Quinta de Carrazedos, não como Alves Mendes a viu há 160 anos, mas segundo um cartaz recente |
Com apenas 19 anos, o futuro
Cónego da Sé do Porto, eminente Orador Sagrado e Arcediago de Oliveira, António
Alves Mendes da Silva Ribeiro (Penacova, 1838 - Porto, 1904) publicou num jornal
de Coimbra um conjunto de crónicas a que chamou “Umas Férias em Penacova” dedicadas ao “amigo A. M. C. de Bastos Pina”, que seria um dos irmãos do futuro Bispo de
Coimbra, Manuel de Bastos Pina. Nestas crónicas, a par da descrição da sua “Pátria” [Penacova],
Alves Mendes tece algumas reflexões metafísicas, que prenunciam já a alta
craveira eclesiástica e a grande projecção nacional que este penacovense haveria de atingir.
Por hoje, prometendo voltar ao assunto, deixamos aos nossos
leitores um excerto dos referidos escritos. Um retrato da Quinta de Carrazedos,
emoldurado pelas paisagens de Penacova. Estamos em 1857.
(...) Ainda os rosados
dedos da aurora não tinham aberto as portas do oriente, quando me achava
passeando numa formosa colina , donde com toda a graça e exactidão avistava por
entre as espessas e formosas oliveiras que as circundam as elevadas sumidades
de seus edifícios. Sentei-me então sobre a relva juncada de mimosas flores que,
com seu delicado odor, incensavam toda
aquela vasta paisagem.
Não se via aí mais do que
uma simplicidade rústica e natural, capaz de fazer atrair o encanto do génio
mais indiferente: não se notava naquele ponto o precioso do ouro e da prata, a
rareza dos mármores e diamantes e o encantador dos quadros e pinturas: nada
mais havia do que uma natural singeleza; um aposento talhado em rocha viva, por
tal forma, que excedia o maior apuro da arte humana. Uma, enfim, quase que gruta, a quem uma abóbada de
interlaçadas e tenras vides forrava com seus ramos flexiveis.
Os brandos zefiros
conservavam aí - contra os ardores do sol, que explêndido e radioso se erguia
magestosamente - uma frescura deliciosa; e inumeráveis levadas giravam com
suave murmúrio por entre o milho que com uma folhagem do verde mais vivo
tornava o prado de cintilante luzir, sendo este tanto mais vistoso quanto claro
e puro era o cristal derramado por toda a superfície.
Numa palavra, flores de
considerável estima e rareza, e de paízes os mais remotos, destilavam o mais
delicado de todos os aromas, tornando com suas cores diversas o esmalte mais
precioso que haver pode. Vizinho e em não interrompida continuação havia um
pomar de copadas laranjeiras que com seus pomos de oiro faziam à luz do sol uma
vista tal que a pena jamais pode descrever. Parecia ele estar coroando toda aquela
campina que no píncaro apresentava uma casa encascada por tal forma com
soberbos limoeiros que parecia uma só árvore. Não se ouvia aí mais do que o
gorgeio variado dos rouxinóis e o ruído dum fresco regato que a grossos e
rápidos borbotões corria pelo meio de tão bela paisagem.
Do meu assento no encosto
da colina(1) se avistava o Mondego, que já quase moribundo, corria a passos
lentos jaspeado como o cristal por entre os gigantescos álamos, já no vigor da
sua força se arrostava contra as rochas que me serviam de sustentáculo e bramia
com horrível estrondo. Também daí se divisavam em solta cortina duas grandes
serranias, que parecendo querer furar o azul da abóbada etérea, davam a meus
olhos um lindo horizonte. As encostas vizinhas estavam juncadas de verdes pâmpanos,
donde outrora (!) a uva mais lustrosa do que o ouro encurvava com graça as
parras que as sustinham, e por fim, o olivedo que cerca a minha pátria tornava
este país da mais graciosa contemplação. (...)
(1)
É
denominada esta bela extensão de terra Carrazedos,
que sem dúvida estando no meio de um monte árido e pedregoso, onde apenas por
entre as rochas se encontram pobres pastagens de que o gado se mantém, é
contudo uma das paisagens mais férteis de Penacova. Observa-se no cimo desta chantada uma sombria floresta de monstruosos carvalhos donde
em grossos jorros saem levadas da água mais límpida e fresca que vão regar todo
o terreno até às margens do Mondego. Também há em 2000 passos em distância desta,
uma fonte de água férrea, que presentemente é bem concorrida. É notabilíssimo
este ponto pela sanguinolenta batalha que pouco mais ou menos pelos anos de
1104 a 1105 houve entre os habitantes da vila e os monges de Lorvão. Foi ela tão
cruenta que (diz a tradição) o sangue das vítimas lavou toda a superfície da
colina(...)
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