Texto do Professor Nelson Correia Borges (1977)
Vai longe já o colorido pitoresco de outrora das romarias da região. Às carroças e carros de bois enfeitados com verdura e fitas sucedeu o automóvel trivial; os altifalantes, berrando aos quatro ventos o último êxito da pop music, expulsaram as loas à santinha e os cantares regionais acompanhados pelo “ferum-ferum” da viola toeira. Coisas irreversíveis da nossa civilização. Já Gil Vicente se queixava em 1519:
“Em Portugal vi eu jáEm cada casa pandeiro,
E gaita em cada palheiro;
E de vinte anos a cá
Não há gaita nem gaiteiro.”
E também, anais recentemente (1902), exclamava Trindade Coelho: “Agora parece que vai aquilo tudo por água abaixo Deram as tricanas em meter na dança coisas de sala, marcadas em francês»
Ora, das romarias da região, uma das mais !concorridas era a da Senhora do Mont' Alto de Penacova. Povoavam-se as veredas das encostas no dia 8 ide Setembro, também conhecido por Dia das Sete Senhoras. Ao terreiro da capela afluía de todos os lados uma multidão de romeiros, ansiosos por cultuar a Mãe de Deus e também por conviver na mais sã alegria e descansar das lides da custosa lavoura ou dos palitos.
Entoavam-se loas ingénuas e dançava-se o vira. ou o malhão, ou escutava-se o desafio dos mais afamados cantadores.
Ainda andam na outiva algumas quadras alusivas. Em Lorvão recolhemos as que a seguir se arquivam.
A primeira tem o sabor das coisas reencontradas, depois de há muito perdidas :
A Senhora do Mont’Alto
Anda no monte sem roca,
Para acabar uma meada
Falta-lhe uma maçaroca.
As coisas simples do seu viver são transportadas pelo povo para o objecto da sua poesia, não sem um certo optimismo que parece também ter-se evolado na azáfama da vida moderna. Repare-se na carinhosa intimidade que se desprende dos seguintes versos:
A Senhora do Mont'Alto
Lá vai pelo monte acima,
Leva a cestinha no braço
Parra fazer a vindima.
A Senhora do Mont'Alto
Mandou-me agora chamar,
Que tem o seu manto roto,
Quer que eu lho vá remendar!
Se em Setembro é mês de vindimas, também é mudança de ritmo de vida quotidiana: começa o serão e acaba a sesta. A isso alude com um certo chiste a seguinte quadra:
Senhora do Mont'Alto
Eu não volto à vossa festa
Que me tirais a merenda
E mai-la hora da sesta!
Quadras como estas haverá muitas mais. Valia a pena anotá-las todas para um cancioneiro. São tesouros de arte popular e expoentes de uma cultura que aos poucos se vai perdendo. (...)
Nos carreiros dos montes cresce hoje a erva e o mato, mas a Senhora do Mont'Alto, apesar de toda a agitada vida moderna, avessa a sacrifícios, ainda tem os seus romeiros fiéis, por isso...continuaremos.
Correia Borges
NP 16 DE SETEMBRO DE 1977
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