Em complemento dos textos que publicámos recentemente sobre algumas
das repercussões da 3ª invasão francesa no concelho de Penacova, apresentamos
hoje o relato de um padre de Arganil que nos dá uma imagem do terror que se
viveu na Beira Serra. Arganil, Poiares, Góis, Lousã foram concelhos muito
martirizados. Entre nós, e como já vimos, foram também as freguesias do Alto
Concelho, mais próximas daquelas zonas, que mais sofreram, bem como as aldeias
da freguesia de Penacova vizinhas de Poiares.
Que seja do nosso conhecimento ainda não existe nenhum
estudo sobre o concelho de Penacova. Os nossos apontamentos resultaram da
consulta dos relatos feitos pela mão dos párocos e/ou arciprestes, em 1811, e que se encontram disponíveis no Arquivo da Universidade. Sobre a região que vai de Pombal até Gouveia, já se debruçou
a historiadora da Universidade de Coimbra, Maria Antónia Lopes. É desta investigadora o texto que passamos a
transcrever:
Mapa publicado no estudo citado de Maria Antónia Lopes |
“Em Março de 1811 os Franceses iniciaram a retirada.
Desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, levaram
as atrocidades ao último grau, apanhando as populações em fuga, a quem
torturavam e matavam para lhes extorquir víveres. Coimbra foi poupada, pois
Massena não conseguiu entrar na cidade. Conduziu então os seus homens para
Espanha pela margem sul do rio Mondego, onde a carnificina prosseguiu. (…) Por
esta altura, a 23 de Março de 1811, o padre Manuel Gomes Nogueira, em carta ao
seu irmão José Acúrsio das Neves, relata-lhe o que tinham sofrido na zona de
Arganil às mãos dos invasores. A citação é longa, mas justifica-se:
Os primeiros que nos
acometeram, foi em 14 de Fevereiro, aparecendo de repente em Góis uma divisão
[...] e somente junto da vila se deu notícia deles, e se não fosse um homem que
os viu entravam sem serem vistos.
No pequeno espaço que
mediou até eles se apresentarem defronte da terra, se ajuntaram algumas
espingardas que de dentro da vila fizeram fogo para além da ponte e eles se
retiraram e deixaram 7 ou 8 bois que os de Góis lhes tomaram e logo puseram a
salvo para a freguesia de Cadafaz. Mas os malditos se foram unir com outros que
tinham ficado mais atrasados, entraram na vila e fizeram as barbaridades do
costume [...].
No dia 17 do mesmo Fevereiro estiveram também
a pontos de entrar em Arganil, sem serem pressentidos, pois tendo-se retirado a
15 de Góis para Serpins, com imensos gados e roubos de Góis, Várzea [de Góis,
actual Vila Nova do Ceira] e toda a Serra de Santa Quitéria, estava Arganil
mais sossegada, mas no dito dia 17, que era domingo, de manhã ao sair da
primeira missa, chegou a noticia de que já vinham na Ribeira da Aveia (vê agora
o perigo que houve, se entravam enquanto se estava à primeira missa). Ninguém
se persuadia de tal por ser voz só de um homem, mas veio segundo, que confirmou
o primeiro, e então se pôs tudo em reboliço e fugida, e eles entraram de repente,
como galgos atrás da gente, e imediatamente subiram ao Casal [da] Nogueira e se
espalharam pelos montes, vales, pinhais, mataram 5 pessoas e feriram muitas
[...].
Estiveram neste dia em Arganil somente 2 para
3 horas; passaram a Celavisa, onde mataram e fizeram o mesmo que em Arganil
[...].
No dia 12 de Março
tornaram a entrar os Franceses em Arganil. No dia 14 subiram à serra no lugar
da Aveleira [...] onde apanharam muitos gados, vieram sobre Adela e fizeram
cerco a toda a ribeira de Celavisa, onde não ficou moita que não fosse mexida
[…].
Estiveram sempre
passando Franceses todos os dias seguintes, ora mais ora menos, até que no dia
17 foi a maior enchente de cavalaria e infantaria, e então foi a destruição de
Arganil. Mataram 10 pessoas que ainda apanharam”. [...]
“No dia 19 logo de
manhã me constou aqui da chegada das nossas tropas [...]. Desci logo à vila
[Arganil] e fui dos primeiros que lá entrámos depois dos Franceses. Corri as
casas dos nossos amigos e as igrejas todas e causava horror ver semelhante
confusão: as portas quebradas, as casas não pareciam senão uma confusão,
trastes despedaçados, tudo revolto, nada em seu lugar, as lojas cavadas,
quantos esconderijos se tinham feito para cada um refugiar o que podia, tudo
descoberto, pelas ruas louças quebradas, animais mortos, uns inteiros, outros
em pedaços, de outros só as entranhas com fétido por toda a parte.
Parti logo para o
Sarzedo e por toda a estrada abaixo eram os mesmos vestígios de animais mortos”
[... Em] Sarzedo fizeram muita carnagem, porque os habitantes como lá não
tinham ido Franceses não se acautelaram a si nem aos seus gados; e, portanto,
perderam tudo e morreu muita gente: o número não o posso ainda dizer, mas
consta-me que morreram famílias inteiras”. “
... Agora o que mais
deve lamentar-se é a fome, porque não só os pobres, mas também os ricos não têm
coisa alguma que comam, porque por onde passou a tormenta nada absolutamente
ficou, nem de mantimentos, nem de carnes, nem de hortaliças. E se alguma coisa
escapou ao inimigo, o limpou a nossa tropa e assim mesmo os pobres soldados vão
mortos de fome.”
FONTE: Maria Antónia Lopes, Sofrimentos das populações na
terceira invasão francesa. De Gouveia a Pombal * (Publicado como capítulo in O Exército
Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular (volume III -
2010-2011), Lisboa/Parede, Exército Português/Tribuna da História, 2011, pp.
299-323).
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