Muitas das compilações existentes sobre lendas portuguesas a referem, atribuindo-a à tradição oral da zona de Pombeiro da Beira, mas muito raramente é feita referência à versão do Visconde Sanches de Frias na monografia sobre aquela localidade publicada em 1896.
“Mondego, Alva e Zêzere, nascidos
da mesma mãe, serpeando pelas vertentes da serra da Estrela, em santa irmandade,
amigos e camaradas, viviam tranquilos e alegres, mirando-se cada qual na
limpidez das suas águas, e escondendo-se nas gargantas, furnas e sorvedoiros da
gigantesca serra. Umas tardes, já quase à boca da noite, envolveram-se em azeda
conversa, porque se arrogaram valentias, ao que parece prometeram romper as
prisões, que os detinham, trovejaram rivalidades, e acabaram por desafiar-se para
uma corrida vertiginosa, cuja meta seria o corpo enormíssimo do mar. O
primeiro, que lá esbarrasse...
- Qual dos três saberia
melhormente o caminho? — Qual desenvolveria maior tafularia e força? — Quem
seria o primeiro a oferecer as suas águas dulcíssimas às salsas águas do mar?
Era o que ia ver-se.
O Mondego, astuto, forte e
madrugador, levantou-se cedo, e começou a correr brandamente, para não fazer barulho
e não levantar suspeitas, é de crer, desde as vizinhanças da Guarda nos
territórios de Celorico, Gouveia, Manteigas, Canas de Senhorim, e dirigiu se,
depois de se ter robustecido com a ajuda de colegas, que vieram cumprimentá-lo,
à Raiva, na direcção de Coimbra, depois de ter atravessado ofegante as duas Beiras.
O Zêzere, que também estava alerta, entrou de mover-se ao mesmo tempo que o
Mondego, ocultando-se até certa distância nas anfractuosidades do seu leito penhascoso;
foi direito propriamente a Manteigas, onde perdeu de vista o colega, passou
também nos terrenos da Guarda, correu para o Fundão, desnorteou, obliquando para
Pedrogão Grande; e finalmente, depois de ter atravessado três províncias, deu consigo
em Constância, na Estremadura, abraçando-se ao Tejo, a que ofereceu as suas
águas, já cansado de caminhar umas 40 léguas e desesperançado de alcançar o
mar.
O Alva, dorminhoco e poeta,
embora esses atributos não sejam sinónimos, entreteve-se a contemplar as estrelas,
mais do que era prudente, adormeceu confiado no seu génio insofrido e nervoso;
e, quando despontou, alto dia, estremunhado, em sobressalto, avistou os colegas
a correr sobre distâncias a perder de vista. Um desastre, não havia que ver!
uma imprevidência, que era forçoso remediar. O Alva atirou consigo de roldão
pelos campos fora, rasgou furiosamente montanhas e rochedos, galgou despenhadeiros,
bradou vingança temerosa, rugiu ; e, quando julgou que estava a dois passos do triunfo,
foi esbarrar com o seu principal antagonista, o Mondego, que lá ia, havia
horas, campos de Coimbra fora, em cata da Figueira, onde se lançaria jubiloso
no seio volumoso do Oceano, ao ganhar a porfiada contenda.
O Alva esbravejou, como atleta
sanhudo, atirou-se ao adversário, a ver se o lançava fora do leito, espumou de
raiva; mas... o outro, que deslizava sereno e forte, riu-se, e engoliu-o de um
trago.
Ao lugar da
contenda e foz do Alva chamou-se propositadamente Raiva, em memória da sua
atitude raivosa e do caso tremebundo.”
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FRIAS, David Correia
Sanches de; VASCONCELOS, Carolina Michaelis de; VASCONCELOS, Joaquim de - Pombeiro da Beira: memória histórica, descritiva
e crítica. Lisboa: Tip.de João
Romano Torres, 1896
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