias. Por isso, adotaram-me como se fosse da família, depois da minha mãe ter morrido quando me pariu.
- O rei D. João II foi um rei justo, todos sabemos. O povo e os mercadores costumam lembrar que só queria o bem da nação. Pena ter morrido novo. - disse Pedro a António.
- Sabes que não ligo muito a essas coisas, não sabes? Acho que nós só existimos para trabalhar para eles, é o que eu acho.
- Não achas também que estas terras que estão em baldio já deveriam estar preparadas para cultivo do tal milho grosso que veio das Índias?
- Acho que sim, e tenho feito pressão para isso junto dos representantes do concelho. Parece que na parte baixa do reino há já campos cheios deste novo cereal. - lembrou António.
- Pelo que se vê, pode ser uma boa ajuda para matar a fome ao povo e ao gado, e há mesmo quem use partes da planta para encher almofadas e colchões.
- Que é uma cultura mais rápida no desenlace, mas um pouco mais necessitada de acompanhamento, isso parece ser também verdade.
- O trabalho é o menos. Se houver o que comer, o povo trabalha. Estamos em Agosto, há carência de trigo, resta-nos, por agora, o centeio e a cevada. O carroceiro Manuel contou-me que há muita fome por lá para a terra dele.
- Por vezes, desespero, Pedro, a vontade que dá é abandonar as terras e ir trabalhar para a urbe. Os terrenos que estão à beira rio só têm servido para pastagens no Verão, por serem muito alagadiços no Inverno. As casas senhoriais continuam a chamar a si essas terras, e é preciso continuar as obras para impedir a passagem de tanta água e o assoreamento.
- Penso que nunca vamos poder usá-las para trigo ou centeio, mas podiam bem servir para o milho grosso. Dizem que esta cultura parece pedir, no tempo quente, muita água, especialmente nos anos mais agrestes.
- Espero que o concelho também se possa desenvolver mais a esse nível. Ainda assim, o esforço maior é sempre do povo. Somos nós que temos de trabalhar quase de graça para eles.
- Deixa-te de política, por agora, e conta lá o que disse mais a avó. Seja como for, não vou deixar de ser teu irmão só por causa disso.
- Nem eu, muito menos. A avó Ana é como se fosse nossa mãe. Ela conhece-nos tão bem. Quando me contou o início fiquei espantado. Aguarda para ouvires o resto:
"D. Nuno Mendes Godinho conheceu a tua mãe, ainda moça, e logo se encantou pela sua figura. Quando chegava perto do povoado, prendia o cavalo, junto à Ermida, num dos dois ciprestes; deixava que o cavalo matasse a sede no bebedouro de pedra e aguardava pela descida das lavadeiras. Quase sempre via a filha do carvoeiro, como era conhecida no povoado. Maria era bela como ele nunca vira beleza igual. Apesar de plebeia, sabia cuidar-se muito bem. Ao entardecer, já lusco fusco, gostava de sentir a água morna do Mondego, no tempo quente, a cair suavemente sobre si, o cabelo escuro, solto e molhado a delinear a curva dos seios, enquanto se aninhava, de cócaras, alagada de água até à cintura. Quase não havia dia que não cumprisse o seu ritual, que era também o ritual de muitas outras mulheres, embora não com a frequência que ela o fazia. Era recatada ao ponto de escolher sempre um local diferente para se furtar aos olhares curiosos, apesar dos mancebos se juntarem, à coca, atrás da vegetação.
Maria era bem torneada, duma elegância desconcertante; trigueira, habituada a ter o sol na pele, fruto do seu contacto com o campo e acostumada às lides domésticas, mas livre para decidir por si o que fazer. O mais triste é que, com ela, aconteceu o mesmo que acontecera à sua mãe, que também morrera quando a dera à luz. Parecia uma maldição. O marido permaneceu num luto amargo, durante mais de uma década, embora sempre preocupado de o esconder da filha, a bela Maria, uma encarnação da mulher, que fora a luz dos seus olhos. Era um pai amável, incapaz de lhe falar com modos graves, mas protetor, e até achava graça aos seus costumes. Chegou a dizer, algumas vezes, a quem lhe falava na filha, que era tão bela que temia um dia que fosse levada por um burguês ou um fidalgo.
E um dia aconteceu que se cruzaram com o olhar. Aqueles olhos amendoados enfeitiçaram o fidalgo. Ela pensava, em segredo, como seria se ele a levasse a cavalgar no seu cavalo; sempre sonhara na liberdade de percorrer os caminhos em torno do lugar, com os cabelos escuros e sedosos ao vento. Costumavam falar às escondidas, apesar de os olhares curiosos os surpreenderem muitas vezes. Eles disfarçavam sempre, e pensavam que ninguém sabia verdadeiramente que estavam enamorados. Um dia fez-lhe uma proposta. Ele sabia que era perigoso ser visto com uma plebeia, mas a sua beleza enlouquecia-o. Maria apaixonou-se pelo seu príncipe e ele chamava à sua donzela, «a bela carvoeira»:
- Queres andar comigo a cavalo? - perguntou D. Nuno a Maria.
- Não. Acho que não estou preparada, disse-lhe Maria com ar trocista.
- Porquê?
- Não sei. Tenho medo.
- Medo de quê, de mim?
- Não. Acho que não és capaz de me fazer mal. - desafiou, Maria, com um sorriso.
- Então, monta. És capaz?
Ela, com uma agilidade de o deixar de boca aberta, montou para o cavalo, atrás das costas de D. Nuno, e agarrou-se a ele com força.
- Estás preparado? Eu estou pronta.
- Segura-te bem!"
Pedro estava surpreendido ao ouvir o irmão contar-lhe o que a avó lhe contara a ele mesmo. Nunca imaginara que ele pudesse ter sangue nobre. A viagem rumo a cima, à Foz do Alva, correra sem sobressaltos. Tinham sido ajudados a descarregar o sal por dois homens do comprador. A barca vazia deslocava-se agora rio abaixo, com fluidez.
- Imaginas o que aconteceu a seguir, não imaginas? - perguntou António.
- A tua mãe casou às escondidas com o fidalgo.
- Achas isso possível? A vida esquentou para eles, mas não a esse ponto.
- Quanto tempo conseguiram viver aquela história de puro amor?
- A avó não sabe ao certo, mas ele engravidou-a pouco tempo depois do primeiro encontro a sério; ele gostava muito também era de conversar com ela, como me contou a avó:
" António, acredita que a tua mãe deve ter conversado muito com este fidalgo; para além de tudo o mais que eles fizeram, mal ou bem feito, eram verdadeiros confidentes um do outro. Ela contou-me estas coisas todas nos últimos meses de gravidez. Implorou-me que a ajudasse e que não deixasse que ninguém te tirasse, nem do ventre, nem depois de nasceres. Tinha escolhido o mesmo nome do pai para te dar quando nascesses. Só te não pusemos esse nome para te proteger.
Como já te disse, depois das conspirações contra D. João II , muitos dos nobres envolvidos, bem como os seus cúmplices, foram mortos ou presos, enquanto aqueles que escaparam procuravam refúgio em Sevilha, ao abrigo da corte castelhana.
A indústria naval precisava de muita madeira e muitas terras do reino estavam a ser exploradas para esse fim. As terras de Penacova tiveram a mesma sorte, e como sabes, ainda hoje é pior.
As cortes querem continuar a viver sempre de forma rica e faustosa, enquanto a população empobrece, com um Império para manter. Mas, como bem sabes, D. Manuel I passou a governar tentando percorrer o mesmo caminho trilhado pelo seu primo e cunhado, que tirara inúmeras regalias à nobreza. A morte de D. João II, em 1495, e a do seu filho Afonso, quatro anos antes, que seria o seu sucessor legítimo, foram vistas como suspeitas. D. Afonso teria sido um sério candidato a governar também a coroa de Castela, uma vez que aquela estava, na altura, a atravessar uma crise de sucessão, e o jovem príncipe havia casado com a herdeira do trono de Castela, D. Isabel.
Ao contrário de seu pai, D. Afonso V, D. João II exercera o seu reinado com pulso de ferro. D. Afonso V, concedera enormes regalias à alta nobreza, teve um reinado bastante longo em que a nobreza se sentiu adulada e privilegiada. Este rei governou alimentando sonhos de expansão, idolatrando e beneficiando também o alto clero. Parece ter ignorado que o mundo estava em mudança, sem dar grande valor ao desenvolvimento mercantil e à modernização que se fazia sentir e que estava a mudar o modo de vida e de pensar das pessoas. Para ele, o esforço feito pelos portugueses nas suas viagens marítimas só poderiam fazer sentido se se cumprissem as suas ilusões fabulosas. Por seu lado, o filho, D. João II, viera a governar de forma arguta e inteligente, pretendendo orientar o reino para a modernidade. Aqueles que não lhe quiseram seguir os passos foram avisados. Entre os seus mais diretos adversários estavam os membros das famílias nobres mais importantes do reino. Quando o rei descobriu a primeira conspiração, mandou cortar a cabeça ao duque de Bragança, cuja família era a mais interessada em tirar D. João II do trono. Na segunda conspiração, poucos meses depois, o principal mentor era o seu primo e cunhado, D. Diogo, duque de Viseu. D. João II queria que o reino se desenvolvesse e, para tal, era necessário conceder direitos aos representantes dos concelhos, sempre com a supervisão do poder central. Era necessário modernizar o reino e continuar a campanha de comercialização com outros povos longínquos, através das novas rotas comerciais marítimas. Quando D. Manuel I chegou ao poder, após a morte do cunhado e primo, embora tentasse continuar com algumas das políticas do anterior governante, apoiou o regresso da maioria dos nobres que tinham estado exilados, e restitui-lhes as terras e os títulos que haviam perdido. Foi um rei que continuou a apoiar a expansão marítima e concedeu forais novos a muitas cidades e vilas, entre as quais, Penacova, em 1514. Foi fruto disso que a região, especialmente nas zonas ribeirinhas, também se começou a desenvolver, tendo começado a ser edificadas obras de reabilitação dos terrenos marginais ao rio Mondego.
Tu nasceste em 1483 e o teu pai nunca mais foi visto por aqui. É natural que tenha sido apanhado pela argúcia de D. João II, e tenha levado por tabela. D. João II era um rei sem medo, que não teve qualquer problema em apunhalar com as próprias mãos o Duque de Viseu. Apesar de algumas das mais altas figuras da nobreza o terem traído, ele descobriu em pouco tempo quem o quis prejudicar porque tinha também homens fortes do lado dele. Na altura todo o reino soube do sucedido e a sua coragem e lealdade ao reino, bem como a sua responsabilidade, para com os seus súbditos, foram muito faladas.
O teu pai pôde muito bem ter sido apanhado nas malhas do poder de D. João II. Só Deus sabe o que ele também teria andado a tramar para isso ter acontecido. Ou até talvez ele possa ter sido vítima por estar do lado errado. Mas a tua mãe manteve sempre uma grande esperança nas promessas e nas palavras de D. Nuno. Ela era ainda jovem quando tu nasceste, tinha acabado de fazer 18 anos. Ele parecia uns anos mais velho. Talvez tivesse mais 10 anos do que ela, mas tinha uma figura imponente e elegante. Acho que ela se apaixonou por ele assim que o viu."
- É uma história triste, irmão! A tua mãe não teve grande sorte, mas viveu a vida intensamente.
- Concordo contigo. E o que tiramos da vida é mesmo isso, vivê-la intensamente.
- E nós? Vamos para Coimbra logo cedo?
- Acho que é melhor não deixar aqui a barca carregada muito tempo. Dormimos duas ou três horas e partimos.
António e Pedro haviam acabado de carregar a barca com a ajuda das mulheres que, durante o dia, tinham também estado a transportar lenha, à cabeça, para o Porto do rio, embora a maioria tivesse chegado de carro de bois. Era um trabalho árduo e esgotante.
Partiram pela madrugada, depois de terem dormido algumas horas na própria barca. Estava uma noite amena, mas com uma leve brisa de vento frio e inconstante, que criava arrepios ocasionais. Só ouviram os galos a cantar já ao passar a Rebordosa, ainda fazia muito escuro.
António ia ao leme quase sonolento, havia largos minutos que sentia uma força enorme a baixar-lhe as pálpebras.
O irmão gritou por ele no meio da escuridão da noite: - António, quero-te ao leme, irmão!
O murmúrio da água a correr foi a única resposta.
- ANTÓNIO, OLHA O LEME!
António não reagiu a tempo, o estrondo da barca, a partir-se em duas contra o penedo bicudo, fê-lo reagir automaticamente e ele sentiu os braços fortes de pedra a jogá-lo borda fora, enquanto embatia com estrondo com a cabeça na água fria, a dor aguda a fazê-lo acordar, definitivamente, ensopado em água.
- Então meu filho, estás melhor? - perguntou-lhe a avó, preocupada.
- Acho que as febres baixaram, mas dói-me a cabeça. Parece que levei um coice de uma mula.
- As cataplasmas de salgueiro devem ter-te feito bem. Espero que fiques bom depressa.
- E a Maria, avó, e o menino?
- Não te preocupes, meu filho, estão bem. É melhor não virem à tua beira. Ainda é cedo. Logo hão-de vir aqui perto da porta para te falar. O teu irmão é que passou há pouco, ainda gritou duas vezes por ti, dali da porta, mas estavas ainda a dormir e parecias bastante agitado, e eu disse-lhe que era melhor passar depois.
- Fez bem avó, tive um sonho terrível.
- Bem me pareceu, pelo tua aflição a respirar.
- Avó, é verdade que a nossa terra se chama assim por causa da minha mãe?
- É verdade, sim. A tua mãe era muito bela e o povo costumava dizer que vinha à terra da carvoeira. Daí passou a dizer apenas que vinha à carvoeira, e o hábito pegou.
- Então e os cravos nas lousas às janelas, não contribuíram para nada?
- Contribuíram para alindar a aldeia toda, porque a tua mãe era muito extremosa nesse gosto de ter sempre cravos bonitos. Foi ela que levou toda a gente a querer enfeitar assim as casas.
- Sabe que sonhei que o meu irmão era Tomás e que nós não éramos irmãos. Que éramos quase da mesma idade. E que eu tinha sido adotado pela família dele.
- Mas tu e ele são bem Godinhos.
- Eu sei avó. Mas nos sonhos tudo é possível. Aquele fidalgo que vinha aí à terra antigamente não se chamava D. Nuno?
- Sim. Mas não mais foi visto por aí.
- No meu sonho, ele era meu pai e a minha mãe era uma rapariga muito bonita da aldeia, filha do meu pai.
A avó de António soltou uma risada meio abafada.
- Bem, na verdade, esse fidalgo quis um dia dar conversa à tua mãe, mas o teu pai era um calmeirão que impunha respeito e era bastante ciumento. Só a presença dele já assustava qualquer um que se atrevesse sequer a aproximar dela. Infelizmente, não conheceste a tua mãe. Foste aleitado por outra mulher e criado por nós.
- E o antigo nome da aldeia, Vila Nova dos laranjais, donde provém?
- Ah, isso é outra história. Mas é melhor descansares, agora. Ainda estás muito fraco. Bebe esta água de freixo morna para te baixar mais as febres. Esse assunto fica para outra altura.
Fim
Carvoeira, terra amiga.

Sem comentários:

Enviar um comentário