quarta-feira, agosto 06, 2025

Alexandre Herculano nos Discursos de Alves Mendes

A trasladação dos restos mortais de Alexandre Herculano, do jazigo da Família Gorjão, em Santa Iria da Azóia, para a Sala do Capítulo no Mosteiro dos Jerónimos, ocorreu em 1888. O autor do discurso central das cerimónias foi Alves Mendes, esse ilustre penacovense, essa figura proeminente da Oratória Sagrada. 

O Discurso, intitulado “Herculano”, proferido no Templo de Belém, em 28 de Junho de 1888, encontra-se publicado. Aqui fica um excerto dessa intervenção que, na nossa opinião, revela o alto nível cultural de Alves Mendes. Vale a pena ler…


(…) A Historia é uma ressurreição; fazer história é refazer a vida. Eis a máxima grandeza de Herculano: ele exumou do cemitério dos séculos, recomposta, rediviva, palpitante, a origem e formação do seu país. 

Parece que o poder dum só homem, por hercúleo que ele fosse, jamais chegaria a tanto. Pois chegou o poder de Herculano. Desamparado de governos, desamparado de incentivos, desamparado de meios, pobre trabalhador plebeu! À custa do próprio esforço, sozinho, levantou monumentalmente, irreversivelmente a sua obra: deu-lhe traça e carreou-lhe pedra e cimento. Foi tudo! Cabeça e braço, arquitecto e operário, olho perspícuo investigando os factos e pulso amestrado ferindo a luz. Foi tudo, fez tudo! 

Só um prodígio de talento e um prodígio de vontade vingariam tamanha empresa; e Herculano era esse prodígio. Herculano era o critério e a tenacidade em pessoa: era o génio histórico, o senso histórico feito homem.

Da história deve estar ausente a paixão, porque a história é um processo sereno; e à história deve estar presente a filosofia, porque a história é uma ciência. Sobre a onda dos acontecimentos chamada vida dum povo, corre o vento das ideias chamado espírito dum século. O historiador tem a julgar aqueles com a imparcialidade de juiz e tem a ponderar estas com a sagacidade de filósofo. Fez tudo isso e foi tudo isso Herculano: foi, como os grandes historiadores antigos, inflexo juiz, e foi, principalmente, como os grandes historiadores modernos, profundo filósofo.

Juntou à história, que é uma ciência experimental, uma ciência de factos, a filosofia, que é uma ciência de leis, uma ciência de princípios; à história, que é o fenómeno, a filosofia que é a razão do fenómeno; à história, que é a realidade, a filosofia, que é o ideal; à historia, que é a existência na corrente da sua transformação contínua, a filosofia, que é o pensamento na fulgurância da sua perene luz. Opulentou-se, enfim, com uma das maiores conquistas deste século, a Filosofia da História; e dotou a sua gente, dignificou a sua gente com uma das maiores obras portuguesas, com uma obra crítica, com uma obra-prima no seu género e, no seu influxo, só comparável aos Lusíadas: a História de Portugal.

Quando a justiça de Deus põe a pena na deste rei da poesia, da literatura e da história, este potentado que dominava com autoridade absoluta as mais vastas e mais formosas províncias do saber, depõe um dia a sua pena de ouro, o seu ceptro de diamante, e troca abruptamente o império das letras pelo cultivo dos campos! 

Fique a tremenda culpa a quem toca.  Fique, e seja ela implacavelmente castigada, justiçada nesse supremo tribunal humano que tem nome de Posteridade. É certo que a grande perda nacional, o grande luto nacional devem assinar-se desde essa hora sinistra, negra, em que a moderna geração portuguesa assim ficou orfanada do seu mentor e do seu mestre. (...)

Alves Mendes, Discursos (inéditos e dispersos) 1886-1888, A. M. Pereira, 1889 


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